terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Limitação de mandatos: argumentos políticos e jurídicos (I)

PAULO RANGEL 

Público - 12/02/2013 - 00:00
Se a restrição tiver carácter absoluto em termos territoriais, ela nada tem de arbitrário ou desrazoável
1. O argumento democrático - dimensão teórica
Têm-se multiplicado as declarações no sentido de contestar a regra da limitação dos mandatos por ser contrária à democracia "genuína" e "verdadeira", que se traduz na livre expressão da vontade popular. O povo - esgrime-se - deveria ser totalmente livre para escolher os seus dirigentes, sem quaisquer constrangimentos artificiais ou de "secretaria". Aí se incluindo, adita-se, a possibilidade de reconduzir os eleitos nas funções respectivas indefinidamente. Eis um argumento que confunde a democracia com a demagogia e o populismo, as mais perigosas perversões dos regimes democráticos. A democracia - desde os alvores do pensamento ocidental - não se reduz à prevalência simples e acrítica da regra da maioria. A democracia, para o ser e como tal permanecer, obedece a princípios e a limites que visam impedir as tentações da concentração do poder e da eternização no poder. Daí que a democracia - que também toma o nome de república - deva respeitar o princípio republicano. A democracia não advém da realização perfeita de um princípio puro e abstracto, ela resulta da experiência longa e da vivência atribulada dos povos. Por isso mesmo, os regimes democráticos têm de se proteger contra os riscos de abuso do poder, mesmo daqueles que foram regularmente eleitos. A democracia não pode ser reduzida a uma ditadura da maioria (nacional ou local).
2. O argumento democrático - dimensão prática
Acresce que a democracia busca constantemente uma síntese equilibrada entre o valor da liberdade e o valor da igualdade. Em eleições democráticas, não está apenas em jogo dar tutela à liberdade de eleger e à liberdade de ser eleito. Está também em causa dar oportunidade a todos - tão igual quanto possível - de elegerem e de serem eleitos. É por de mais evidente que a organização dos processos eleitorais em torno de partidos e de máquinas partidárias confere uma vantagem inigualável aos membros da chamada "classe política" (gerando uma espécie de "oligarquia" ou "partidocracia"). É também evidente que os cidadãos já providos em cargos - e, especialmente, se ocupam o lugar por longo tempo - gozam de uma vantagem factual assinalável sobre todos os restantes. Estabelecer a limitação de mandatos e assegurar a sua renovação é, por isso, um modo de realizar a democracia na sua dimensão de igualdade. O desígnio da democracia não é só o de garantir a liberdade, mas também o de assegurar a igualdade e de evitar o abuso da liberdade. De resto, ensina a experiência que proteger irrestritamente a liberdade de candidatura dos que já ocupam uma função corresponde a limitar, no plano dos factos, a liberdade de todos os restantes que a ela tencionem aceder. A limitação da liberdade dos que já desempenham cargos políticos não pode sequer ser exagerada: ela vigora tão-só por um prazo curto e, na verdade, concerne a cidadãos que já gozaram efectivamente dessa liberdade por prazos bem longos.
3. O argumento constitucional
São muitos os que ainda assim se deixam impressionar com a invocação da Constituição e dos direitos fundamentais. E, já agora, com a necessidade de fazer uma interpretação "minimalista" das leis que restringem direitos e liberdades. O direito a ser eleito é um direito político essencial, pertencendo à categoria dos chamados "direitos, liberdades e garantias". Mas, a bem dizer e como todos os outros direitos, conhece limites. É o caso das chamadas "inelegibilidades", isto é, da incapacidade para ser candidato em certas circunstâncias. A lei pode, pois, estabelecer os termos e condições em que um cidadão pode ser candidato a uma eleição, desde que esses termos e condições não sejam arbitrários, desproporcionados ou irrazoáveis.
Debate-se, por estes dias, se a lei que limita a sucessão de mandatos autárquicos tem efeitos puramente territoriais ou se, ao invés, tem efeitos absolutos (válidos para qualquer autarquia). E proclama-se que, se a interpretação for no sentido do carácter absoluto do limite, ela será inarredavelmente inconstitucional. E sê-lo-á, diz-se, por não se poder admitir uma interpretação "extensiva" de uma norma legal que restringe direitos fundamentais... Eis o que não pode, em caso ou tempo algum, aceitar-se com este "automatismo" ou "simplismo".
O que tem de fazer-se é interpretar a norma em causa; não a dando, portanto, por interpretada à partida. É preciso, pois, ver qual é a intenção da lei (não a do legislador - que, como se sabe, de resto, ao tempo, ignorou a questão). Perscrutar, portanto, quais os fundamentos e as razões de ser da lei. E perceber se estes determinam uma restrição de carácter absoluto ou uma restrição de carácter territorial. Porque, valha a verdade, se a restrição operada pela lei tiver carácter absoluto em termos territoriais, ela nada tem de arbitrário, desproporcionado ou desrazoável. O presidente de câmara ou de junta que tenha exercido três mandatos num concelho ou freguesia não fica interdito de se candidatar a qualquer outra função ou de exercer qualquer outro cargo público. Ou seja a restrição é parcial, puramente parcial! Mais: está directamente relacionada com a função que exerceu efectivamente durante 12 anos (em detrimento, aliás, de outros cidadãos). Mas mais ainda: a restrição não será apenas parcial, será estritamente temporária! Passados quatro anos sobre a proibição, os visados já se podem candidatar à presidência de qualquer executivo autárquico, em qualquer circunscrição do país.
Será assim tão injusto, arbitrário e iníquo privar alguém do direito de ser eleito presidente de um qualquer executivo autárquico, por um período limitado, especialmente quando se sabe que esse alguém exerceu essas mesmas funções pelo menos durante 12 anos? E que, entretanto, é livre de exercer todas as restantes funções disponíveis no Estado? Será injusto, arbitrário e iníquo? É que inconstitucional não parece que seja...

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