terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Juízes do Supremo têm acórdãos demais

«"Juízes do Supremo têm acórdãos demais"
“Em Portugal, um juiz do Supremo Tribunal tem, por semana, dois acórdãos para relatar e quatro para intervir como adjunto. Isto não dá possibilidade de ponderação séria: por ano, são cerca de 75 recursos para relatar e 150 para intervir como adjunto”.
Quem fala assim é Miguel Galvão Teles (na fotografia), que critica o facto de a qualidade das decisões não ter impacto na carreira dos juízes.»
Jornal de Negócios on line, 31.JAN2006

Esclareça-se que, em 2005, os juízes das secções criminais do STJ receberam 90 processos para relatar e tiveram intervenção em outros 250 como adjuntos

O Juiz e as Escutas


Se a intervenção substancial do juiz em todo o processo é, mais do que uma exigência de legalidade, uma fonte de legitimação absoluta do meio de obtenção de prova [escutas telefónicas], qualquer desvio a tal traçado implica inevitavelmente o inquinamento do processo (*). Sendo restritos - porventura como em nenhuma outra intervenção jurisdicional no âmbito processual penal - os requisitos de admissibilidade das intercepções, parece claro que o papel maximalista do juiz em todo o processo toma-o uma peça fundamental na valoração do conteúdo da consistência da hipótese de acusação que venha a ser formulada no inquérito. Assim, enfatizar o momento de escolha dos elementos recolhidos através da intercepção telefónica como relevantes para a prova é reconhecer um papel verdadeiramente dominial do juiz, no âmbito da fase de inquérito, no que respeita à sua intervenção neste meio de obtenção de prova. Ao contrário de outros sistemas, o juízo de relevância da prova que sustenta a hipótese de acusação que vier a ser, eventualmente, formulada, é apenas e só do juiz de instrução.
____________________
(*) Não importando, aqui, tomar partido na querela sobre se se está no domínio de nulidades, sanáveis ou insanáveis, ou métodos proibidos de prova, sempre se dirá no entanto que não parece tal regime específico e restritivo de proibições de prova compatível com o sistema de irregularidades, sanáveis ou não, consoante o momento em que são arguidas, questão é bem mais profunda, pelos interesses que estão em causa, como se viu, e será certamente uma posição de absoluta proibição de utilização de prova aquela que mais se adequa ao regime (...)

José Mouraz Lopes, RMP 104

Tráfico menor


«A jurisprudência do STJ dos últimos anos tem vindo a alargar o campo de aplicação do aludido art. 25.º a tudo quanto seja pequeno tráfico, aos dealers ou "retalhistas" de rua, sem ligações a quaisquer redes e quase sempre desprovidos de quaisquer organizações ou de meios logísticos, e sem acesso a grandes ou avultadas quantidades de droga - enfim, os pequenos tentáculos situados na base da grande pirâmide do narcotráfico.
Apesar da pertinência da observação de que sem esses "tentáculos" ou vendedores de rua dificilmente a droga chegaria ao "mercado do consumo", e daí a necessidade de maior reprovação, ela não pode ser levada ao extremo de se pretender medir pela mesma bitola realidades substancialmente diversas - o grande e o pequeno tráfico -, sob pena de violação dos mais elementares critérios da proporcionalidade que devem estar presentes na definição dos crimes e das penas, para além de que a moldura do art. 25.º fornece uma ampla margem onde não será difícil encontrar a pena adequada e proporcionada ao caso concreto, não podendo ainda esquecer-se a circunstância de os vendedores de rua serem recrutados ou aliciados, na sua maioria, de entre toxicodependentes que, a troco de pouco mais do que o necessário para alimentar o vício, actuam, indiferentes aos riscos que correm e nem sempre com plena consciência da ilicitude»
Ac. do STJ de 18-05-2005 Proc. n.º 1003/05-3, Relator: Cons. Antunes Grancho

Julgar implica «compreender a natureza humana e as suas fragilidades»


I - Nos termos do art. 72.º, n.º 1, do CP, o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
II - A acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída em relação aos casos para os quais está prevista a fórmula de punição, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo.
III - A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas, se puder, deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena, vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas.
IV - Se o arguido recebeu o produto estupefaciente de indivíduo não identificado, por conta de quem o vendia, a troco de vantagem não concretamente apurada, tendo a actividade ocorrido no contexto de grande desequilíbrio familiar (necessidade de cuidar do filho de tenra idade; companheira mergulhada no consumo de estupefacientes), para assegurar a subsistência do filho e também para «minimizar o descontrolo» da «carência adictiva» da companheira, a censura ética por ter agido como agiu revela-se, na compreensão da natureza humana e das suas fragilidades e circunstâncias, de menor grau do que em outras situações de tipicidade comportamental para a normalidade das quais o legislador pensou o tipo e a moldura penal do art. 21.°, n.° l, do DL 15/93, de 22-01, justificando a medida prevista no artigo 72.º do CP.
Ac. do STJ de 25-05-2005 Proc. n.º 1566/05-3, Relator: Cons. Henriques Gaspar

In dubio pro reo

I - Tendo-se apurado apenas que «por razões não concretamente apuradas mas que se prendem com o mau relacionamento existente entre eles, entraram ambos [arguido e ofendido] em discussão, discussão essa que ocorreu sensivelmente a meio do muro que separa ambos os quintais», mas ignorando-se quem iniciou tal discussão, não pode sufragar-se a tese do acórdão recorrido vertida na afirmação segundo a qual «a discussão, que precede a conduta do recorrente, não atenua a sua culpa pelo facto, na medida em que não se provou que tivesse sido vítima de qualquer ofensa imerecida que despoletasse aquela reacção por descontrolo emocional».
II - É que se não se provou que o arguido «tivesse sido vítima de qualquer ofensa imerecida», também se não provou que o ofendido o tivesse sido, ou, sequer, que tenha sido o arguido a dar início à discussão.
III - Daí que o basilar princípio processual probatório in dubio pro reo, como se sabe, reflectido no art. 32.º, n.º 2, da Constituição, imponha que o tribunal valorize este espaço de dúvida - o de saber quem iniciou a discussão e o porquê dela - em favor do arguido.
Ac. do STJ de 5.5.2005 Proc. n.º 237/05-5 Relator: Pereira Madeira

Pareceres

Calhou de ler, há dias, nos jornais, que o Professor Doutor Costa Andrade, num parecer adrede emitido para um caso muito badalado, sustenta uma tese que me deixou espantado e que, na altura, levei à conta de mais uma incorrecção jornalística.

Afinal, é bem verdade. Escrito, preto no branco, sustenta o ilustre catedrático, entre o muito mais, e em jeito de conclusão, que «No direito positivo português vigente não há recurso das decisões que não apliquem ou que revoguem as medidas de coacção». Mais: «Só à custa da inconstitucionalidade do artigo 219º – e reflexamente do artigo 399º – do Código de Processo Penal se poderia admitir que aquele preceito abrisse a possibilidade de o Tribunal Superior vir, contra decisão da primeira instância, ordenar a aplicação ou a continuação duma medida de coacção». E mais ainda: «Diferentemente do recurso da decisão de não aplicação ou revogação das medidas, o recurso da decisão de aplicação ou manutenção das medidas de coacção, mesmo reportado ao passado, mantém toda a utilidade e faz todo o sentido. Tem sempre uma eficácia reparadora no plano moral, enquanto no plano material [aí vai cutelo] pode determinar e sustentar a pretensão à indemnização do arguido». Vale a pena ler o resto.

Como diria o meu amigo Pancrácio de Oliveira, se o Bid Laden, um dia, fosse preso em Portugal e um juiz, simpatizante da Al Qaeda, o libertasse de seguida, deixando de impor a medida de prisão preventiva, o Ministério Público, intérprete por excelência do interesse público, não poderia recorrer dessa decisão. Ou, pela mesma lógica de tão douto parecer, também o MP jamais poderia recorrer de decisões absolutórias.

A mim, que não percebo nada de juridismos, parece-me é que a crise é bem mais profunda e extensa do que aparenta.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

«Ajuste de contas» e «revolução de veludo»

Em França, o político e o judiciário estão (uma vez mais) em colisão. O mundo mediático parece exultar e, ampliando o fragor político que começou pelo Presidente, clama por justiça (...). O sector político aproveitou ambiente o emocional gerado e a oportunidade, mediática e de opinião, para aparentes “ajustes de contas” com o sistema. Novidade a exigir reflexão e a determinar alguma perturbação nos necessários equilíbrios institucionais das democracias consolidadas: está instalada e em audições uma comissão parlamentar de inquérito para averiguar sobre o “desastre judiciário” em que foi transformado o caso d’Outreau. No pelourinho (...), o juiz de instrução (...) Fabrice Burgaud (que foi já ouvido durante todo um dia pela Inspecção-Geral dos Serviços Judiciários, e será ouvido na comissão parlamentar no dia 8 de Fevereiro), transformado, de um momento para o outro, de “herói” da magistratura em “symbole honni d’une justice qui se trompe et brise des innocents” (“Nouvel Observateur”, 19-25 de Janeiro). (...) A fronda política e mediática tem sido impressionante. Declarações inflamadas sobre os horrores da justiça (...), debates nas televisões dando voz em directo às vítimas (os inocentes) de Outreau. Tudo (...) às costas de um juiz de instrução – que, de resto, no decurso do processo, viu confirmadas pelas instâncias superiores todas as suas decisões e a maior parte das prisões preventivas que ordenou, e que, alguns dias antes da audiência, colhia louvores pela instrução que dirigiu. (...) No entanto, (...) não tenho dado conta de referências a factores elementares que (...) todos parecem desconsiderar: a fluidez, por vezes inescapável, dos elementos com que o juiz trabalhou e que o levaram a seguir por onde seguiu. No caso, o “récit” de alguns intervenientes e, especialmente, as declarações de uma testemunha que muito falou (...) e que, por fim, na audiência, tudo desdisse. E este seria o elemento central que deveria fazer mexer consciências tão perturbadas e que é esquecido no tsunami político e mediático contra a justiça. E também – por prevenção – verificar que revolução mais ou menos de veludo ou de silêncio quase anestesiante parece estar a caminho (noutras paragens, mas bem próximas) para permitir, sem discussão, que uma comissão parlamentar, quebrando todos os equilíbrios da separação de poderes, investigue sobre a actuação e as decisões de instituições judiciais num caso concreto»

Cons. Henriques Gaspar, Sine Die

[Achado na caixa de correio]

Trindade Coelho, os recursos e os acórdãos

«Trindade Coelho viria a dar à estampa em 1891 «Os meus amores». Como delegado [do procurador régio] em Lisboa lá alinhavaria em 1897 um pequeno livro de ajuda aos recursos finais em processo criminal. A obra não terá excesso de mérito, mas tem, pelo menos, este momento irónico no seu prefácio em que diz que, ao escrever, "não citei acórdãos, como é de uso, por uma razão: porque preferi argumentar com a lei à vista, que é sempre a melhor maneira de argumentar"».

José António Barreiros, in Patologia Social

[Achado na caixa de correio]

Os «poderes» do PGR «nem sempre correctamente entendidos» pelas «hierarquias intermédias»

«Ao Procurador-Geral caberá “dirigir, coordenar e fiscalizar” a actividade do Ministério Público – ou seja, dirigir o exercício das respectivas funções por parte de todos os magistrados. A questão do exercício dos poderes hierárquicos próprios do Procurador-Geral da República assume porém características algo específicas. Não apenas devido ao grau de autonomia individual que é conferido por lei aos magistrados do Ministério Público, mas também por força da sua organização “descentralizada” e da existência de hierarquias intermédias consabidamente apanágio desta magistratura. Importa pois que a acção do Procurador-Geral da República, no tocante à direcção da actividade do Ministério Público, se concentre nas tarefas de superior fiscalização da mesma e de uniformização de procedimentos a seguir pelos magistrados. Em termos tais, que será nas áreas em que o Procurador-Geral tenha previamente formulado orientações, susceptíveis de se sobreporem à liberdade de organização e decisão, dos seus subordinados, que se deverá fazer sentir, como regra, o peso dos poderes de superior direcção do Ministério Público que lhe estão confiados. E isto nem sempre é correctamente entendido»

Intervenção do Procurador-Geral da República na cerimónia de abertura do Ano Judicial 2006

[Achado na caixa de correio]

Casa da Suplicação LX

Habeas corpus - Decisão Judicial - Revogação da suspensão da pena
1 - O meio correcto para reagir contra a prisão ordenada por um despacho que revogou a suspensão da execução de uma pena, é o recurso ordinário dessa decisão, não havendo que confundir o que é próprio destes meios normais de reacção com a providência de habeas corpus, que tem a característica de excepcionalidade, como remédio extremo, expedito e sumário para obviar a situações de flagrante ilegalidade
2 - É certo que esta providência poderia mesmo assim justificar-se, não obstante estar em causa uma decisão judicial, desde que tivesse ocorrido erro grosseiro ou erro grave na aplicação do direito, que tornasse patente a ilegalidade da prisão, mas não é o caso se patentemente resulta dos elementos documentais que a suspensão foi determinada depois de o requerente ter praticado outro crime doloso em pleno período da suspensão da execução da pena aplicada pelo primeiro crime.
Ac. do STJ de 26.01.2006, proc. n.º 282/06–5, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa

domingo, 29 de janeiro de 2006

Transparências

«Nos processos judiciais mantém-se ainda o sistema "medieval" de não se oferecer de forma legível a identificação do magistrado titular dos processos. Prefere-se, assim, deixar aos destinatários e leitores de cada decisão a ingrata tarefa de decifrar as hieroglíficas assinaturas dos magistrados, como se estas fossem obra de arte que todos devessem culturalmente conhecer e reconhecer.»

Wladimir Brito, RMP 104

"Ajuste de contas"

Tirado da caixa de correio:
«O deputado Duarte Lima defendeu anteontem o fim das escutas telefónicas para todos os crimes que não os de terrorismo, droga e sangue. Quer ainda alterações na composição dos Conselhos Superiores que vão no sentido de uma maior politização. A sua intervenção foi aplaudida por todas as bancadas parlamentares, com excepção da do PCP, recebeu os "parabéns" da bloquista Ana Drago e elogios à sua "eloquência", "sapiência" e "coragem" do deputado do PS Ricardo Rodrigues. Os deputados são eleitos para defender ideias de organização do Estado e do País, seja pelas opiniões ou pelas leis. Duarte Lima cumpriu, por isso, o seu papel. O que é lamentável é que as suas opiniões tenham suscitado tamanho coro de aplausos. É completamente irresponsável, para não dizer pior, que deputados do PS, PSD, CDS e BE tenham aplaudido uma intervenção que exclui do catálogo de escutas crimes como a corrupção, branqueamento de capitais, tráfico de influências e peculato. Não se compreende como é que deputados de partidos que estão ou estiveram no poder podem defender políticas contra a criminalidade económico-financeira, subtraindo ao Estado um instrumento essencial para a combater. É vergonhoso que o Parlamento aplauda a afirmação de interesses particulares sobre o interesse geral»

Eduardo Dâmaso, DN de 28Jan06

***

«Falando a título pessoal, o deputado social-democrata Paulo Rangel frisou ao DN que não aplaudiu o discurso do seu colega de bancada (...). "Os aplausos mais pareciam um ajuste de contas [com os magistrados]", disse Rangel, criticando o "júbilo tumultuoso" com que os deputados receberam as palavras de Lima. "Aquele não é um clima de democracia sã. É uma atitude para afundar a Justiça e não para uma reforma positiva e construtiva."»

DN de 28Jan06

Sinto-me bem nesta cadeia

Sinto-me bem nesta cadeia. É um belo edifício claro, em pavilhões de dois andares, isolados no meio duma grande cerca arborizada, que um alto muro separa, julgo eu, de caminhos e terras cultivadas. Nenhum rumor chega de fora. Às vezes, vou até junto desse muro, que a hera muito densa envolve de poesia, e, numa sombra repousante e fresca, abandono-me a ouvir os pequenos murmúrios da terra e do ar - uma folha que tomba, um pássaro que tila, um insecto que zumbe, um gorgolejo de água - e assim levo muitas horas do meu dia, meditando e escrevendo, como os frades antigos, até que um toque de sineta me venha chamar para a comida ou para o recolher.

Tudo me parece raro, novo e extraordinário. Só agora descubro o oculto sentido de muitas coisas - e mais pela emoção que me provocam do que pelos juízos que formulo. Assim, depois dos meus erros e crimes, pergunto a mim mesmo se será legítimo viver com tanta calma e despreocupação: um criminoso não deveria ter dores, ser torturado? A punição é apenas isto?

Sim, tenho há muito a impressão de que vivo num sonho. A vida corre com uma serenidade impressionante. Penso quanto, noutro tempo, eram felizes os homens a quem se concedia o direito de fugir, como eu fugi, afinal, à vida angustiosa do mundo. Quase me julgo feliz. E porque não?

A cadeia não é como eu supunha, nem o que se diz lá fora. Nada nos falta, tratam-nos bem, embora vivamos numa quase completa solidão. Isto a mim agrada-me, de resto: aborreço o convívio dos homens. Só na aparência os considero meus semelhantes. Aqui, sou apenas um número: o 28.

Vejo agora quanto a criminologia tem progredido no sentido da mais ampla liberdade: cada qual faz o que quer - ou não faz nada. Muitos presos passam os dias metidos na cama. O trabalho deixou de ser obrigatório. A regeneração do criminoso obtém-se agora, ao que parece, por uma forma espontânea, a que eu, se dão licença, chamaria a "psicoterapia da indulgência".

Toda a casa é irrepreensivelmente asseada. O meu quarto é branco, limpo, tem um tecto alto e uma enorme janela sem grades, donde enxergo um vasto panorama de pinhais e terras de lavoura.

Não posso deixar de registar, no entanto, um facto muito estranho: às vezes, durante a noite (eu durmo pouco e tenho o sono leve), sobressalto-me ouvindo gritos, discussões, gemidos, um rumor de luta e de pancadas, e mesmo um estilhaçar de vidros... A primeira vez que tal aconteceu, cobri-me de suores e fiquei todo arrepiado. Receei que se aproveitassem da noite para nos aplicar um tratamento um pouco rude. Como tudo se calou, tornei a adormecer. O caso repetiu-se, e cheguei a julgar-me vítima de alguma ilusão. Porque gritavam? Intrigado, ergui- me várias vezes para escutar, mas acabei felizmente por me desinteressar do que se passa nesta grande casa de aspecto misterioso. São presos que se revoltam, ou que brigam, e a quem aplicam penas corporais? Não sei. Renuncio a sabê-lo. Ninguém me dá, nem eu peço, explicações. Nada me importa, os outros não existem para mim... Que façam como eu: calo-me, obedeço, vivo tranquilamente. De que serve a liberdade? Livre, o comem corre ao precipício.

Outro facto que de começo me indispôs: não me deixam ler os jornais, nem mesmo os antigos, onde poderia encontrar certos dados cuja falta me perturba.

Que terá dito de mim a grande imprensa?

Não tenho notícias do que vai pelo mundo. Não sei mesmo onde me encontro. Vivo como um cenobita.

Isto é bom.

O que desta gente me separa é o receio de ser diferente, um outro.

Oh, este horror de sentir a realidade fugir sob os meus próprios passos! Trabalhosamente, recomponho o "Eu", que a presença dos outros dissipa e confunde.

Isto é claro e horrível... Muitas vezes, subitamente, parece que deixo de ser eu, e a própria ideia do meu crime se obscurece, o meu passado é outro, como se uma força poderosa me arrastasse para um novo plano da existência. Então, fujo e luto comigo, a sós, desesperado.

O isolamento e a calma da prisão permitem-me pensar melhor e ordenar tantas recordações. Embebido em mim mesmo, sinto arder, mais vivo, o meu poder de concepção, e ainda espero compor alguns volumes de análise introspectiva. Vou meter o Nietzsche num chinelo.

Penso às vezes com piedade na insensatez dos que lutam apaixonadamente pela vida livre; chego a rir do meu próprio passado, eu, que já me deixei arrastar pelo remorso e pela dor. Agora sinto-me perfeitamente sereno. Não imaginam o que isto representa para mim! Estou sentado a escrever; sinto um sopro de Primavera vir de fora, pela janela aberta, nos raios do sol, e ouço na cerca o ramalhar das árvores cobertas de verdura nova, que o vento acaricia brandamente. Vozes... Também um sentimento novo de alegria me agita o coração.

Toda a gente aqui tem, para mim, deferências impressionantes. Só alguns dos companheiros, pobres náufragos que passeiam como eu na cerca, parecem querer às vezes provocar-me. Que mal lhe fiz? Estranhos tipos a quem a clausura parece ter roubado o senso! Dizem coisas perfeitamente infantis e sem sentido; mas os guardas que nos vigiam levam-nos logo para longe de mim.

Não me admira que estejam loucos, se, como se julga, o isolamento produz graves afecções, mesmo em quem foi sempre equilibrado. Sim, a solidão é um privilégio de raros, o domínio dos fortes! Uns aproximam-se para me fazerem confidências absurdas ou monstruosas. Um declarou chamar-se Ivânov e ser domador de leões: é um pobre raquítico, que mal tem nas pernas. Outro jura-me ser o Imperador Guilherme, e estar aqui esperando que o Hindemburgo o venha buscar para tomar Paris de assalto. Provavelmente são as alcunhas que outrora lhes deram, e com as quais as suas imaginações sobreexcitadas compuseram lendas... Outros insultam-me ou segredam-me obscendidades, aventuras de amor que são de arrepiar, ocorridas aqui dentro, com mulheres misteriosas que ninguém sabe donde vêm nem para onde vão. E há os que me fazem gestos lascivos ou provocadores, de longe, por entre as árvores da cerca. Volto-lhes as costas, com indiferença. Nem já sequer me causam piedade. Porque os não metem numa enxovia?

Recebo poucas visitas e, coisa estranha, não reconheço algumas das pessoas que se dizem das minhas relações. Interrogam-me, invocam nomes, datas, olham-me com espanto e curiosidade. Com franqueza, irritam-me. Às vezes trato-as mal. A impressão que me fica é de tê-las conhecido, sim, mas numa vida anterior de que me não resta lembrança viva... Há certos enigmas contra os quais luto em vão.

São talvez pessoas que se interessam pelo meu "caso": romancistas, quem sabe, ou psicólogos. Deixá-lo. Minha mulher também vem, às vezes na companhia de estranhos. Faz-me dó. Olha-me com tristeza e com receio, como se eu estivesse transtornado. Veste de escuro. Trabalha decerto para comer, e tem os olhos pisados. Agarra-se de repente a mim, a soluçar, e diz-me: "Lembra-te! Lembra-te!..."

Oh, meu Deus, estas cenas perturbam-me, e eu não posso, não posso mais! Sinto que perco o equilíbrio... Deixem-me só! Deixem-me só! Que queres tu que eu recorde? Porquê teimam todos que me lembre? Que me lembre - de quê? de quem?

Recebo-a, pois, sem nenhum entusiasmo. Imaginem que às vezes me vem surpreender num dia de inspiração ou de trabalho: procuro despachá-la o mais depressa que posso. As mulheres imaginam que nós devemos sacrificar os mais altos fins da existência às futilidades sentimentais, ou à recordação do que passou - do que deixou de ser.

Quero-me só com o meu presente. O passado não me importa. É bom adormecer com a certeza de que "amanhã" será uma coisa diferente. Porventura o eu de hoje continua o de ontem? O passado não existe, é uma ideia que alteramos a nosso gosto. Cada dia que nasce traz uma vida nova.

Entre nós tudo acabou. Tenho pena dela. Mas porque não se divorcia? As mulheres não compreendem certas coisas... Se encontrasse um marido honesto e dedicado, ainda podia ser feliz, e eu ficava contente. Como eu consigo já não ter ciúmes! E acreditem: estimo-a muito. Pobre Luísa!... É preciso ser puro. Mas ela não entende!

O director da cadeia é muito amável para mim. Não sei que lhe fiz. Tem comigo atenções que não posso esquecer. Anda sempre de bata muito branca. Interroga-me às vezes demoradamente, e já conseguiu reavivar- me a lembrança de certas coisas que eu julgava ter esquecido para sempre, talvez por serem tão banais. E fá-lo de tal modo que não me atrevo a resistir-lhe.

- Vês tu? - disse-me ontem de manhã, sentado na minha cama. - Já conseguiste recordar coisas bem sugestivas. Temos de continuar!

Prometi mostrar-lhe este manuscrito, logo que o tivesse acabado. (É a revisão do que levei ao tribunal.)

- Pois sim. Mas trabalha devagar. E escreve tudo - tudo!

- É impossível. Há coisas que eu não consigo esclarecer.

- Mas faz um esforço. Talvez eu possa ajudar-te. É para teu bem.

- Mas eu não quero sair daqui!

Acorda-me de noite, sem motivo aparente, para me fazer certas perguntas. Mostra-me retratos, conta-me incidentes que me parece ter já lido algures...

- Hás-de curar-te - diz. - Hei-de acabar por te restituir a memória completa de ti mesmo! - E de repente: - Quem era o Abílio?

Estremeço. O Abílio... Uma angústia indefinível:

- Espere! Espere! Eu lembro-me... Conheci um...

- Quem era? Onde vivia?

O Abílio... Eu sabia, eu sabia! Mas é impossível distinguir... Eu quero, mas há um muro que me separa não sei de quê... Uma angústia, como se dentro de mim um animal lutasse contra a minha vontade...

- Não posso! Não posso! Não quero...

Àquele simples nome, tudo se convulsiona em mim.

- Há um mês não conhecias este nome. Hoje conhece-lo?

- Conheço...

- Obrigado.

Obrigado - porquê? Que interesse tem ele nisso? Que lhe importa o que adormeceu cá dentro? Detesto que me façam perguntas.

Eu já sofri. Já fui um descontente, um revoltado, se quiserem. Hoje vivo serenamente. A serenidade é a maior virtude da inteligência. O que houve em mim foi um simples conflito dos meios e dos fins. Todo o meu drama se resume nisto. Não discutam se sou mau ou bom. Os actos são bons ou maus, não segundo a vontade, mas segundo os efeitos. E há fatalidades que nos impelem, através do mal, para um destino de beleza perfeita.

A ideia do mal faz-me pensar na Sociedade: estamos quites! Nada fez por mim, nada lhe devo, vivi à margem dela como um cardo à beira dum caminho. Também a não acuso. Não passa duma abstracção para que apela quem já nada espera de si mesmo... Não há senão indivíduos. (Verdadeiramente, só eu existo, eu e estes pensamentos.) E todos exigimos dela alguma coisa!

Mas porque hei-de eu pensar no mundo? É um hábito que fica. Detesto a vida activa! Os gestos que faço, os passos que dou, perturbam-me a vida interior, que é o meu prazer. Esquecimento, quietação! Doutro, não me olhe assim! Não me pergunte mais nada!... Tenho amor a esta casa onde adquiri a certeza definitiva de que existo, porque penso.

Nesta hora solene em que revejo, comovido, a minha biografia, para que hei-de mentir? Eu sou o "homem que obedeceu".

Não me considerem pois um criminoso.


José Rodrigues Migueis, in Páscoa Feliz, 5ª edição, Editorial Estampa - Lisboa 1981

sábado, 28 de janeiro de 2006

Agradecimento

Agradeço ao Vasconcelos, conhecido no Seminário pelo Calhordas, tal era a sua vocação celestial, o convite honroso para participar, “querendo e quando lhe aprouver”, neste “espaço plural” onde, acrescenta o Calhordas, “pontificam sábios do direito”, o que eu entendo como, sem ofensa, malabaristas da jurisprudência. Honrado, ainda que pobre nos dotes e na lei, aceito corresponder ao convite do dito, o Vasconcelos, aprendiz desistente de homilias, prometendo algumas achegas de prontuário à justiça do país. Não será que a justiça precise delas, mas, como realça o Calhordas no convite já aludido, a contribuição de cada um, por mais modesta, “será a força de todos”. Contra quem não o explicou ele, Calhordas de meias-verdades e recônditas intenções, ou não tivesse seminariado o suficiente, se disser dez anos não mentirei, para ganhar a ductilidade da alma que lhe permite um presente judiciariamente descansado. Estarei, pois, entre doutores, de livros escritos e decisões arrasadoras, com esse propósito firme de não desiludir a confiança do Vasconcelos, a quem, quase, só faltou dizer a primeira missa, e, porventura, com essa esperança de me não desiludir por não ter sabido corresponder às expectativas do Calhordas. Parafraseando o padre Licínio, octagenário lúcido e especialista em dogmática neo-testamentária, à confiança de um gesto apenas pode responder-se com um gesto ainda mais confiante. Obrigado, Calhordas.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

O Presidente da República na abertura do ano judicial

As escutas telefónicas
A responsabilidade civil dos juízes
A independência da Magistratura Judicial
A autonomia do Ministério Público
O Presidente Sampaio referiu-se na Abertura do Ano Judicial, no Supremo Tribunal de Justiça, à regulamentação das escutas telefónicas como meio de investigação criminal, considerando que se foi longe demais.
Defendeu então que “importa arrepiar caminho rapidamente, com um catálogo restrito e claro dos crimes graves que as podem justificar, de par com a consagração do seu carácter excepcional, da sua autorização e controlo efectivo pelo juiz de instrução e da proibição de se recorre a elas fora do inquérito criminal”. “O regime das escutas telefónicas tem de ser excepcional e minuciosamente controlado. Mas não se caía na tentação, por não se terem, até agora estabelecido regimes eficazes, de instituir entidades exteriores à administração judiciária, para controlar a legalidade das escutas. Com isso se daria uma machadada fatal no sistema judiciário, que casos vários tanto têm fragilizado”.
A propósito da responsabilidade civil dos juízes alertou para o risco de se pôr em causa a independência do poder judicial: “cuidado com as soluções que visem responsabilizar civilmente magistrados judiciais”. “Um juiz deve ser responsabilizado, sem quaisquer restrições quando erra intencionalmente. Mas “se estiver em causa a mera negligência, em que a vontade consciente não está presente e a recta intenção se mantém, responsabilizar o magistrado é ferir aquilo mesmo que nos garante a sua independência, a Irresponsabilidade pelos actos geradores de prejuízos quando não se verifique dolo”.
E alertou ainda: “a independência dos juízes e a autonomia do Ministério Público” são “elementos essenciais da nossa democracia” e “têm que ficar preservadas, sem quaisquer reticências”.

"Mexidas" no Supremo Tribunal de Justiça

Começa a corrida para a sucessão do juiz conselheiro José Moura Nunes da Cruz no cargo de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
A primeira candidatura virá do norte, anunciada ontem num jornal de Braga. Descubra aqui.

Abertura do Ano Judicial

Teve lugar, ontem, no Supremo Tribunal de Justiça, mais uma Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial, iniciada pelas vozes esforçadas do Corelis - Coro do Tribunal da Relação de Lisboa, continuada por outras vozes menos esforçadas, umas ainda ressentidas, outras, mais pias, fazendo apelo ao esquecimento do passado e à construção de um futuro menos crispado, com algumas despedidas anunciadas, à mistura, uma sessão de cumprimentos, com a abstenção do Governo, e, a finalizar, um Porto de Honra.
Intervieram na cerimónia:
- o Bastonário da Ordem dos Advogados
- o Procurador-Geral da República
- o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
- o Ministro da Justiça (em representação do Primeiro-Ministro)
- o Presidente da República.
Cumpriu-se, tardiamente, um acto do calendário de uma Justiça cada vez mais mergulhada em “vil e apagada tristeza”.
Para o ano talvez haja mais.

De profundis sobre uma Lei-Quadro de Política Criminal

A convite da Associação Forense de Santarém tivemos ontem a oportunidade de ouvir a defesa daquela Lei-Quadro feita pelo seu principal obreiro, o Presidente da Unidade de Missão, Mestre Rui Pereira.
Coincidência arreliadora – a Assembleia da República aprovava-a nesse momento, diz a Lusa, com os votos favoráveis do PS e CDS/PP, a rejeição do PCP e Verdes e a abstenção do PSD e BE.A primeira vontade era silenciar... e passar à frente. Mas o assunto não o merece, e nem a Assembleia da República pode tolher a liberdade de crítica.
Na verdade, passando em revista com mais detalhe a dita lei, crê-se serem pertinentes vários reparos (entretanto muitos já feitos, mas sem resultado):
1. É mais que duvidosa a sua legitimidade constitucional, não se percebendo como é possível encontrar fundamento no artigo 219º da CRP, onde apenas se prevê que o Ministério Público participe “na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania” (estender a noção de política criminal às prioridades da investigação criminal parece completamente fora do que tem sido entendido por política (legislativa) criminal).
2. Mas acima de tudo o que se detecta é um atentado flagrante ao princípio da separação de poderes. Ao Poder Judicial, por forma indirecta – já que ao condicionar a actuação do MP se está a filtrar, por meio de um camuflado princípio da oportunidade, este não previsto na lei, a intervenção do Poder Judicial. De forma directa, ao Poder Executivo, como órgão superior da administração, a quem cabe conferir condições e meios para que a Justiça faça cumprir as leis. E nada adianta invocar que seja o próprio Executivo a tomar a iniciativa da lei.
3. Não é aqui oportuno analisar cada um dos breves artigos que compõem o texto, mas não se resiste à menção de algumas incoerências ou hipocrisias: diz-se que compete ao Governo propor à AR “resoluções sobre os objectivos, prioridades e orientações de política criminal” (artigo 7º) – afirmação para que não se encontra fundamento – mas antes disse-se que isto não prejudica “o princípio da legalidade, a independência dos tribunais e a autonomia do MP” (artigo 2º) – afirmações, com o devido respeito, de fachada; que em relação à pequena criminalidade se podem definir tipos de crimes relativamente aos quais se aplicará a suspensão provisória do processo, o arquivamento com dispensa de pena, etc., para se acrescentar que isso não impede uma verificação casuística pelas “autoridades judiciárias competentes” (então quem houvera de fazer a análise? resultaria ope legis, directamente para o arquivo sem passar pelo MP?); que o MP conserva a sua autonomia – como se frisou – mas que assume os objectivos e adopta as prioridades e orientações constantes da AR (artigo 11º) – e se resolve não assumir?; que a avaliação das prioridades é feita com base em relatórios paralelos do Governo (leia-se Ministério da Justiça) e do PGR, podendo este ser ainda chamado à AR para “esclarecimentos” acerca do seu relatório.
4. Aquilo que realmente nos parece resultar da lei é que o Ministério da Justiça “alija a carga”, pelo menos naquilo que lhe cabe de angariação de meios e melhoria da organização subjacente à investigação criminal, abrigando-se debaixo da umbela da AR, que por seu lado “despromove” o Procurador-Geral da República e no seu conjunto o Ministério Público.
5. A ineficiência dos OPC em face da pequena criminalidade – que é muita (81% ouvimos ontem) e pode ter razões as mais diversas - passa agora a gozar da chancela da AR, ainda que se venha a dizer, emendando o texto, que se devem evitar as prescrições, etc. (os processos “não prioritários” serão remetidos para o amontoado daqueles que aguardam que os ofendidos descubram os autores dos delitos ou, quando os descobrem, talvez mesmo se substituam aos OPC para fazer a formalização atempada da investigação).
6. Uma lei desnecessária, um gasto de tempo que podia ser usado em tantas outras áreas e que no futuro vai potenciar mais conflitos do que clarificar situações. Aliás, não se sabe o que seria mais útil ao País, face a tanta descredibilização, na atitude do PGR.

Mas não há nada a fazer neste campo da operacionalidade do MP e dos OPC e mesmo das prioridades? É evidente que há e muito. Só que o caminho a percorrer era diferente e supunha que as entidades responsáveis por estas questões nacionais não vivem de costas voltadas. Este ambiente pernicioso, que tudo inquina, não pode ser ignorado.
A melhor organização, racionalização e reforço dos meios é essencial; como o é o reforço da formação e do apoio tecnológico, como o é a cooperação do MP com os OPC e o Governo, cada um na sua esfera de competência.
Para isto aquela Lei-Quadro era perfeitamente desnecessária: o MP/OPC terão de ser mais eficazes, o Governo tem de apoiar e a AR lá está para fiscalizar, desde logo e em primeira linha o Governo.
Oxalá nos enganemos, mas a dita Lei-Quadro introduziu mais um factor no “quadro” da perturbação na administração da Justiça.

Foi esforçada mas não convincente a defesa da lei feita pelo douto Presidente da Unidade de Missão para a Reforma Penal, que outrossim demonstrou muito fair play.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

As Escutas e as Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça

Como contributo para a discussão sobre as escutas em processo penal, pensamos ser de todo o interesse divulgar aqui os parágrafos que os Juízes Conselheiros das Secções criminais do STJ lhe dedicaram num texto de reflexão destinada à reforma, que então se ensaiava (e que continua na ordem do dia), do processo penal, texto disponível em texto integral em www.verbojuridico.net.
*
I - Regime das escutas telefónicas
1. Artigos implicados: 187º, 188.º e 189º
Artigo 187º (Admissibilidade):
1 - A intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser ordenadas ou autorizadas, por despacho do juiz, quanto a crimes: a) Puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos; b) Relativos ao tráfico de estupefacientes; c) Relativos a armas, engenhos, matérias explosivas e análogas; d) De contrabando; ou) De injúria, de ameaça, de coacção, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone, se houver razões para crer que a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
2 - A ordem ou autorização a que alude o n.º 1 do presente artigo pode ser solicitada ao juiz dos lugares onde eventualmente se puder efectivar a conversação ou comunicação telefónica ou da sede da entidade competente para a investigação criminal, tratando-se dos seguintes crimes: a) Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada; b) Associações criminosas previstas no artigo 299.º do Código Penal; c) Contra a paz e a humanidade previstos no título III do livro II do Código Penal; d) Contra a segurança do Estado previstos no capítulo I do título V do livro II do Código Penal; e) Produção e tráfico de estupefacientes; f) Falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda prevista nos artigos 262.º, 264.º, na parte em que remete para o 262.º, e 267.º, na parte em que remete para os artigos 262.º e 264.º, do Código Penal; g) Abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
3 - É proibida a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento de crime.

Artigo 188º (Formalidades das operações)
1 - Da intercepção e gravação a que se refere o artigo anterior é lavrado auto, o qual, junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, é imediatamente levado ao conhecimento do juiz que tiver ordenado ou autorizado as operações, com indicação das passagens das gravações ou elementos análogos considerados relevantes para a prova.
2 - O disposto no número anterior não impede que o órgão de polícia criminal que proceder à investigação tome previamente conhecimento do conteúdo da comunicação interceptada a fim de poder praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
3 - Se o juiz considerar os elementos recolhidos, ou alguns deles, relevantes para a prova, ordena a sua transcrição em auto e fá-lo juntar ao processo; caso contrário, ordena a sua destruição, ficando todos os participantes nas operações ligados ao dever de segredo relativamente àquilo de que tenham tomado conhecimento.
4 - Para efeitos do disposto no número anterior, o juiz pode ser coadjuvado, quando entender conveniente, por órgão de polícia criminal, podendo nomear, se necessário, intérprete. À transcrição aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 101.º, n.ºs 2 e 3.
5 - O arguido e o assistente, bem como as pessoas cujas conversações tiverem sido escutadas, podem examinar o auto de transcrição a que se refere o n.º 3 para se inteirarem da conformidade das gravações e obterem, à sua custa, cópias dos elementos naquele referidos.

Artigo 189.º(Nulidade)
“Todos os requisitos e condições referidos nos artigos 187.º e 188.º são estabelecidos sob pena de nulidade”.

2. Matérias Problemáticas
2.1. Dúvidas têm incidido sobre a interpretação a dar ao termo “imediatamente”, mencionado no n.º 1 do artigo 188º.
Disse-se no ac. do STJ, de 30.03.00- P.º 1145/98- 5.ª:
“O sentido a dar a este advérbio "imediatamente", não tem conhecido na Jurisprudência um entendimento unívoco ( cfr. a título de exemplo, o Ac. da RL de 16/03/96, CJ, Ano XXI, Tomo 4, p. 155)....
Em ordem a fixar-se a sua exacta significação, torna-se prioritário concatená-lo na perspectiva teleológica e sistemática do próprio preceito.
Como já ficou enunciado no acórdão deste Supremo Tribunal de 14/11/1996, proferido no processo n.º 48588, o auto a que se refere o n.º 1 do art.º 188 do CPP, destina-se, tão somente, a dar fé à operação de intercepção enquanto tal (no mesmo sentido, conferir o Ac do STJ de 29/10/1998, proferido no processo n.º 525/98).
Significa isto, que deverá mencionar, inter alia, o despacho judicial que ordenou ou autorizou a intercepção, a identidade da pessoa a que a ela procedeu, a identificação do telefone interceptado e os circunstancialismos de tempo, modo e lugar da intercepção.
Mas pergunta-se - e neste ponto se situa o fulcro da questão colocada - ­deverá esse auto referir o conteúdo das gravações, ou de uma forma mais incisiva, conter a transcrição das gravações?
A resposta tem que ser necessariamente negativa.
Na economia dos princípios acima enunciados e até como contraponto da relativa abertura conferida pelo nosso legislador no que respeita às escutas telefónicas, não é constitucionalmente pensável, ou admissível, um quadro do tipo do que deixamos esboçado, sem um verdadeiro controlo jurisdicional desse meio de obtenção de prova, garantindo a salvaguarda de direitos e liberdades e obstando a que eventuais situações perversas ou de atropelo possam ser geradas ou cometidas.
Foi o que expressamente veio a consagrar o Ac n.º 407/97, do TConstitucional, de 21 de Maio de 1997, publicado no DR - II S, n.º 164 de 13.07.1997, onde a determinado passo se poderá ler:

"Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha da prova através da escuta telefónica aparece como o meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas pelo texto constitucional.
O actuar dessa imediação, potenciadora de um efectivo controlo judicial das escutas telefónicas ocorrerá em diversos planos (..) "
Porque assim é, a essencialidade dessa garantia não pode ficar dependente da existência ou não de meios humanos ou técnicos susceptíveis de num dado momento assegurar a imediatividade das transcrições, quer porque a esse nível a regra é a da insuficiência, quer porque na normalidade dos casos, o material a processar será relativamente extenso não podendo ser essa a interpretação a dar ao referido termo.
(...) O que de uma forma textual e expressa a redacção do mencionado n.º 1 do art.º 188 manda que seja entregue ao Juiz de Instrução (o seu primeiro destinatário) com o auto, não são as transcrições mas as próprias fitas gravadas.
A este propósito, aliás, e como o referem Simas Santos e Leal-Henriques
X, na linha do que vimos propugnando, a inclusão no referido auto do conteúdo da matéria interceptada seria um acto inútil, "uma vez que o juiz, por lei, tem imediato acesso às gravações através dos respectivos instrumentos de registo".

Porque as escutas telefónicas só foram presentes ao juiz alguns meses depois de terminadas, considerou-se não haver supervisão judicial atempada, e verificada uma situação de proibição de prova, com anulação de todo o processado a partir da pronúncia.
Naquele citado ac. do TConstitucional julgou-se inconstitucional, por violação do n.º 6 do artigo 32º da CRP, a norma do n.º 1 do artigo 188º do CPP quando interpretada em termos de não impor que pelo autor da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefóni­cas seja, de imediato, lavrado auto e levado ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente o que se mostrar conveniente.
O TConstitucional preconiza uma “exigente leitura à luz do princípio da proporci­onalidade, subjacente ao artigo 18º, n.º 2, da Constituição, garan­tindo que a restrição do direito fundamental em causa (de qualquer direito fundamental que a escuta telefónica, na sua potencialidade danosa, possa afectar) se limite ao estritamente necessário à salvaguarda do interesse constitucional na descoberta de um concreto crime e punição do seu agente”.
“Nesta ordem de ideias, a imediação entre o juiz e a recolha da prova através da escuta telefónica aparece como meio que melhor garante que uma medida com tão específicas características se contenha nas apertadas margens fixadas pelo texto constitucional”.
“De forma alguma “imediatamente” poderá significar a inexistência, documentada nos autos, desse acompanhamento e controlo ou a existência de largos períodos de tempo em que essa actividade do juiz não resulta do processo (...)”
[1].
No intuito de “salvar” elementos probatórios que se revelam essenciais na perspectiva acusatória, a interpretação do advérbio “imediatamente” é alvo de variadas acepções, uma delas por exemplo a entender que será ainda uma apresentação imediata ao juiz aquela em que não haja entre a escuta e tal apresentação (do auto e das fitas gravadas ou elementos análogos) a prática de qualquer acto processual. Interpretação esta logo arredada pelo Supremo Tribunal.
2. Nulidade/Irregularidade
Também a caracterização dos vícios a que se refere o artigo 189º vem sendo objecto de soluções divergentes: uma delas, no sentido de uma apertada interpretação do preceito de modo a abranger todas as formalidades; outras, fazendo distinções.
2.1. Tendência forte da jurisprudência vai no sentido de que existe nulidade insanável se não for colhido despacho judicial de autorização das escutas telefónicas ou se estas se prolongarem para além do período fixado ou depois de conhecido o despacho que ordene o seu término.
Tratar-se-á mesmo de um método proibido de prova – artigo 126.º, n.º 3, do CPPenal:“ são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada ...ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”.
Mas quanto ao incumprimento de outras formalidades, nomeadamente a não apresentação imediata ao juiz, do auto lavrado junto com as fitas gravadas ou elementos análogos, parece minoritária a posição que considera linearmente que a violação de “todos os requisitos e condições referidos nos artigos 187.º e 188.º são estabelecidos sob pena de nulidade”, entendendo o termo nulidade como nulidade insanável.
Diz-se no acórdão do STJ, de 30.03.00 – P.º n.º 1145/98:
“O auto a que se refere o n.° 1 do art.º 188.º, destina-se a dar fé à operação de intercepção enquanto tal, devendo mencionar, inter alia, o despacho judicial que ordenou ou autorizou a intercepção, a identidade da pessoa a que a ela procedeu, a identificação do telefone interceptado e os circunstancialismos de tempo, modo e lugar da intercepção. Dado que as escutas telefónicas "são portadoras de uma danosidade social polimórfica e pluridimensional", não é constitucionalmente admissível que as mesmas possam ser realizadas fora de um quadro de verdadeiro controlo jurisdicional que garanta a salvaguarda de direitos e liberdades, e que obste a que eventuais situações perversas, ou de atropelo, possam ser geradas ou cometidas. Porque assim é, a essencialidade dessa garantia não pode ficar dependente da existência ou não de meios humanos ou técnicos susceptíveis de num dado momento assegurar a "imediatividade" das transcrições, quer pelas insuficiências existentes a esse nível, quer porque na normalidade dos casos, o material a processar ser relativamente extenso.
No acórdão da RPorto, de 8.03.2000
[2], afirma-se (sumário):
“3 - A proibição de escutar as conversas telefónicas do arguido com o seu defensor não se aplica apenas a partir do momento em que aquele junta aos autos a respectiva procuração forense; tal proibição abrange também o período em que o advogado, embora sem representação, exerce o mandato de o defender.
4 - O juiz, embora não tenha que proceder pessoalmente às escutas telefónicas, tem que acompanhar as mesmas, temporal e materialmente, de forma contínua e próxima, a fim de, em função do decurso das mesmas, manter ou alterar a autorização que deu para a elas se proceder.
5 - É o juiz - e só ele - quem, de entre os elementos probatórios recolhidos através das escutas telefónicas, há-de decidir quais é que, por serem relevantes para a investigação, devem ser transcritos em auto, a juntar ao processo.
6 - As provas obtidas mediante escutas telefónicas com violação dos art.ºs 187.º, n.ºs 1 e 3, e 188.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, designadamente por estas terem sido feitas depois de o juiz ter revogado a autorização dada, são nulas, porque proibidas”.

Não será de surpreender que uma interpretação mais próxima da letra do preceito do artigo 189º, em consonância com o n.º 1
[3] do artigo 118º e o artigo 119º[4], se venha a tornar maioritária.

2.2. Entretanto, porém, vários espécimes jurisprudenciais apontam no sentido de que a violação de certas regras a observar no domínio das escutas telefónicas acomoda-se na categoria das irregularidades sanáveis pela oportuna falta de arguição.
Disse-se no ac. do STJ, de 15.03.00
[5]:
“Não resulta pois dos autos qualquer incumprimento dos requisitos e condições referidos nos citados arts. 187° e l88°, designadamente daqueles cuja falta foi arguida e que estamos apreciando, relativos à garantia da possibilidade de contraditório por parte do ora recorrente.
E mesmo que algum destes pressupostos formais tivesse porventura sido desrespeitado, ....a nulidade que daí derivaria (art. 189° do C.P.P.) não seria de conhecimento oficioso, por não ser insanável (arts. 119° e 120° do C.P.P.), já que não se trataria de omissão de pressupostos materiais exigidos pelo art. 187° como indispensáveis à produção do meio de prova das escutas telefónicas, designadamente o terem sido autorizadas por despacho do Juiz, e cuja falta implicaria a nulidade da prova, por força do art. 126°, n° 1, de aplicação ressalvada pelo art. 118°, n° 3, todos do C.P.P.
x 3. Ora, tratando-se de nulidade sanável, seria de concluir que não tinha sido atempadamente arguida (art. 120° do C.P.P.),
E no ac. de 17.01.01
[6]:
“(...) Reparemos na redacção originária do artigo 188º para melhor compreender as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.(...)
“Na interpretação
[7] de tal sistema sublinhava-se a influência que as leis e a jurisprudência estrangeiras haviam tido nos textos nacionais.
Em França, entendia-se que o funcionário de polícia judiciária controlava “o registo das conversações telefónicas em banda magnética ou cassete, tal como a sua transcrição se ele próprio a não realizar, e que na escolha dos extractos a submeter a exame de jurisdição lhe cabe determiná-los, com sujeição a sanções penais, e que ele realiza todas essas tarefas sob a responsabilidade e controlo do juiz de instrução”.
A doutrina italiana salientava que só os documentos fónicos e os autos assumem relevo probatório, visando-se com a transcrição permitir o controlo das operações de escuta telefónica pela defesa....
De qualquer modo, a junção ao processo ou a guarda nos termos do artigo 101º, n.º 3, do CPPenal, das "cassetes" ou das bandas magnéticas cujo conteúdo haja sido transcrito permite aos intervenientes, ao arguido e assistente, fazer o controlo da sua conformidade com a transcrição efectuada (e também da própria conformidade com as regras de recolha da prova).
A indicação desta posição doutrinária assume relevo na medida em que se diz ter sido tomada em conta na actual redacção do preceito
** ”.

E já em face das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, acrescentava-se, a propósito das formalidades a que se refere o artigo 188º:

“Para além de a intercepção e gravação da comunicação telefónica estar sujeita a ordem ou autorização judicial, sob pena de nulidade insanável, como é geralmente entendido – o que bem se compreende pela delicadeza desta recolha de meio de prova -, as restantes operações de audição, eventual transcrição, e destruição de elementos desnecessários, correm igualmente sob estrito controlo do magistrado judicial.
Por razões de eficiência e dos necessários meios técnicos e humanos disponíveis, as operações materiais de intercepção e gravação correrão normalmente a cargo da Polícia Judiciária como entidade competente para a investigação criminal – n.º 2 do artigo 187º do CPP e artigo 18º da Lei n.º 20/87, de 12 de Junho. Daí não se recolhe, porém, a ideia de que lhe cabe seleccionar os elementos a juntar aos autos. Tal poder reside na esfera de competência do magistrado judicial.
No entanto, as alterações levadas a efeito pela Revisão de 98 do CPPenal espelham com suficiente clareza o objectivo de ultrapassar dificuldades práticas provenientes da necessidade de audição, pelo magistrado judicial, de todo o “material gravado”, da selecção e ordem de transcrição dos excertos com interesse probatório a juntar aos autos.
Parece-nos ter ficado claro que o texto resultante da Revisão de 98 pretendeu evitar transcrições de gravações que se revelassem inúteis para efeitos probatórios; que é o juiz quem ordena a transcrição, quando necessária, o que supõe, obviamente, que alguém deve proceder à audição dos elementos gravados para efeito de aquilatar da sua relevância processual
*.
Ora, o novo preceito do n.º 4 do artigo 188º confere ao magistrado judicial, quando o entender conveniente, que seja coadjuvado por funcionários do órgão de polícia criminal, o que lhe concede uma ampla margem de manobra funcional. Isto em busca da praticabilidade do sistema, o que também implica subtrair o magistrado à audição intensiva de gravações sem o menor interesse probatório, salvaguardadas as garantias essenciais do cidadão suspeito de actividades criminosas.
A nosso ver, podia o juiz proceder à audição ou decifração directa das fitas gravadas ou material análogo ou pedir a coadjuvação do OPC para esse efeito a fim de, sob seu controlo, efectuar essas operações, dando-lhe este conta, pela forma que entendesse mais ajustada (o que inclusivamente poderia ser fixado em despacho constante dos autos), do resultado dessa audição. Nada obstava, pois, a que o juiz ordenasse a audição da gravação pelo funcionário do OPC, sugerindo-lhe este, depois, as passagens relevantes para efeito probatório.
Embora se reconheça que a interpretação mais linear do regime legal, apesar da coadjuvação que o magistrado judicial pode solicitar ao órgão de polícia criminal, seja a da audição das fitas gravadas, quando é o caso, pelo próprio magistrado
***, eventualmente em conjunto com o funcionário, ordenando de imediato a transcrição dos excertos que considere de interesse probatório.
No fundo, uma interpretação que se mostra agora mais clarificada pela alteração do n.º 1 do citado artigo 188º do CPPenal levada a efeito através do Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, evidentemente não aplicável de forma directa ao caso...
O que supõe, declaradamente, a audição prévia pelo funcionário do OPC.
Não se pode esquecer que para além das normas relativas ao sigilo (artigo 383º do CPenal), sobre o funcionário recaem outros deveres derivados do seu ofício cuja violação pode implicar igualmente responsabilidade não só disciplinar como criminal – especialmente pela prática dos crimes, de falsificação a que se refere o artigo 256º, n.ºs 1 e 4 do CPenal, ou de abuso de poderes ou violação de deveres inerentes às suas funções (artigo 382º).
Por outro lado, dúvidas que se suscitem ao juiz quer perante a sugestão quer pelo texto da transcrição tem sempre a possibilidade de confrontar a gravação e ordenar o que se mostrar adequado. O próprio funcionário pode ter dificuldades na transcrição, a superar segundo a instrução judicial.
Para além de tais garantias, a última das faculdades de controlo cabe ao arguido e ao assistente, bem como às pessoas cujas conversações tiverem sido escutadas, examinando o auto de transcrição para se inteirarem da sua conformidade com as gravações e da própria fidedignidade destas, designadamente quando na transcrição se faz a atribuição do conteúdo de uma determinada comunicação a certa pessoa”.

E já sobre a aplicação dos princípios ao caso concreto:

“O procedimento mais correcto, nessa altura, como o será hoje, já que estamos em face da aplicação de dois regimes, o anterior e o posterior a 1998, vai no sentido de não haver transcrições que não sejam ordenadas pelo magistrado judicial (hoje podem sê-lo, sob sugestão do OPC). (...)
Assim, os despachos de junção..., proferidos a posteriori das transcrições, não transportam uma correcta observância da lei, enfermando por isso de nulidade.
Só que, ..., a nulidade verificada, prevista nos artigos 188º e 189º é sanável, sujeita ao regime de arguição a que se referem os artigos 120º e 121º do CPPenal, como aliás preconiza a generalidade dos anotadores do Código de Processo Penal”.

Numa posição ainda mais flexível seguia o acórdão de 16.08.96
[8]:
A exigência, estabelecida no n.º 1 do art. 188º do CPP, de que o auto e as fitas gravadas, ou elementos análogos, devem ser "imediatamente" levadas ao conhecimento do Juiz que tiver ordenado, ou autorizado, as operações, deve ser entendida no sentido de "no tempo mais rápido possível" e o seu desrespeito poderá, eventualmente, dar lugar a um pedido de aceleração ou a procedimento disciplinar, mas nunca a uma nulidade.
Aspectos menores não deixam de subir à apreciação em recurso
[9]:
“O CPP não exige a transcrição das gravações em discurso directo; a circunstância de a transcrição ter sido feita no discurso indirecto não constitui a prática de uma nulidade e não se traduz numa diminuição das garantias de defesa dos arguidos”.

3. Do que se deixa exposto, ficará suficientemente explícito que o sistema de escuta e gravação necessita de ser revisto e pormenorizado em alguns pontos, conferindo-lhe salvaguardas que tenham em conta a sua natureza excepcional de meio de investigação.
Não entramos no plano da amplitude das escutas, nomeadamente se são permitidas, mesmo em face do regime vigente, quanto a pessoas sobre as quais não incida uma suspeita mínima de prática de crime, salvo evidentemente se for interlocutor do titular de meio de comunicação que se encontra legalmente sob escuta. Na verdade, não existe ainda jurisprudência sobre tais casos concretos.
Por certo que urge outrossim a adopção de normas mais precisas sobre o disposto no artigo 190.º do CPPenal, no que toca a “comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática”, tendo mesmo em conta toda a problemática que decorrerá da ratificação da Convenção do Conselho da Europa sobre a Cibercriminalidade, assinada em Budapeste, em 23.11.01, também por Portugal, na qual as medidas de processo penal constituem o leit motiv da Convenção.
Medidas que serão aplicáveis não só às infracções penais previstas na Convenção (a dita cibercriminalidade), como a toda a infracção cometida por meio de um sistema informático e à colheita de provas electrónicas de qualquer infracção.
X Código de Processo Penal Anotado, (2ª Edição), I Volume, p. 936.
[1] V. também, no mesmo sentido, o ac. do TConstitucional n.º 347/01, de 10.07.01, no DR, II Série, de 9.11.01.
[2] Publicado in CJ, Ano XXVIII, T2, p.227.
[3] Em que se dipõe: “A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.
[4] “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais”, como se refere no texto.
[5] P.º n.º 14/2000- 3.ª.
x Neste sentido, cf., v.g., Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 11.ª edição, p. 411, e Simas Santos-Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª edição, p. 942.
[6] P.º n.º 2821/00, publicado na CJ, Ano IX, Acs. STJ, Tomo I, 2001, p. 210,
[7] Parecer da PGR n.º 92/91 (complementar), de 9.04.92, na BD PPGR/ITIJ (Internet).
** Cfr. J. L. Lopes da Mota, “A Revisão do Código de Processo Penal”, in RPCC, Ano 8.º - 2.º, Abril-Junho 1998, p. 189, especialmente nota 37.
* Pretendeu-se clarificar quem selecciona os elementos a transcrever em auto, “o que deve ser ouvido pelo juiz (de modo a evitar transcrições morosas, onerosas e inúteis)” – RPCC, loc. citado.
*** Como se entendeu no ac. do STJ, de 30.03.00 – P.º n.º 1145/98 – in Sumários de Acórdãos, n.º 39, Março 2000, p. 73 – onde se afirma que compete ao juiz ouvir as gravações e depois determinar ou não a sua transcrição.
[8] Da Relação de Lisboa, CJ, Ano XXI, T4, p.155.
[9] Acordão do STJ, de 14.11.96 – P.º n.º 48588.

Justiça Constitucional

Apoio judiciário - pedido de apoio judiciário formulado - dever de informar o tribunal pelo requerente
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Não é inconstitucional o artigo 25.º, n.º 4, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, na interpretação de que compete ao requerente do apoio judiciário informar o tribunal do pedido de apoio judiciário formulado.
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Ac. n.º 57/06 de 18-01-2006, proc. n.º 809/04, 2.ª Secção, Relator: Cons. Paulo Mota Pinto

Casa da Suplicação LIX

Jurisprudência fixada - afastamento por parte dos tribunais judiciais - fundamentação - razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada
1 - A partir da reforma de 1998 do processo penal, os tribunais judiciais podem-se afastar da jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça, conquanto que fundamentem as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (n.º 3 do art. 445.º do CPP).
2 – Mas, com essa norma não se quis seguramente referir o dever geral de fundamentação das decisões judiciais (art.ºs 97.º, n.º 4, 374.º do CPP), antes postular um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada.
3 – Quis então o legislador que o eventual afastamento, por parte dos tribunais judiciais, da jurisprudência fixada, pudesse gerar uma “fiscalização difusa” da jurisprudência uniformizada (art. 446.º, n.º 3 do CPP).
4 - Ora, as duas normas, que se ocupam da possibilidade de revisão pelo Supremo Tribunal de Justiça da jurisprudência por si fixada, usam a mesma terminologia: haver “razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada” (art.ºs 446º, n.º 3 e 447.º, n.º 2, 1.ª parte do CPP), as únicas razões, pois, que podem levar um tribunal judicial a afastar-se da jurisprudência fixada.
5 - Isso sucederá, v.g. quando:
– o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;
– se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente,
– a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juizes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada.
7 - Mas seguramente não sucederá quando o Tribunal Judicial não acata a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a “solução legal”.
Ac. do STJ de 26.01.2006, proc. n.º 181/06-5, Relator: Cons. Simas Santos


Decisão final de tribunal colectivo - recurso para a Relação - opção do recorrente - medida concreta da pena - matéria de direito
1 – Sobre a questão de saber qual o tribunal competente para conhecer do recurso da decisão final do tribunal colectivo em recurso que visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, quando o recorrente se dirigiu à Relação e não ao Supremo Tribunal de Justiça, definiram-se duas correntes no Supremo Tribunal de Justiça: uma entendendo que é então competente e outra entendendo que é válida a opção feita pelo recorrente.
2 – Esta última posição parte da consideração de que a Revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, não acolheu o entendimento de os recursos de decisões finais do tribunal colectivo restritos à matéria de direito têm de ser necessariamente dirigidos ao Supremo Tribunal de Justiça e por este conhecidos, por falecer competência para tal às Relações.
3 - Na verdade, a possibilidade de recurso directo para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito [al. d) do art. 432.º do CPP], não impede a Relação de conhecer dos recursos de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, restritos ao reexame de matéria de direito (no dizer do art. 411°, n.º 4 do CPP).
4 - Com a Revisão efectuada pela Lei n.º 59/98:
– Foi consagrado o recurso das decisões de 1.ª instância para a Relação como regime-regra, apenas com a excepção do recurso directo para o Supremo das decisões finais do Tribunal do Júri, excepção que não abrange o recurso per saltum para o STJ quando se impugnam decisões extraídas pelo tribunal colectivo (art. 427.º do CPP);
– Reconheceu-se o princípio de atribuir às Relações competência para conhecer dos recursos restritos à matéria de direito, mesmo que se trate de recursos de decisões finais do Tribunal Colectivo (cfr. art. 414, n.º 7 e 428.º, n.º 1 do CPP);
– Com o intuito de aproximação de tal regime com o que está concebido para o processo civil, significativo da ideia de harmonização de sistemas que se completam;
– Abriu-se um caminho processual que propicia a possibilidade de discussão, sem limites, dos vícios referidos no n.º 2 do art. 410.° do CPP, e viabiliza um efectivo 2° grau de recurso;
– Transferiu-se para a tramitação unitária (comum às Relações e ao Supremo), da disposição, anteriormente exclusiva deste último, que previa a possibilidade de alegações escritas nos recursos restritos à matéria de direito (anterior art. 434.°, n.º 1 e actual art. 411.º, n.º 4, do CPP).
– Consagrou-se o recurso per saltum das decisões finais do Tribunal Colectivo restrito à matéria de direito, como expediente impugnatório que, como o próprio nome indica, permite que se salte sobre o tribunal normalmente competente, o que pressupõe que o tribunal ultrapassado (no caso a Relação), tem também essa competência.
5 – Embora esteja muito divulgada a posição de que a questão da medida da pena, mesmo da medida concreta da pena é sempre exclusivamente de direito, tal não é exacto.
6 – Em matéria de medida concreta da pena, enquanto que ao STJ só assistem aqueles poderes de cognição, as Relações podem proceder a um reexame mais amplo, e eventualmente avaliar diversamente o significado da matéria de facto, quer em relação a cada parâmetro, quer em relação à imagem global do facto e da personalidade do agente, invadindo a margem de liberdade que, no nosso direito, assiste ao julgador na medida da pena e fixando, dentro dela, nova quantificação precisa, ou seja nova pena.
7 – Se o recorrente sustenta que se verificou erro de direito na decisão da 1.ª instância, mas também sustenta que ocorreu incorrecta valoração das atenuantes, coloca –se também no domínio do facto, o que vale por dizer que nem sequer se pode afirmar com firmeza que o recurso visa exclusivamente matéria de direito.
Ac. do STJ de 26.01.2006, proc. n.º 273/06-5, Relator. Cons. Simas Santos

segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

Casa da Suplicação LVIII


Ofensa á integridade física - Arma de fogo - Meio especialmente perigoso - Motivo torpe - Ne bis in idem - Suspensão da execução da pena

1 - Mesmo em relação a crimes de ofensa à integridade física, o uso de arma de fogo só qualifica a conduta nos termos do art. 146.º, n.ºs 1 e 2 do CP, quando constitua meio especialmente perigoso, nos termos da alínea g) do n.º 2 do art. 132.º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
2 - É de qualificar o crime de ofensa à integridade física pelo art. 146.º n.ºs 1 e 2, com referência ao art. 132.º, n.º 2, alínea d) (motivo torpe), tendo o arguido agredido o ofendido por este, na qualidade de segurança de uma discoteca, o não ter deixado entrar, devido ao facto de esse arguido transportar uma suposta placa de haxixe, acabando no entanto por entrar depois de se ter desembaraçado da referida placa e tendo agredido aquele ofendido depois da hora do fecho, num parque de estacionamento, ao mesmo tempo que foi proferida a expressão dirigida ao mesmo ofendido: «Está aí o preto!»
3 - O facto de o uso de arma constituir agravante do crime de ofensa à integridade física não impede a condenação do arguido pelo crime autónomo de detenção ilegal de arma, não havendo ofensa do princípio «ne bis in idem».
4 - Tendo o arguido cometido o crime ainda durante o período de suspensão da execução da pena aplicada por outro crime, esse facto não impede que a pena aplicada pelo novo crime seja de novo suspensa, se for de limite não superior a três anos, mas exige uma maior fundamentação no tocante ao juízo de prognose favorável em que se baseia o pressuposto material dessa pena de substituição.
Ac. do STJ de 19-1-2006, Proc. n.º 3796/05-5, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa, com declaração de voto do Cons. Carmona da Mota, que entende que o meio é particularmente perigoso, considerando que se trata de ofensas à integridade física.

Homicídio qualificado - Recurso para a Relação - Matéria de facto - Omissão de pronúncia
1 - Tendo o próprio recorrente invocado na contestação declarações por si produzidas no inquérito, levantando uma questão sobre a plenitude das suas capacidades intelectuais, não podia pretender que o tribunal se não servisse delas para responder à questão colocada; conhecendo dessas declarações para responder à questão, o tribunal não cometeu nenhuma nulidade.
2 - Tendo o recorrente impugnado a matéria de facto relativamente a quase todos os factos dados como provados e constitutivos do crime de homicídio, concretizando os pontos da sua discordância e indicando as provas que no seu entender levariam a decisão diferente, foi cometida a nulidade por omissão de pronúncia, se o tribunal «a quo» se limitou a fazer um mero controle do processo de convicção do tribunal de 1ª instância, sem ter nunca aflorado a decisão da matéria de facto, salvo de uma forma abstracta.
3 - Quando se põe em causa a matéria de facto com tal amplitude, recorrendo-se à prova produzida em julgamento, é exactamente para confrontar a valoração feita pelo tribunal com aquela que o recorrente lhe opõe (a qual tem que ser devidamente fundada, é claro, em considerações adequadas sobre a prova produzida), não podendo o tribunal de recurso refugiar-se a em considerações genéricas e abstractas em matéria de convicção, e limitar-se ao controle do processo lógico e em concordância com as regras gerais da experiência em que aquela se apoiou, e a uma reafirmação em termos gerais do decidido em matéria de facto.
Ac. do STJ de 19-01-06, Proc. n.º 2917-05, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa

domingo, 22 de janeiro de 2006

Justiça Constitucional


garantias de processo criminal
direito de recurso
recurso da matéria de facto
gravação da prova

Decisão: Não julga inconstitucionais as normas constantes dos artigos 411.º, n.º 1, e 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que o prazo de interpo­sição de recurso penal em que se questione a decisão da matéria de facto e em que se proce­deu a gravação da prova produzida em audiência se conta da data em que o arguido, agindo com a diligência devida, podia ter acesso ao suporte material da prova gravada, e não da data em que foi disponibilizada a transcrição dessa gravação.

Sumário:
I – O critério seguido na jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade de normas relativas ao início do prazo para apresentação do reque­rimento de interposição de recurso em processo penal, que deve, por regra, conter a respectiva motivação (ou ao início do prazo para apresentação da motivação do recurso, quando esta possa ser posterior à interposição, como sucede no caso de interposição, por simples declaração na acta, de recurso de decisão proferida em audiência), tem sido o de que tal prazo só se pode iniciar quando o arguido (assistido pelo seu defensor), actuando com a diligência devida, fi­cou em condições de ter acesso ao teor, completo e inteligível, da decisão impugnanda, e, nos casos em que pretenda recorrer também da decisão da matéria de facto e tenha havido registo da prova produzida em audiência, a partir do momento em que teve (ou podia ter tido, ac­tuando diligentemente) acesso aos respectivos suportes, consoante o método de registo utili­zado (escrita comum, meios estenográficos ou estenotípicos, gravação magnetofónica ou au­dio‑visual).
II – Não viola o direito ao recurso em processo penal, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o entendimento de que o prazo de interpo­sição de recurso em que se questione a decisão da matéria de facto e em que se proce­deu a gravação magnetofónica da prova produzida em audiência se conta da data em que o arguido, agindo com a diligência devida, podia ter acesso ao suporte material da prova gravada, e não da data em que foi disponibilizada a transcrição dessa gravação; na verdade, a transcrição tem por finalidade facilitar ao tribunal superior a apreciação, nos limites do recurso, da prova documentada, e já não habilitar o recorrente a elaborar a sua motivação, pois para este efeito lhe basta, para lá da assistência e intervenção em toda a audiência de julgamento e do conhecimento do teor integral da decisão condenatória, o acesso às gravações da prova produzida, sendo, aliás, em relação a estes suportes técnicos, e não à sua posterior transcrição, que devem ser feitas as especificações exigidas nas alínea b) e c) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Acórdão n.º 17/2006
Proc. n.º 383/2004
Data: 6 de Janeiro de 2006
Relator: Cons. Mário Torres


pedido de aclaração

Decisão: Indefere pedido de aclaração.

Sumário:
O pedido de aclaração de decisões judiciais visa o es­clarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade de que a decisão aclaranda pa­deça (a decisão é obscura quando contém algum trecho cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes), sendo inadmissível a sua utilização para as partes mani­festarem a sua discordância com a decisão e tentarem obter a sua alteração por supostamente ter incorrido em erro de julgamento.
Acórdão n.º 20/2006
Proc. n.º 570/2005
Data: 6 de Janeiro de 2006
Relator: Cons. Mário Torres


remição obrigatória de pensões por acidentes de trabalho
direito à justa reparação de acidentes de trabalho

Decisão: Julga inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Cons­tituição da República Portuguesa, a norma do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, interpretada no sentido de impor a remição obrigatória total de pen­sões vitalícias atribuídas por incapacidades parciais permanentes do trabalhador/sinistrado, nos casos em que estas incapacidades excedam 30%.

Sumário:
I – Tendo o estabelecimento de pensões por incapacidade em vista a compensação pela perda de capacidade de trabalho dos trabalhadores devida a infortúnios de que foram alvo no ou por causa do desempenho do respectivo labor, compreende‑se que, se uma tal perda não foi por demais acentuada e, assim, não afecta significativamente a conti­nuação do desempe­nho da sua actividade laboral, se permita que a compensação correspon­dente à pensão que lhe foi fixada (cujo quantitativo, em regra, de pouco relevo, se de­grada com o passar do tempo) possa ser “transformada” em capital, a fim de ser aplicada em finali­dades económicas porventura mais úteis e rentáveis do que a mera percepção de uma “renda” anual cujo quan­titativo não pode permitir qualquer subsistência digna a quem quer que seja.
II – Porém, quando em causa estiverem aci­dentes de trabalho cuja gravidade acentuadamente di­minuiu a capacidade laboral do sinistrado e, reflexamente, a possibilidade de auferir salário condigno com, ao menos, a sua digna subsistência, servindo a pensão de complemento à parca (e por vezes nula) remuneração que aufere em consequência da reduzida capacidade de tra­balho, então a aplicação de um capital, mesmo que no momento em que é feito aparente ser um inves­timento adequado, porquanto proporcionador de um rendimento mais satisfatório do que o correspondente à percepção da pensão anual, é sempre algo que, por ser aleatório, com­porta riscos.
III – Neste último tipo de situações, tornar legalmente obrigatória a remição signi­fica­ria privar o trabalhador da faculdade de ponderar se é menos arriscado continuar a receber a pensão e recusar a remição, impondo‑lhe a assunção de um risco que, com a extensão que a dimensão normativa ad­mite, torna precário e limita o direito dos trabalhadores a uma justa re­paração, quando vítimas de acidente de trabalho.
IV – Assim, a remição total obrigatória – isto é, independentemente da vontade do beneficiário – de uma pensão vitalícia atribuída por uma incapacidade parcial permanente su­perior a 30% é inconstitucional por violação do direito à justa reparação por acidente de tra­balho, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição.
Acórdão n.º 58/2006
Proc. n.º 982/2005
Data: 18 de Janeiro de 2006
Relator: Cons. Mário Torres


suspensão de execução fiscal
execução de dívidas de recursos próprios comunitários
direitos aduaneiros
princípio da igualdade
direito de acesso aos tribunais
garantias dos contribuintes

Decisão: Não julga inconstitucional a norma do n.º 6 do artigo 169.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, que exclui a aplicação do disposto nesse artigo quanto à suspensão da execução fiscal quando se trate de “dívidas de recursos próprios comunitários”

Sumário:
I – A norma do n.º 6 do artigo 169.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, que exclui a aplicação do disposto nesse artigo quanto à suspensão da execução fiscal quando se trate de “dívidas de recursos próprios comunitários”, encontra a sua fundamentação na necessidade de, estando em causa execução fiscal de dívidas de recursos próprios comuni­tários, designadamente direitos aduaneiros, acatar a regra, constitucionalmente aceite, da prevalência da regulamentação comunitária sobre o direito or­dinário interno.
II – Esta regulamentação comunitária compreende, porém, a remissão para a legis­la­ção dos Estados membros, designadamente, quanto à designação da autoridade aduaneira compe­tente para apreciar, numa primeira linha, o recurso das decisões ligadas à aplicação da legisla­ção aduaneira, quer da instância (autoridade judiciária ou órgão especializado indepen­dente) competente para apreciar uma segunda linha desse recurso e sua tramitação (cf. artigos 243.º, n.º 2, e 245.º do Código Aduaneiro Comunitário).
III – Assim, apesar da inaplicabilidade directa do regime dos n.ºs 1 a 5 do artigo 169.º do CPPT à suspensão da execução das decisões aduaneiras, assiste ao interessado, caso a autoridade aduaneira competente não tome oficiosamente a ini­ciativa de o fazer, o direito de lhe requerer essa suspensão, em prazo não inferior aos prazos das impugnações administrativa ou contenciosa que no caso caibam, e a fixação de prazo para prestação da garantia (se não for dispensada), prestação de garantia esta que, no caso de já ter sido instaurada execução, tem o efeito imediato de a suspender; por ou­tro lado, da eventual decisão da autoridade aduaneira de indeferimento desse pedido de sus­pensão cabe impugna­ção imediata para os tribunais tributários (uma vez que o recurso admi­nistrativo que no caso caiba terá natureza facultativa), no âmbito da qual pode ser salvaguar­dado o efeito útil do seu eventual provimento.
IV – Embora a competência do Tribunal Constitucional se cinja à apreciação da constitucionalidade da norma do n.º 6 do artigo 169.º do CPPT, a tomada em consideração dos traços essenciais do sistema que, em substituição do regulado nos precedentes números desse preceito, é aplicável, por força desse n.º 6, à suspen­são da execução das decisões aduaneiras, permite concluir que a parcial diferen­ciação de regi­mes assenta em fundamentação racional, que afasta a violação dos princípios da igualdade, da “coerência do sistema” e da não discriminação; e, por outro lado, que a imediata im­pugnabilidade judicial da decisão que indefira o pedido de suspensão da execução da decisão de imposição de direitos aduaneiros, com os efeitos atrás referidos, assegura o respeito dos direitos de acesso aos tribunais e de tutela jurisdicional efectiva, sem afronta aos princípios da proporcionalidade, da justiça e da equidade e sem intolerável postergação dos di­reitos e ga­rantias dos contribuintes, como os consagrados nos artigos 20.º, n.º 4, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Acórdão n.º 60/2006
Proc. n.º 309/2005
Data: 18 de Janeiro de 2006
Relator: Cons. Mário Torres

O Presidente da República eleito e a reforma da justiça

(...) As dificuldades de reforma da justiça não são intelectuais ou técnicas. São políticas e traduzem uma luta muito séria entre corpos e interesses, mas também revelam o grau de envolvimento paralisante de partidos, de legisladores, de governantes e de altos funcionários. Por isso, sem uma actuação do Presidente da República, isto é, sem uma actuação exterior ao sistema, pouco ou nada se resolverá. Se o Presidente eleito se considerar como fazendoi parte do sistema, então poderemos abandonar toda a esperança.(...)
António Barreto PÚBLICO22JAN2006

sábado, 21 de janeiro de 2006

Jurisprudência Constitucional


garantias de processo criminal
direito de recurso
direito de acesso aos tribunais
decisão sumária
questão simples
Decisão:
Indefere reclamação para a conferência contra decisão sumária que não julgou inconstitucional, face aos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido, em recurso, pelas Relações, que con­firmem (mesmo que parcialmente, desde que in melius) decisão da 1.ª instância, quando o limite máximo da moldura penal dos crimes, individualmente considerados, por que o arguido foi condenado não ultrapasse 8 anos de prisão.

Sumário:
I – Resulta do n.º 1 do artigo 78.º‑A da Lei do Tribunal Constitucional que, entre outras, se consideram “simples”, assim possibilitando a prolação de decisão sumária pelo relator, as questões de constitucionalidade que já foram objecto de anteriores decisões do Tribunal Constitucional, mesmo que nessas decisões não tenham sido especificamente apreciados todos os argumentos agora aduzidos pelo recorrente.
II – Para o referido efeito, é igualmente irrelevante que essas questões continuem a ser suscitadas por diversos recorrentes, que a matéria regulada pela norma em causa respeite a direito fundamental ou que persistam divergências nos tribunais judiciais ao nível da interpretação dessa norma.
III – Não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a correcção da interpretação do direito ordinário feita pela decisão recorrida, mas tão‑só apurar se essa interpretação, que recebe como um dado da questão, é, ou não, conforme às normas e princípios constitucionais.
IV – Não impondo a Constituição um triplo grau de jurisdição (nem no artigo 20.º, n.º 1, para a generalidade dos processos, nem no artigo 32.º, n.º 1, especificamente para o processo criminal), não é inconstitucional a interpretação da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, no sentido de que é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido, em recurso, pelas Relações, que con­firmem (ainda que parcialmente, desde que in melius) decisão da 1.ª instância, quando, em caso de concurso de infracções, o limite máximo da moldura penal dos crimes, individualmente considerados, por que o arguido foi condenado não ultrapasse 8 anos de prisão.
Acórdão n.º 2/2006
Proc. n.º 954/2005
Data: 3 de Janeiro de 2006
Relator: Cons. Mário Torres



concurso de infracções
pena única
não manutenção de suspensão de execução de pena de prisão
princípio da intangibilidade do caso julgado
princípio da necessidade das penas
princípio do juiz natural
princípio do contraditório
Decisão:
Não julga inconstitucionais as normas dos artigos 77.º, 78.º e 56.º, n.º 1, do Código Penal, interpretados no sentido de que, ocorrendo conhecimento superveniente de uma situação de concurso de infracções, na pena única a fixar pode não ser mantida a suspensão da execução de penas parcelares de prisão, constante de anteriores condenações.

Sumário:
I – Para a punição do concurso de infracções, o legislador português optou pelo sistema da pena conjunta, de acordo com o princípio da exasperação ou agravação: a pena aplicável ao concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas aos vários crimes e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão e 900 dias de multa.
II – Ocorrendo conhecimento superveniente da situação de concurso, o legislador optou pela aplicação do mesmo sistema, através da imposição de uma “pena única”, em detrimento da possibilidade de adoptar um sistema de acumulação material de penas.
III – O entendimento de que, ocorrendo conhecimento superveniente de uma situação de concurso de infracções, na pena única a fixar pode não ser mantida a suspensão da execução de penas parcelares de prisão, constante de anteriores condenações (mesmo que transitadas em julgado, mas desde que as respectivas penas ainda não estejam cumpridas, prescritas ou extintas), não viola o princípio do juiz natural (com o argumento de a fixação da pena única, da competência do tribunal da última condenação, implicar a “revogação” da suspensão da execução da pena de prisão, para a qual era competente o tribunal da execução desta pena), pois, para o aludido entendimento, do que se trata é de proceder à efectivação do cúmulo jurídico e o tribunal para tal competente (o da última condenação) encontra‑se pré‑determinado na lei.
IV – O mesmo entendimento não viola o princípio do contraditório, pois a lei, no caso de conhecimento superveniente de uma situação de concurso de infracções, impõe a realização de uma audiência do tribunal especificamente para esse efeito, com presença obrigatória do defensor, determinando o tribunal os casos em que também o arguido deve estar presente.
V – Embora não esteja explicitamente previsto na Constituição, o princípio da intangibilidade do caso julgado é inerente ao princípio do Estado de direito na sua dimensão de princípio de garantia de segurança e certeza jurídicas; não se trata, porém, de princípio absoluto, embora o legislador não seja inteiramente livre, quer na escolha dos mecanismos susceptíveis de modificar uma decisão judicial que a própria lei já considerara definitiva, quer na selecção das decisões susceptíveis de constituírem caso julgado.
VI – Segundo a interpretação normativa questionada, a hipótese de uma pena de prisão suspensa na sua execução, anteriormente aplicada a um dos crimes em concurso, vir a perder autonomia e a ser englobada na pena única correspondente ao concurso supervenientemente conhecido, constitui, a par das hipóteses previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º do Código Penal, um caso em que é legalmente admitido “revogar” ou “não manter” a suspensão, pelo que ou nem sequer constituiria violação de caso julgado, atenta a conatural provisoriedade da suspensão da execução da pena de prisão, ou estaria materialmente fundada em ponderosas razões de política criminal, que privilegiam (por considerada mais justa face ao critério da culpa e às preocupações de prevenção em que se funda o sistema punitivo), o sistema da pena conjunta, em detrimento do sistema da acumulação material.
VII – O aludido entendimento também não viola o princípio da necessidade das penas, quer pela última razão exposta, quer porque a decisão (final) de manter, ou não, a suspensão da execução da pena de prisão assenta justamente num juízo, reportado à pena única e atendendo à situação do condenado no momento dessa última decisão, sobre a adequação e suficiência, face às finalidades da punição, da simples censura do facto e da ameaça da prisão.
Acórdão n.º 3/2006
Proc. n.º 904/2005
Data: 3 de Janeiro de 2006
Relator: Cons. Mário Torres


escutas telefónicas
recolha de imagem e voz
restrição de direito fundamental
princípio da proporcionalidade
Decisão:
Não julga inconstitucional a interpretação conjugada das normas dos artigos 126.º, n.º 3, 187.º, n.º 1, 188.º, n.ºs 1 a 4, e 189.º do Código de Processo Penal, no sentido de que – desde que adequadamente assegurado o acompanhamento judicial da efectivação da operação – o prazo de duração das intercepções se conta a partir da data do início da sua efectivação, não é exigível a imediata elaboração de autos de início de gravação, nem de auto de gravação das intercepções após a gravação de cada uma das conversações interceptadas, nem a fixação de um prazo máximo rígido entre o fim da gravação (ou de fases dela) e a apresentação ao juiz do respectivo auto, e de que não é imposta a imediata desmagnetização das gravações das intercepções consideradas sem interesse pelo juiz; e não julga inconstitucional a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, e 187.º a 190.º do Código de Processo Penal, que não considera ferida de nulidade a recolha de imagens e voz que, apesar de ter sido judicialmente autorizada sem fixação expressa do prazo de duração, se processou e terminou sempre com efectivo e atempado controlo judicial da execução da operação.

Sumário:
I – O n.º 4 do artigo 34.º da Constituição permite, embora com carácter de excepcionalidade, a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, impondo directamente como limitação tratar‑se de matéria de processo criminal e submetendo‑a a reserva de lei (mas não a sujeitando explicitamente a reserva de decisão judicial, como fizera no precedente n.º 2 quanto à entrada no domicílio dos cidadãos).
II – Representando a intercepção e gravação de conversações telefónicas uma restrição a um direito fundamental, esta restrição deve limitar‑se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, sem jamais diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição).
III – No presente caso, não se questionando o respeito dos requisitos elencados no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição (as intercepções foram determinadas no âmbito de um processo criminal visando a investigação de ilícitos que constam da enumeração legal dos crimes relativamente aos quais é lícito o uso deste meio de obtenção de prova, e todas elas foram, aliás, previamente objecto de autorização judicial), a eventual inconstitucionalidade das interpretações normativas impugnadas, todas elas reportadas aos termos em que se terá processado o acompanhamento judicial da execução da operação, apenas pode assentar em violação do princípio da propor­cionalidade aplicável às restrições dos direitos, liberdades e garantias.
IV – Tem o Tribunal Constitucional entendido que a especial dano­sidade da intromissão traduzida pela intercepção telefónica impõe uma intervenção subs­tancial do juiz no decurso da mesma, através de um acompanhamento contínuo e próximo temporal e materialmente da fonte, acompanhamento esse que comporte a possibilidade real de, em função do decurso da escuta, ser mantida ou alterada a decisão que a determinou, subli­nhando, contudo, que o exigente critério assumido não significa que toda a operação de escuta tenha de ser materialmente realizada pelo juiz, posição que corresponderia a uma visão maximalista, que o Tribunal não subscreve. O que se exige é, pois, um acompanhamento próximo e um controlo do conteúdo das conversações, com uma dupla finalidade: (i) fazer cessar, tão depressa quanto possível, escutas que se venham a reve­lar injustificadas ou desnecessárias; e (ii) submeter a um “crivo” judicial prévio a aquisi­ção processual das provas obtidas por esse meio.
V – Não é inconstitucional a interpretação conjugada das normas dos artigos 126.º, n.º 3, 187.º, n.º 1, 188.º, n.ºs 1 a 4, e 189.º do Código de Processo Penal, no sentido de que:
a) o prazo de duração das intercepções se conta a partir da data do início da sua efectivação, e não da data do despacho judicial que as autorizou, mostrando‑se a dilação entre as duas datas justificada por dificuldades técnicas e de comunicação entre as diversas entidades envolvidas;
b) não é imposta a imediata elaboração de autos de início de gravação, acrescendo que, no caso em análise, estes autos (aliás, legalmente não previstos) foram elaborados com dilações, justificadas por razões de ordem técnica, que não afectaram o acompanhamento judicial da operação;
c) não é imposta a imediata elaboração de auto de gravação das intercepções após a gravação de cada uma das conversações interceptadas, não se podendo considerar como implicando um intolerável descontrolo judicial da operação a fixação em 60 dias da duração máxima dos períodos de escuta autorizados, mesmo que acoplada ao entendimento de que, se nada for judicialmente determinado em sentido contrário, é no termo de cada período de escuta, e não logo a seguir a cada conversação interceptada, que deve ser elaborado o auto de gravação;
d) não é exigível a fixação de um prazo máximo rígido entre o fim da gravação (ou de fases dela) e a apresentação ao juiz do respectivo auto (cuja elaboração, após as alterações introduzidas pelo Decreto‑Lei n.º 320‑C/2000, de 15 de Dezembro, por ter de conter a indicação, pelo órgão de polícia criminal, das passagens consideradas relevantes para a prova, se tornou mais complexa e morosa), desde que os sucessivos prazos, quer entre os pe­ríodos de intercepções e as datas de elaboração dos correspondentes autos, quer entre estas datas e as datas de apresentação ao juízes de instrução criminal, quer entre estas últimas e as audições pessoais a que estes juízes procederam não se mostrem de tal forma di­latados que se possa questionar o respeito pela exigência do referido acompanhamento judi­cial, constitucionalmente exigível;
e) não é imposta a imediata desmagnetização das gravações das intercepções consideradas sem interesse pelo juiz, devendo, pelo contrário, considerar‑se constitucionalmente inadmissível a privação da possibilidade de o arguido, as pessoas escutadas e a acusação virem a requerer a transcrição de passagens das gravações não seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria, quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido de passagens anteriormente seleccionadas.
VI – Não é inconstitucional a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, e 187.º a 190.º do Código de Processo Penal, que não considera ferida de nulidade a recolha de imagens e voz que, apesar de ter sido judicialmente autorizada sem fixação expressa do prazo de duração, se processou e terminou sempre com efectivo e atempado controlo judicial da execução da operação.
Acórdão n.º 4/2006
Proc. n.º 665/2005
Data: 3 de Janeiro de 2006
Relator: Cons. Mário Torres

intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias
direito de acesso aos tribunais
tutela jurisdicional efectiva
Decisão:
Não julga inconstitucional a norma do artigo 109.º, n.º 1, Código de Pro­cesso nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, en­quanto condiciona o uso do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias à impossibilidade ou insuficiência, nas circunstâncias do caso, para o asseguramento do exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, do decretamento provisório de uma providência cautelar.

Sumário:
I – O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, regulado nos artigos 109.º a 111.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, é um meio processual principal que se aplica perante situações de urgência na obtenção de uma decisão definitiva de mérito, que imponha à Administração a adopção de uma conduta, positiva ou negativa, considerada indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia.
II – Da parte final do n.º 1 do referido artigo 109.º – que condiciona a admissibilidade do uso do processo de intimação à impossibilidade ou insuficiência, para a apontada finalidade, do decretamento provisório de uma providência cautelar – resulta a subsidiariedade daquela figura face aos meios cautelares, de acordo com um critério que radica essencialmente na adequação, perante a situação concreta, de uma sentença provisória ou de uma sentença de mérito definitiva.
III – Assumindo natureza provisória a pretensão deduzida pelo requerente no processo de intimação (a intimação da entidade requerida para se abster de executar uma garantia bancária até ao trânsito em julgado da decisão judicial a proferir na acção administrativa especial em que foi impugnada a deliberação que determinara a reposição de quantia tida por indevidamente recebida), para a tutela da sua posição subjectiva eram suficientes e adequados os meios processuais de acção administrativa especial acoplada a providência cautelar, no âmbito da qual podia ser requerido decretamento provisório da providência, nos termos do artigo 131.º, n.º 1, do citado Código, meios processuais que o interessado efectivamente utilizou, embora sem sucesso quanto aos últimos.
IV – Neste contexto, a interpretação normativa acolhida na decisão recorrida, aliás em perfeita consonância com a literalidade do preceito legal, no sentido da inadmissibilidade do uso do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, não viola os direitos constitucionais de acesso aos tribunais e de tutela jurisdicional efectiva, direitos estes que são satisfeitos pela previsão legal de mecanismos processuais que possibilitem, de modo adequado e suficiente, aos interessados a defesa dos seus direitos perante os tribunais, mas obviamente não asseguram a todos eles o sucesso nas suas pretensões.
Acórdão n.º 5/2006
Proc. n.º 912/2005
Data: 3 de Janeiro de 2006
Relator: Cons. Mário Torres