O chamado "assédio sexual" é um conceito muito amplo, que abrange condutas que vão desde a mera sedução excessiva e não correspondida até à verdadeira importunação de outras pessoas. A dificuldade de traçar a fronteira entre o que é tolerável e o que afeta a liberdade alheia torna discutível uma incriminação, por razões de previsibilidade e segurança.
Por: Fernanda Palma, Professora
Catedrática de Direito Penal
O
assédio sexual torna-se insuportável quando implica a redução da liberdade da
vítima, comprimindo o seu espaço de decisão. Na reforma penal de 1998, foram
introduzidas novas modalidades de coação sexual e de violação, relativamente a
atos sexuais extorquidos com abuso da autoridade, resultante, por exemplo, de
dependência familiar, laboral ou hierárquica.
Há,
porém, uma área difícil de caracterizar, que engloba condutas que não atingem
esta gravidade objetiva, embora possam molestar subjetivamente uma pessoa. O
Direito Penal não deve intervir nessa área nebulosa, sob risco de se confundir
com a Moral, imiscuindo-se em relações privadas e íntimas que podem ser geridas
sem recurso aos tribunais.
Essa
área relevante para a Moral (e para a Religião) pode ser debatida em público em
relação a casos concretos como o que recentemente foi suscitado quanto a um
alto dignitário da Igreja? A confusão apressada entre a perspetiva moral e o
Direito pode afetar profundamente as pessoas visadas, expondo--as à humilhação
pública e provocando danos irreparáveis.
Assim,
antes de se formular uma acusação de assédio sexual, deverá ter--se em conta
que é necessário preservar um território penalmente neutral, respeitante à
esfera de intimidade das pessoas. A penetração nesse terreno movediço
dificilmente promoverá a liberdade, veiculando apenas moralismos atávicos,
ainda que ao serviço de justas críticas institucionais.
Perante
relações sexuais entre adultos, devemos deixar a Deus o que é de Deus e
oferecer a César o que lhe pertence. Devem ser denunciadas as importunações
sexuais que, objetivamente, constituam uma restrição da liberdade sexual ou de
determinação sexual dos ofendidos, mas devem ser preservados da exposição
mediática quaisquer outros relacionamentos.
Tal
como escreveu Stuart Mill, em 1859, no seu célebre ensaio ‘Sobre a liberdade’,
cada indivíduo tem o direito de agir como quiser, desde que as suas ações não
prejudiquem outras pessoas. Se uma ação só afeta diretamente quem a pratica, a
sociedade não tem o direito de intervir: "Sobre si mesmo, sobre o seu
próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano."