sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

De profundis sobre uma Lei-Quadro de Política Criminal

A convite da Associação Forense de Santarém tivemos ontem a oportunidade de ouvir a defesa daquela Lei-Quadro feita pelo seu principal obreiro, o Presidente da Unidade de Missão, Mestre Rui Pereira.
Coincidência arreliadora – a Assembleia da República aprovava-a nesse momento, diz a Lusa, com os votos favoráveis do PS e CDS/PP, a rejeição do PCP e Verdes e a abstenção do PSD e BE.A primeira vontade era silenciar... e passar à frente. Mas o assunto não o merece, e nem a Assembleia da República pode tolher a liberdade de crítica.
Na verdade, passando em revista com mais detalhe a dita lei, crê-se serem pertinentes vários reparos (entretanto muitos já feitos, mas sem resultado):
1. É mais que duvidosa a sua legitimidade constitucional, não se percebendo como é possível encontrar fundamento no artigo 219º da CRP, onde apenas se prevê que o Ministério Público participe “na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania” (estender a noção de política criminal às prioridades da investigação criminal parece completamente fora do que tem sido entendido por política (legislativa) criminal).
2. Mas acima de tudo o que se detecta é um atentado flagrante ao princípio da separação de poderes. Ao Poder Judicial, por forma indirecta – já que ao condicionar a actuação do MP se está a filtrar, por meio de um camuflado princípio da oportunidade, este não previsto na lei, a intervenção do Poder Judicial. De forma directa, ao Poder Executivo, como órgão superior da administração, a quem cabe conferir condições e meios para que a Justiça faça cumprir as leis. E nada adianta invocar que seja o próprio Executivo a tomar a iniciativa da lei.
3. Não é aqui oportuno analisar cada um dos breves artigos que compõem o texto, mas não se resiste à menção de algumas incoerências ou hipocrisias: diz-se que compete ao Governo propor à AR “resoluções sobre os objectivos, prioridades e orientações de política criminal” (artigo 7º) – afirmação para que não se encontra fundamento – mas antes disse-se que isto não prejudica “o princípio da legalidade, a independência dos tribunais e a autonomia do MP” (artigo 2º) – afirmações, com o devido respeito, de fachada; que em relação à pequena criminalidade se podem definir tipos de crimes relativamente aos quais se aplicará a suspensão provisória do processo, o arquivamento com dispensa de pena, etc., para se acrescentar que isso não impede uma verificação casuística pelas “autoridades judiciárias competentes” (então quem houvera de fazer a análise? resultaria ope legis, directamente para o arquivo sem passar pelo MP?); que o MP conserva a sua autonomia – como se frisou – mas que assume os objectivos e adopta as prioridades e orientações constantes da AR (artigo 11º) – e se resolve não assumir?; que a avaliação das prioridades é feita com base em relatórios paralelos do Governo (leia-se Ministério da Justiça) e do PGR, podendo este ser ainda chamado à AR para “esclarecimentos” acerca do seu relatório.
4. Aquilo que realmente nos parece resultar da lei é que o Ministério da Justiça “alija a carga”, pelo menos naquilo que lhe cabe de angariação de meios e melhoria da organização subjacente à investigação criminal, abrigando-se debaixo da umbela da AR, que por seu lado “despromove” o Procurador-Geral da República e no seu conjunto o Ministério Público.
5. A ineficiência dos OPC em face da pequena criminalidade – que é muita (81% ouvimos ontem) e pode ter razões as mais diversas - passa agora a gozar da chancela da AR, ainda que se venha a dizer, emendando o texto, que se devem evitar as prescrições, etc. (os processos “não prioritários” serão remetidos para o amontoado daqueles que aguardam que os ofendidos descubram os autores dos delitos ou, quando os descobrem, talvez mesmo se substituam aos OPC para fazer a formalização atempada da investigação).
6. Uma lei desnecessária, um gasto de tempo que podia ser usado em tantas outras áreas e que no futuro vai potenciar mais conflitos do que clarificar situações. Aliás, não se sabe o que seria mais útil ao País, face a tanta descredibilização, na atitude do PGR.

Mas não há nada a fazer neste campo da operacionalidade do MP e dos OPC e mesmo das prioridades? É evidente que há e muito. Só que o caminho a percorrer era diferente e supunha que as entidades responsáveis por estas questões nacionais não vivem de costas voltadas. Este ambiente pernicioso, que tudo inquina, não pode ser ignorado.
A melhor organização, racionalização e reforço dos meios é essencial; como o é o reforço da formação e do apoio tecnológico, como o é a cooperação do MP com os OPC e o Governo, cada um na sua esfera de competência.
Para isto aquela Lei-Quadro era perfeitamente desnecessária: o MP/OPC terão de ser mais eficazes, o Governo tem de apoiar e a AR lá está para fiscalizar, desde logo e em primeira linha o Governo.
Oxalá nos enganemos, mas a dita Lei-Quadro introduziu mais um factor no “quadro” da perturbação na administração da Justiça.

Foi esforçada mas não convincente a defesa da lei feita pelo douto Presidente da Unidade de Missão para a Reforma Penal, que outrossim demonstrou muito fair play.

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