segunda-feira, 1 de julho de 2013

Programa cautelar – justiça e rigor

Debate União Europeia
Guilherme d’Oliveira Martins
Na conferência que proferiu em Lisboa, Jacques Delors alertou para a necessidade de assumirmos, com todas as consequências, a partilha europeia de soberanias. Não pode haver soluções uniformes e generalizadas, cada Estado tem de encontrar o espaço próprio de ação e de autonomia e a União Europeia tem de assumir as suas responsabilidades, como fator de coesão, de coordenação económica e de justiça distributiva. Importa não esquecer que o Ato Único Europeu (1985) deu ênfase àquilo que António de Sousa Franco designou como “convergência social”, que não foi devidamente considerada no chamado Pacto de Estabilidade e Crescimento (1997). E se hoje ouvimos a afirmação de que as políticas de emprego são nacionais, não podemos esquecer que importa acrescentar algo mais: uma vez que os critérios europeus não podem limitar-se à estabilidade monetária e de preços.
Há uma ligação incindível entre a moeda e o emprego, assim como entre a disciplina orçamental e uma justa repartição de recursos. E o certo é que, mais do que procurar as razões pretéritas para saber como chegámos aqui, é indispensável delinear os caminhos de saída da depressão. Precisamos de reencontrar uma via de crescimento, de desenvolvimento, de coesão e de confiança.
Fala-se também de flexibilidade. Precisamos dela. Mas importa deixar claro que apostar nas despesas multiplicadoras de riqueza não poderá passar pelo descurar da disciplina das finanças públicas. Conhecemos bem os perigos das despesas sem sustentação. Nestes termos, torna-se fundamental pensar, desde já, num “programa cautelar”, amplamente concertado e participado, envolvendo o Estado e a sociedade, os partidos, os parceiros sociais e as forças vivas, capaz de ligar rigor e justiça.
E voltando às reflexões de Jacques Delors, é fundamental que os Parlamentos nacionais tenham um papel mais ativo e audacioso – coordenando ações de informação e de cooperação, e assegurando a aplicação efetiva do princípio de subsidiariedade. Ao contrário do que dizem alguns, cultivando o populismo protecionista, as economias nacionais só encontrarão o crescimento e o desenvolvimento se apostarem na criação de riqueza, em lugar da especulação, e se reforçarem a dimensão supranacional. Daí a importância da ligação entre legitimidade dos Estados e dos cidadãos.
A experiência dos anos trinta do século passado, além de trágica, demonstrou que a humilhação alemã em Versalhes (1919) e o nacionalismo conduziram à guerra. Pelo contrário, a lógica dos anos que se seguiram a 1945, assente na cooperação, permitiu um longo período de paz, que poderá ser interrompido se agora não houver inteligência e sabedoria. E que é um programa cautelar? É um conjunto de ações, que permitam garantir que, depois de um resgate, haja estabilidade nas soluções de controlo e eficácia na respetiva aplicação, com sobriedade, combatendo o gasto excessivo, o endividamento e a especulação.
Os Tribunais de Contas europeus, como instituições superiores de controlo, têm procurado contribuir para uma atitude cautelar, segundo os seguintes pontos: (i) aperfeiçoamento dos mecanismos (de controlo interno e externo), de auditoria e de acompanhamento das despesas públicas; (ii) institucionalização dos conselhos de finanças públicas, como órgãos independentes de controlo interno, dispondo de ampla informação (partilhada com os Tribunais de Contas), com uma função de alerta e de incentivo à transparência; (iii) reforço da coordenação das ações e métodos entre autoridades estatísticas e instituições de controlo; (iv) adequação dos prazos de aprovação das contas públicas aos calendários de reporte relativo aos défices excessivos; e (v) melhoria dos sistemas de informação, de consolidação de contas e de controlo do endividamento – de modo a assegurar o cumprimento do Tratado Orçamental. O facto de em Portugal o Conselho de Finanças Públicas ser designado por proposta do Tribunal de Contas e do Banco de Portugal tem permitido estabelecer uma relação de cooperação e de confiança que, por certo, facilitará no futuro a concretização de um plano cautelar, garantindo transparência e estabilidade de informação, no âmbito da normal alternância do poder democrático. Outros Estados estão a concretizar outros modelos de Conselhos de Finanças Públicas. No nosso caso, estamos mais adiantados, importando o reforço da articulação com a Assembleia da República, que dispõe da Unidade Técnica de Apoio Orçamental, segundo o “programa cautelar”. A chave da aplicação efetiva deste sistema é a verdade e a transparência. Só assim poderemos deixar a lógica fechada e rígida da austeridade e chegar à necessária sobriedade disciplinadora, credibilizando o rigor orçamental e demonstrando que este se deve transformar em fator de investimento, emprego e criação de riqueza, a partilhar com justiça.
Presidente do Tribunal de Contas e Presidente da Eurosai (Organização Europeia de Tribunais de Contas)
Público | Segunda, 01 Julho 2013

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