Já em tempos aqui deixei a minha discordância das listas públicas de “não pagantes” ao Fisco e à Segurança Social, num momento em que apenas se hipotisava a sua emissão.
Apesar do apoio na lei geral tributária, e das cautelas impostas pela CNPD, continuo a pensar que a publicitação de tais listas na Internet e em outros meios de comunicação, não está conforme nem com a Constituição nem com os valores civilizacionais que o mundo ocidental vem defendendo.
Disse a CNPD no Parecer nº 676 /2006, de 19 de Junho de 2006:
“Nesta medida, estando em presença de informação que contende com a intimidade da vida privada, com a reserva mais pessoal de cada indivíduo, a libertação do sigilo a tal respeitante deve constar expressamente da lei e “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” – cfr. artº 18º da CRP.
Surge assim inquestionável que as medidas restritivas devem ser proporcionais ao fim visado, corresponder a um motivo social imperioso ou a motivos pertinentes e suficientes, ser as menos gravosas das disponíveis e corresponder a um justo equilíbrio entre o interesse público e a vida privada”. E concluiu que tal divulgação é adequada, pertinente e proporcional.
Não vi fundamentação bastante da CNPD para chegar a tal conclusão e para dar luz verde à medida, perante a CRP e a LNPD. Antes pelo contrário.
Já então dizíamos que o pagamento de impostos deve ser exigido a todos na medida do que for justo. E que o Estado tem a obrigação de providenciar pela cobrança usando os meios legítimos.
Mas em face dos valores que suportam a vivência numa sociedade em que se pressupõe que cada cidadão goza de um reduto de dignidade que não pode ser atingido, é admissível envergonhá-lo publicamente deste modo (não vale dizer que já não tem vergonha)? Está de acordo com o princípio da tolerância, ou o da preservação da vida privada? Esta forma de pressão/prevenção é proporcionada aos interesses que estão em jogo?
De modo algum se procura encapotar aqueles que, podendo, não pagam ao Fisco ou os que pagam quantias irrisórias face aos seus proventos, mas não será correcto dar guarida com estes meios a uma Administração Fiscal que muitas vezes age preguiçosamente na procura dos incumpridores ou da informação actualizada.
Por exemplo, informei anos seguidos que um cidadão já tinha falecido, mas foi necessário deslocar-me à Repartição de Finanças para confirmar de viva voz o facto, único meio de evitar a remessa de mais papéis.
Vem agora o presidente do Tribunal de Contas, Oliveira Martins, parece-nos que em manifesto contraponto mas no sentido correcto, anunciar a divulgação, ainda este trimestre, de uma lista de empresas com boas práticas fiscais, algumas das quais serão convidadas a explicar publicamente essas práticas.
Haverá “sessões públicas em que essas empresas serão convidadas a dizer-nos por que razão têm aqueles procedimentos positivos e em que medida é que esse procedimento conduziu ao sucesso da empresa".
Aqui está uma forma positiva de levar a água ao moinho.
Cada vez mais se sabe que o Estado é um “mau pagador” e por isso alguns reivindicam que se afixem as listas destas situações.
quinta-feira, 28 de setembro de 2006
Novo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Acaba de ser eleito Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Juiz Conselheiro Luis Noronha do Nascimento.
Só não participou na eleição um dos juízes, tendo sido o seguinte, o resultado:
53 votos no candidato eleito
2 votos no Conselhro Duarte Soares (vice-Presidente)
1 voto no Conselheiro Henriques Gaspar (Vive-Presidente)
1 voto no Conselheiro Pereira Girão
1 voto nulo
14 votos brancos
O Conselheiro Noronha Nascimento que presidia à 2.ª Secção (Cível), nasceu em 1943, no Porto e foi nomeado para o STJ a 14 de Setembro de 1998
Foi Delegado do Procurador da República nas Comarcas de Paredes, Pombal e Santo Tirso.
Foi Juiz de Direito em Trancoso, Marco de Canavezes, Vila Nova de Famalicão, Vila Nova de Gaia e Porto.
Foi Juiz-Desembargador no Tribunal da Relação de Lisboa.
Foi Vogal do Conselho Superior da Magistratura (1989/1990) e seu Vice-Presidente (2001/2004).
Também foi membro da Direcção Nacional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (1984/1988) e seu Presidente (1992/1996).
Só não participou na eleição um dos juízes, tendo sido o seguinte, o resultado:
53 votos no candidato eleito
2 votos no Conselhro Duarte Soares (vice-Presidente)
1 voto no Conselheiro Henriques Gaspar (Vive-Presidente)
1 voto no Conselheiro Pereira Girão
1 voto nulo
14 votos brancos
O Conselheiro Noronha Nascimento que presidia à 2.ª Secção (Cível), nasceu em 1943, no Porto e foi nomeado para o STJ a 14 de Setembro de 1998
Foi Delegado do Procurador da República nas Comarcas de Paredes, Pombal e Santo Tirso.
Foi Juiz de Direito em Trancoso, Marco de Canavezes, Vila Nova de Famalicão, Vila Nova de Gaia e Porto.
Foi Juiz-Desembargador no Tribunal da Relação de Lisboa.
Foi Vogal do Conselho Superior da Magistratura (1989/1990) e seu Vice-Presidente (2001/2004).
Também foi membro da Direcção Nacional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (1984/1988) e seu Presidente (1992/1996).
quarta-feira, 27 de setembro de 2006
Casa da Suplicação LXXVIII
Como foi oportunamente publicado no Diário da República, entrei em situação de equiparado a bolseiro até 31 de Dezembro de 2006, pelo que deixarei, até lá, de relatar acórdãos, o que não significa que deixe de ser feita referência aos acórdãos proferidos e que os Relatores me façam chegar, com o sumário já elaborado, pois mantenho a disponibilidade de sempre.
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Roubo agravado – Regime penal especial para jovens – Antecedentes criminais
1 - As razões que fundamentalmente nos devem orientar na opção pelo regime penal especial para jovens são de ressocialização do jovem condenado, as quais sobrelevam razões de culpa e de ilicitude.
2 - A lei apenas estabelece um pressuposto, para além da idade do condenado: a existência de sérias razões para crer que da atenuação especial resultarão vantagens para a sua reinserção social.
3 - O facto de um arguido jovem ter sido anteriormente condenado por crimes idênticos e encontrar-se em regime de prova ao tempo da prática dos novos factos não é obstáculo decisivo a que se possa formular um juízo de prognose no sentido de que a atenuação especial da pena trás vantagens para a sua reinserção social.
Ac. do STJ de 21/9/2006, Processo n.º 2258/06–5, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa
Indemnização – Homicídio – Danos não patrimoniais – Dores sofridas pela vítima— Petição – Direito à vida
1 - Nada tendo sido peticionado em relação ao alegado dano não patrimonial pelo sofrimento da vítima de crime de homicídio, o tribunal não podia fixar qualquer indemnização.
2 - O facto de o pedido cível poder ser regido, na parte adjectiva, pelos princípios de investigação e da livre apreciação da prova, não significa que o tribunal possa substituir-se ao demandante na configuração do respectivo pedido.
3 - A lei vigente não define um direito autónomo à vida do feto.
4 - A mãe portadora do feto terá eventualmente direito a ser indemnizada pelo dano por ela sofrido com a representação ou sentimento (físico, psicológico) do sofrimento e da morte do nascituro, caso se aleguem e provem os respectivos factos.
5 - Para a computação dos danos não patrimoniais, há que atender não só ao tipo de culpa e de ilicitude, como a outras circunstâncias que reflictam a intensidade da dor ou do sofrimento causado, não só em relação à própria vítima, como também em relação às pessoas que têm direito a ser indemnizadas (se a morte foi lenta ou rápida, mais dolorosa ou menos dolorosa ou até indolor, situação em que se encontrava a vítima, como será o caso de ela estar grávida no momento do crime ), e isto não só para determinar os danos sofridos pela vítima, como também os suportados pelos familiares, uma vez que o padecimento da vítima se reflecte na dor que estes sentem.
6 - Não basta ser descendente para se estar vinculado à prestação de alimentos. É preciso que exista a obrigação de os prestar e esta só se efectiva com a necessidade dos alimentos.
Ac. do STJ de 21/9/2006, Processo n.º 1575/06–5, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa
1 - As razões que fundamentalmente nos devem orientar na opção pelo regime penal especial para jovens são de ressocialização do jovem condenado, as quais sobrelevam razões de culpa e de ilicitude.
2 - A lei apenas estabelece um pressuposto, para além da idade do condenado: a existência de sérias razões para crer que da atenuação especial resultarão vantagens para a sua reinserção social.
3 - O facto de um arguido jovem ter sido anteriormente condenado por crimes idênticos e encontrar-se em regime de prova ao tempo da prática dos novos factos não é obstáculo decisivo a que se possa formular um juízo de prognose no sentido de que a atenuação especial da pena trás vantagens para a sua reinserção social.
Ac. do STJ de 21/9/2006, Processo n.º 2258/06–5, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa
Indemnização – Homicídio – Danos não patrimoniais – Dores sofridas pela vítima— Petição – Direito à vida
1 - Nada tendo sido peticionado em relação ao alegado dano não patrimonial pelo sofrimento da vítima de crime de homicídio, o tribunal não podia fixar qualquer indemnização.
2 - O facto de o pedido cível poder ser regido, na parte adjectiva, pelos princípios de investigação e da livre apreciação da prova, não significa que o tribunal possa substituir-se ao demandante na configuração do respectivo pedido.
3 - A lei vigente não define um direito autónomo à vida do feto.
4 - A mãe portadora do feto terá eventualmente direito a ser indemnizada pelo dano por ela sofrido com a representação ou sentimento (físico, psicológico) do sofrimento e da morte do nascituro, caso se aleguem e provem os respectivos factos.
5 - Para a computação dos danos não patrimoniais, há que atender não só ao tipo de culpa e de ilicitude, como a outras circunstâncias que reflictam a intensidade da dor ou do sofrimento causado, não só em relação à própria vítima, como também em relação às pessoas que têm direito a ser indemnizadas (se a morte foi lenta ou rápida, mais dolorosa ou menos dolorosa ou até indolor, situação em que se encontrava a vítima, como será o caso de ela estar grávida no momento do crime ), e isto não só para determinar os danos sofridos pela vítima, como também os suportados pelos familiares, uma vez que o padecimento da vítima se reflecte na dor que estes sentem.
6 - Não basta ser descendente para se estar vinculado à prestação de alimentos. É preciso que exista a obrigação de os prestar e esta só se efectiva com a necessidade dos alimentos.
Ac. do STJ de 21/9/2006, Processo n.º 1575/06–5, Relator: Cons. Artur Rodrigues da Costa
segunda-feira, 25 de setembro de 2006
Curioso e estranho escrito
Sob o título "Corrupção regressa à agenda da PGR", o Semanário publicou o seguinte e estranho escrito:
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Com Pinto Monteiro na Procuradoria-Geral da República é o regresso da seriedade, dos equilíbrios e do bom senso ao Ministério Público. É um verdadeiro 25 de Novembro na magistratura. A Justiça volta a ter um rumo e o Governo dá um sinal: a corrupção volta a ser prioridade depois do interregno Cunha Rodrigues/Souto Moura. É o grande acordo Cavaco/Sócrates para as prioridades da política criminal, na qual Marques Mendes não entrou. E o eanismo desforra-se do Bloco Central de Mário Soares. Mas os inimigos de Sócrates não param. Ferro Rodrigues, chefe da missão portuguesa junto da OCDE, convidou uma missão de combate à corrupção daquele organismo para fazer uma avaliação em Portugal. É a primeira vez que um Estado europeu se sujeita a tal humilhação, ao nível do Burkina Faso ou da Nigéria.
E o mais escandaloso é que é o embaixador português que prejudica a imagem de Portugal diante da perplexidade dos diplomatas da OCDE.
Foi uma longa interrupção, de mais de 15 anos. Desde a nomeação do conselheiro Cunha Rodrigues para a PGR, por acordo entre Almeida Santos e Fernando Nogueira, que a corrupção tinha sido afastada da agenda da PGR. Tudo acabou quando habilmente as competências da Alta Autoridade Para a Corrupção foram transferidas para o Ministério Público e a AACC extinta. A lógica era simples: a simples existência da Autoridade diminuía o Ministério Público. Optou-se pela sua extinção e o trabalho foi esquecido, emergindo primeiro o acordo do Bloco Central na gestão dos caos políticos, a começar no "caso Beleza" e a terminar no "caso da Virgula", todos destinados a assegurar a sucessão de Fernando Nogueira e a divisão de interesses nos partidos centrais.
Só que, com Cavaco Silva em Belém, regressa a lógica do eanismo: os equilíbrios, o bom senso, o 25 de Novembro no Estado, a lógica da oportunidade.
E o 25 de Novembro no Estado começa pela recondução dos juízes aos tribunais e do Ministério Público a um factor de coesão nacional e de confiança dos portugueses na investigação criminal, acabando a sensação de impunidade e de falta de justiça que o último procurador conseguiu transmitir ao País.
Pinto Monteiro ou o regresso do bom senso
É o regresso do bom senso, mas também uma escolha politicamente relevante, no que diz e no que não diz. Como velha manobra de última hora, o Ministério Público ainda tentou desacreditar o nome do juiz Pinto Monteiro, colocando uma notícia no "Sol", acusando-o falsamente de ser da "Maçonaria".
Não era nenhuma mensagem criptada da Opus Dei, como alguns fizeram constar, nem aí estava o dedo de Marques Mendes, o beneficiário do novo jornal do arquitecto José António Saraiva. Podia ser mesmo o PCP e o próprio Ministério Público a quererem desacreditar Pinto Monteiro, para que Cavaco Silva o evitasse. Para eles, Henriques Gaspar seria o melhor candidato: tecnicamente competente, era mais maleável à corporação do Ministério Público e prestava-se ao papel que Souto Moura representou.
Este até ao último momento acabou por ser o que o magistral e napoleónico Cunha Rodrigues sempre quis que fosse: um substituto menos sério, mas sem capacidade de liderança e que jamais apagasse o enorme legado do "il magnifico". Embora Souto Moura fosse um cultor das artes e um conservador da instituição, estava longe de ser o brilhante e florentino Cunha Rodrigues, talvez um dos magistrados mais politicamente preparados que o País conheceu, que soube gerir como ninguém a necessidade de sobrevivência de Paulo Portas e o seu projecto jornalístico: o "Independente", usando habilmente as relações e as fugas de informação com Helena Sanches Osório, a verdadeira obreira da demolição e do descrédito do cavaquismo. (Paulo Portas colocou tanto cuidado na morte do "Independente", usando ingenuamente a própria Inês Serra Lopes e o "Requiem" final - aquele lamentável último número - Ponto Final - de apologia e culto da personalidade de Paulo Portas (por que não reescrevendo a história a seu jeito e proveito?) e também humilhação de Serra Lopes - que até se esqueceu que Helena Sanches Osório é que foi a verdadeira autora da maioria das histórias políticas que fizeram o "Independente", ao contrário do que escreveu Pacheco Pereira, e que o projecto político era muito mais o de equilíbrio de poderes no Bloco Central, de que Cunha Rodrigues era o fiel, que o do populismo, que Paulo Portas oportunamente haveria de incorporar.
Cavaco e as "virtudes" eanistas
Só que essa habilidade já nem com Cavaco Silva pega e, na terça-feira, o Governo confirmava o acordo para a nomeação de Pinto Monteiro para o lugar de Souto Moura. Era um sinal que o Bloco Central Institucional estava a modificar as regras nascidas do Bloco Central, negociado sob os auspícios de Mário Soares e que se manteve no cavaquismo, com a negociação entre Almeida Santos e Fernando Nogueira, mas que ficaram sem dono a partir de Durão Barroso, com Nuno Morais Sarmento a interferir na justiça e Jorge Sampaio sem autoridade na área.
É neste contexto que começa a ser perceptível a falta de liderança do procurador e começam a aparecer alguns ajustes de contas, que utilizam a ingénua legislação sobre a iniciativa penal de António Costa, aprovada ainda no Governo de António Guterres, a propósito da luta antiterrorista.
Não havendo gestão de recursos, a iniciativa processual estava nas denúncias anónimas que os próprios procuradores faziam a uns e a outros, para vilmente acusarem a classe política e empresarial, ou que os jornais aproveitavam para fazer. Bastava lançar a suspeita de um crime económico, por exemplo, num jornal para imediatamente o inquérito ser aberto. Ora, este sistema veio permitir uma gestão discricionária dos processos, já que os recursos eram necessariamente escassos.
Mas houve um assunto em que sempre se colocou travão: a corrupção. É certo que estimativas nossas apontam para que, no ano de 2005, a corrupção em Portugal pode não ter ultrapassado, em todos os sectores de actividade somados, os 75 milhões de euros, colocando Portugal num dos países com incidência média de corrupção, relativamente ao PIB.
Mas, agitada, primeiro, pela esquerda justicialista, que Maria José Morgado se fez porta- voz, e, depois, pelos sampaístas, com os afastados Ferro Rodrigues e João Cravinho, a questão da corrupção passou a estar na agenda política actual, como essencial à dignificação da classe política, uma das prioridades do mandato presidencial de Aníbal Cavaco Silva, enunciado logo no seu discurso de posse (na linha, aliás, da "verticalidade" e "honestidade" do discurso da regeneração eanista e de Salgado Zenha, dos anos oitenta, exactamente, contra a alegada corrupção do Bloco Central liderado por Mário Soares).
É esta consciência que coloca o professor Cavaco Silva em Belém, muito longe do cavaquismo e muito próximo do eanismo, não sendo, por acaso, a escolha emblemática do próprio general Ramalho Eanes para primeira figura apoiante do Presidente da República na última campanha eleitoral.
Os sinais de Cavaco e Sócrates
Cavaco funciona hoje por sinais criptados, bem diferentes dos tabus do tempo do executivo. E Sócrates percebeu que tem em Cavaco Silva o melhor aliado: e a escolha de Pinto Monteiro, mesmo desagradando ao Ministério Público, apesar do enorme prestígio do magistrado, significa o retomar da linha de Costa Brás no combate à corrupção, um dos principais pilares conceptuais do eanismo.
Sócrates, de uma só nomeação, elimina o problema do Ministério Público, como ainda por cima trava as iniciativas do grupo sampaísta, que julgavam poder embaraçá-lo com a questão da corrupção e do facto dela não constar do Pacto para a Justiça assinado com o PSD.
O Governo estava ciente das manobras de Ferro Rodrigues em Paris, que tinha conseguido mandar a Lisboa uma incómoda missão da OCDE - a mesma que faz os pareceres sobre a corrupção nos países africanos e na América do Sul - para fazer inquéritos sobre a corrupção em Portugal e o facto da nossa legislação não seguir os ditados da OCDE, como acontece com todos os Governos ocidentais, obrigados a seguir as práticas legislativas inventadas pelos americanos e impostas por comodidade aos países democráticos desde a II Guerra Mundial.
A OCDE marcou a visita da sua missão a Lisboa para 2 a 5 de Outubro e, nomeadamente, quer saber por que é que a corrupção nos negócios em Portugal não está versada no Código Penal. Uma questão académica (ver editorial), mas que demonstra prioridades diversas no combate à corrupção. Um embaraço que antecipa, ao escolher Pinto Monteiro e, sobretudo, ao anunciar um novo Código Penal e, para 2007, a definição das prioridades da política criminal, ou seja, a escolha política da gestão dos recursos e dos meios de investigação, que são por definição sempre escassos. Mas o objectivo de Ferro Rodrigues é que saia um relatório de tal modo escandaloso e negro sobre a corrupção em Portugal, que possa colocar dificuldades políticas ao Governo socialista. Era a desforra, contra o aparelho, ainda que isso cause necessariamente prejuízos incalculáveis à imagem de Portugal no estrangeiro. E, pior, depois disso a OCDE proporá a sua estratégia para resolver o problema da corrupção alegadamente muito grave em Portugal, o que significa necessariamente também uma humilhação para o legislador nacional.
Neste contexto, era urgente agir. E a escolha de Pinto Monteiro foi um tiro directo na "estratégia suicida" de João Cravinho e de Ferro Rodrigues. O Governo, com a nomeação, retira margem de contestação à esquerda, espaço de manobra à missão da OCDE, cala o Ministério Público (e sobretudo o PCP dentro da PGR), que ainda alimentou a esperança de manipular Belém (com Henriques Gaspar) e, finalmente, cala a oposição interna sampaísta.
O 25 de Novembro chegou à PGR: o PCP tem os dias contados no Ministério Público.
Com Pinto Monteiro na Procuradoria-Geral da República é o regresso da seriedade, dos equilíbrios e do bom senso ao Ministério Público. É um verdadeiro 25 de Novembro na magistratura. A Justiça volta a ter um rumo e o Governo dá um sinal: a corrupção volta a ser prioridade depois do interregno Cunha Rodrigues/Souto Moura. É o grande acordo Cavaco/Sócrates para as prioridades da política criminal, na qual Marques Mendes não entrou. E o eanismo desforra-se do Bloco Central de Mário Soares. Mas os inimigos de Sócrates não param. Ferro Rodrigues, chefe da missão portuguesa junto da OCDE, convidou uma missão de combate à corrupção daquele organismo para fazer uma avaliação em Portugal. É a primeira vez que um Estado europeu se sujeita a tal humilhação, ao nível do Burkina Faso ou da Nigéria.
E o mais escandaloso é que é o embaixador português que prejudica a imagem de Portugal diante da perplexidade dos diplomatas da OCDE.
Foi uma longa interrupção, de mais de 15 anos. Desde a nomeação do conselheiro Cunha Rodrigues para a PGR, por acordo entre Almeida Santos e Fernando Nogueira, que a corrupção tinha sido afastada da agenda da PGR. Tudo acabou quando habilmente as competências da Alta Autoridade Para a Corrupção foram transferidas para o Ministério Público e a AACC extinta. A lógica era simples: a simples existência da Autoridade diminuía o Ministério Público. Optou-se pela sua extinção e o trabalho foi esquecido, emergindo primeiro o acordo do Bloco Central na gestão dos caos políticos, a começar no "caso Beleza" e a terminar no "caso da Virgula", todos destinados a assegurar a sucessão de Fernando Nogueira e a divisão de interesses nos partidos centrais.
Só que, com Cavaco Silva em Belém, regressa a lógica do eanismo: os equilíbrios, o bom senso, o 25 de Novembro no Estado, a lógica da oportunidade.
E o 25 de Novembro no Estado começa pela recondução dos juízes aos tribunais e do Ministério Público a um factor de coesão nacional e de confiança dos portugueses na investigação criminal, acabando a sensação de impunidade e de falta de justiça que o último procurador conseguiu transmitir ao País.
Pinto Monteiro ou o regresso do bom senso
É o regresso do bom senso, mas também uma escolha politicamente relevante, no que diz e no que não diz. Como velha manobra de última hora, o Ministério Público ainda tentou desacreditar o nome do juiz Pinto Monteiro, colocando uma notícia no "Sol", acusando-o falsamente de ser da "Maçonaria".
Não era nenhuma mensagem criptada da Opus Dei, como alguns fizeram constar, nem aí estava o dedo de Marques Mendes, o beneficiário do novo jornal do arquitecto José António Saraiva. Podia ser mesmo o PCP e o próprio Ministério Público a quererem desacreditar Pinto Monteiro, para que Cavaco Silva o evitasse. Para eles, Henriques Gaspar seria o melhor candidato: tecnicamente competente, era mais maleável à corporação do Ministério Público e prestava-se ao papel que Souto Moura representou.
Este até ao último momento acabou por ser o que o magistral e napoleónico Cunha Rodrigues sempre quis que fosse: um substituto menos sério, mas sem capacidade de liderança e que jamais apagasse o enorme legado do "il magnifico". Embora Souto Moura fosse um cultor das artes e um conservador da instituição, estava longe de ser o brilhante e florentino Cunha Rodrigues, talvez um dos magistrados mais politicamente preparados que o País conheceu, que soube gerir como ninguém a necessidade de sobrevivência de Paulo Portas e o seu projecto jornalístico: o "Independente", usando habilmente as relações e as fugas de informação com Helena Sanches Osório, a verdadeira obreira da demolição e do descrédito do cavaquismo. (Paulo Portas colocou tanto cuidado na morte do "Independente", usando ingenuamente a própria Inês Serra Lopes e o "Requiem" final - aquele lamentável último número - Ponto Final - de apologia e culto da personalidade de Paulo Portas (por que não reescrevendo a história a seu jeito e proveito?) e também humilhação de Serra Lopes - que até se esqueceu que Helena Sanches Osório é que foi a verdadeira autora da maioria das histórias políticas que fizeram o "Independente", ao contrário do que escreveu Pacheco Pereira, e que o projecto político era muito mais o de equilíbrio de poderes no Bloco Central, de que Cunha Rodrigues era o fiel, que o do populismo, que Paulo Portas oportunamente haveria de incorporar.
Cavaco e as "virtudes" eanistas
Só que essa habilidade já nem com Cavaco Silva pega e, na terça-feira, o Governo confirmava o acordo para a nomeação de Pinto Monteiro para o lugar de Souto Moura. Era um sinal que o Bloco Central Institucional estava a modificar as regras nascidas do Bloco Central, negociado sob os auspícios de Mário Soares e que se manteve no cavaquismo, com a negociação entre Almeida Santos e Fernando Nogueira, mas que ficaram sem dono a partir de Durão Barroso, com Nuno Morais Sarmento a interferir na justiça e Jorge Sampaio sem autoridade na área.
É neste contexto que começa a ser perceptível a falta de liderança do procurador e começam a aparecer alguns ajustes de contas, que utilizam a ingénua legislação sobre a iniciativa penal de António Costa, aprovada ainda no Governo de António Guterres, a propósito da luta antiterrorista.
Não havendo gestão de recursos, a iniciativa processual estava nas denúncias anónimas que os próprios procuradores faziam a uns e a outros, para vilmente acusarem a classe política e empresarial, ou que os jornais aproveitavam para fazer. Bastava lançar a suspeita de um crime económico, por exemplo, num jornal para imediatamente o inquérito ser aberto. Ora, este sistema veio permitir uma gestão discricionária dos processos, já que os recursos eram necessariamente escassos.
Mas houve um assunto em que sempre se colocou travão: a corrupção. É certo que estimativas nossas apontam para que, no ano de 2005, a corrupção em Portugal pode não ter ultrapassado, em todos os sectores de actividade somados, os 75 milhões de euros, colocando Portugal num dos países com incidência média de corrupção, relativamente ao PIB.
Mas, agitada, primeiro, pela esquerda justicialista, que Maria José Morgado se fez porta- voz, e, depois, pelos sampaístas, com os afastados Ferro Rodrigues e João Cravinho, a questão da corrupção passou a estar na agenda política actual, como essencial à dignificação da classe política, uma das prioridades do mandato presidencial de Aníbal Cavaco Silva, enunciado logo no seu discurso de posse (na linha, aliás, da "verticalidade" e "honestidade" do discurso da regeneração eanista e de Salgado Zenha, dos anos oitenta, exactamente, contra a alegada corrupção do Bloco Central liderado por Mário Soares).
É esta consciência que coloca o professor Cavaco Silva em Belém, muito longe do cavaquismo e muito próximo do eanismo, não sendo, por acaso, a escolha emblemática do próprio general Ramalho Eanes para primeira figura apoiante do Presidente da República na última campanha eleitoral.
Os sinais de Cavaco e Sócrates
Cavaco funciona hoje por sinais criptados, bem diferentes dos tabus do tempo do executivo. E Sócrates percebeu que tem em Cavaco Silva o melhor aliado: e a escolha de Pinto Monteiro, mesmo desagradando ao Ministério Público, apesar do enorme prestígio do magistrado, significa o retomar da linha de Costa Brás no combate à corrupção, um dos principais pilares conceptuais do eanismo.
Sócrates, de uma só nomeação, elimina o problema do Ministério Público, como ainda por cima trava as iniciativas do grupo sampaísta, que julgavam poder embaraçá-lo com a questão da corrupção e do facto dela não constar do Pacto para a Justiça assinado com o PSD.
O Governo estava ciente das manobras de Ferro Rodrigues em Paris, que tinha conseguido mandar a Lisboa uma incómoda missão da OCDE - a mesma que faz os pareceres sobre a corrupção nos países africanos e na América do Sul - para fazer inquéritos sobre a corrupção em Portugal e o facto da nossa legislação não seguir os ditados da OCDE, como acontece com todos os Governos ocidentais, obrigados a seguir as práticas legislativas inventadas pelos americanos e impostas por comodidade aos países democráticos desde a II Guerra Mundial.
A OCDE marcou a visita da sua missão a Lisboa para 2 a 5 de Outubro e, nomeadamente, quer saber por que é que a corrupção nos negócios em Portugal não está versada no Código Penal. Uma questão académica (ver editorial), mas que demonstra prioridades diversas no combate à corrupção. Um embaraço que antecipa, ao escolher Pinto Monteiro e, sobretudo, ao anunciar um novo Código Penal e, para 2007, a definição das prioridades da política criminal, ou seja, a escolha política da gestão dos recursos e dos meios de investigação, que são por definição sempre escassos. Mas o objectivo de Ferro Rodrigues é que saia um relatório de tal modo escandaloso e negro sobre a corrupção em Portugal, que possa colocar dificuldades políticas ao Governo socialista. Era a desforra, contra o aparelho, ainda que isso cause necessariamente prejuízos incalculáveis à imagem de Portugal no estrangeiro. E, pior, depois disso a OCDE proporá a sua estratégia para resolver o problema da corrupção alegadamente muito grave em Portugal, o que significa necessariamente também uma humilhação para o legislador nacional.
Neste contexto, era urgente agir. E a escolha de Pinto Monteiro foi um tiro directo na "estratégia suicida" de João Cravinho e de Ferro Rodrigues. O Governo, com a nomeação, retira margem de contestação à esquerda, espaço de manobra à missão da OCDE, cala o Ministério Público (e sobretudo o PCP dentro da PGR), que ainda alimentou a esperança de manipular Belém (com Henriques Gaspar) e, finalmente, cala a oposição interna sampaísta.
O 25 de Novembro chegou à PGR: o PCP tem os dias contados no Ministério Público.
quinta-feira, 21 de setembro de 2006
quarta-feira, 20 de setembro de 2006
Pena de perda da pensão
Acórdão n.º 442/2006 (DR 182 SÉRIE II de 2006-09-20) do Tribunal Constitucional: Não julga inconstitucional a norma constante do artigo 15.º, n.º 1, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, na parte em que permite que aos funcionários e agentes aposentados abrangidos por esse Estatuto possa ser aplicada, em caso de infracção disciplinar, a pena de perda da pensão por tempo igual à pena de inactividade que seria de aplicar não fora a situação de aposentação.
terça-feira, 19 de setembro de 2006
Novo Procurador-Geral da República
O Presidente da República vai nomear Juiz-Conselheiro Fernando José Pinto Monteiro para Procurador-Geral da República, estando a tomada de posse marcada para o próximo dia 9 de Outubro.
É a seguinte a nota informativa da Presidência da República relativa à decisão do Presidente Aníbal Cavaco Silva:
"Completando-se em 7 de Outubro próximo os 6 anos do mandato do actual Procurador-Geral da República, o Governo propôs a nomeação, para seu substituto, nos termos do art.º 133, alínea m) da Constituição, do Senhor Juiz-Conselheiro Dr. Fernando José Matos Pinto Monteiro.
A proposta mereceu o acordo do Presidente da República, tendo a posse sido fixada para 9 de Outubro."
19.09.2006
19.09.2006
Conferência Anual em Cambridge
Tem lugar, entre os dias 6 e 8 de Dezembro de 2006, em Cambridge, 3ª Conferência anual SCoPIC (For the study of the social contexts of pathways in crime):
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Assessing the role of individual differences and the environment in crime causation.
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The third annual SCoPiC conference will focus on empirical research and present key findings relevant to our understanding of the role of individual differences and the environment, and their interaction, in crime causation. The conference brings together world-leading researchers representing cutting-edge research projects to present novel and innovative findings. The conference should appeal to all scholars, policy-makers and practitioners interested in front-line knowledge about the causes of crime.
Para mais informações aceder a www.scopic.ac.uk.
segunda-feira, 18 de setembro de 2006
Homenagem ao Conselheiro Araújo de Barros
Teve lugar no passado sábado no Forúm da Maia um colóquio sobre o Segredo de Justiça integrado na homenagem ao saudoso amigo e magistrado, levada ao cabo pela Associação Jurídica da Maia e pela Câmara Municipal da Maia.
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Prestaram homenagem o Presidente da Câmara Municipal da Maia, e o Presidente da Associação Jurídica da Maia, Dr. João Fernando Ferreira Pinto, tendo agradecido, em nome da família o Juiz Dr. José Manuel Araújo de Barros.
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Na abordagem do tema tiveram intervenção os Professores Mário Monte da Escola de Direito da Univerdidade do Minho e André Leite da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, o Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça Manuel Simas Santos e o Procurador-Geral Adjunto Coordenador do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, Eduardo Maia Costa.
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As intervenções serã publicadas num dos números da Revista MaiaJurídica.
quinta-feira, 14 de setembro de 2006
O "ACORDO PARA A REFORMA DA JUSTIÇA"(1)
É credível, para um observador minimamente atento da política nacional, que o “Acordo político-parlamentar para a reforma da Justiça” celebrado entre o PS e o PSD constitua apenas a expressão pública de um outro, não público, sobre a nomeação do novo Procurador-Geral da República.
É constatável, para o mesmo observador, que este “Acordo”, que não suscitou grandes entusiasmos mesmo nas áreas políticas dos seus subscritores (o que reforça a ideia da sua natureza instrumental), tem o efeito de asfixiar o debate público e a reflexão alargada sobre a reforma do sistema de justiça e os concretos temas naquele referidos.
Já de há muito que a democracia não se esgota no mero jogo aritmético, e cada dia é mais óbvio que esta maneira de a conceber a empobrece e fragiliza.
É constatável, para o mesmo observador, que este “Acordo”, que não suscitou grandes entusiasmos mesmo nas áreas políticas dos seus subscritores (o que reforça a ideia da sua natureza instrumental), tem o efeito de asfixiar o debate público e a reflexão alargada sobre a reforma do sistema de justiça e os concretos temas naquele referidos.
Já de há muito que a democracia não se esgota no mero jogo aritmético, e cada dia é mais óbvio que esta maneira de a conceber a empobrece e fragiliza.
quarta-feira, 13 de setembro de 2006
Regime processual cível de natureza experimental
Os Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca de Almada, os Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto, os Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal da Comarca do Porto e os Juízos de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca do Seixal vão ser os primeiros a testar o regime processual experimental, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho.
É o que determina a Portaria n.º 955/2006, hoje publicada em Diário da República.
Boas experiências!
É o que determina a Portaria n.º 955/2006, hoje publicada em Diário da República.
Boas experiências!
segunda-feira, 11 de setembro de 2006
O novo CPP: prazos de Inquérito
Lembro-me, porque estava lá, quando em 1987 se redigiu o que viria a ser o art. 276º do CPP. Foi numa comissão presidida pelo Doutor Figueiredo Dias, incumbida de preparar um código que substituisse o CPP de 1929. Ganhou-se consciência de que estávamos a prever prazos de duração do inquérito e, aliás, também de prisão preventiva, largamente superiores àqueles que resultavam da lei anterior. O código da democracia iria ser, nesta parte, mais autoritário que o código da ditadura nacional. Por isso mesmo houve o cuidado de consagrar claramente, no nº 1 daquele art. 276º e na própria epígrafe do preceito, a expressão "prazos máximos" e "prazos de duração máxima", para que ficasse claro que aqueles eram os limites toleráveis para as averiguações pré-acusatórias.
Houve, porém, uma grave ingenuidade por parte da comissão: o não ter previsto expressamente o que sucederia no caso de aquele comando legal não ser cumprido e de os inquéritos se arrastarem, por isso, para além daqueles prazos. É certo que o código era muito explícito ao dizer que as ilegalidades que não fossem taxadas como nulidades eram, ao menos, irregularidades (art. 118º do CPP) e que as irregularidades determinavam a invalidade dos actos posteriores (art. 123º).
Só que aquilo com que os legisladores de então não contavam é que à sistemática e deliberada violação da lei sucedesse, como sanção, coisíssima nenhuma. Na verdade, a jurisprudência dos nossos tribunais, fingindo não reparar que, por duas vezes, o legislador havia dado indicações expressas de que se tratava de prazos máximos, rapidamente construiu a teoria de que se tratava, afinal, de prazos meramente ordenadores e não cominatórios, ou seja, que os magistrados os podiam desrespeitar sem qualquer consequência. Mesmo quando as coisas atingiram o abuso de surgirem acusações que tinham a fundamentá-las quase 10 anos de inquérito [repito, quase dez anos ], mesmo assim a miopia jurisprudencial não se impressionou.
Denunciei, tantas vezes quanto me foi possível, esta situação de legitimação da ilegalidade pelos que deviam ser os primeiros a cumpri-la. Claro que, para vergonha nossa, o CPP de 1929, talvez por ter na sua génese o espírito liberal do Doutor Beleza dos Santos, continha o melhor antídoto para prevenir abusos quanto ao desrespeito dos seus curtos prazos: é que, esgotado o prazo do corpo de delito ou instrução preparatória [assim se chamava o que hoje conhecemos por inquérito] abria-se automaticamente a instrução contraditória. Dito por outras palavras: o investigador tinha a seu benefício o segredo de justiça e a total ausência de intervenção dos outros sujeitos processuais na fase das aveiriguações que visavam preparar a acusação e enquanto se contivesse dentro do limite do prazo legal; esgotado este, e porque se abria a fase contraditória, podia continuar as suas averiguações mas já tinha perdido aquelas duas vantagens, pois o conhecimento dos autos abria-se aos sujeitos processuais e eles podiam nele ter intervenção.
O legislador do código que aí virá manteve incólume o sistema do código que pretende reformular. Diga-se que hoje há criminalidade muito mais complexa, mas não tentem enganar-nos fingindo que é toda. Diga-se que lutamos com grande falta de meios, mas essa ladaínha, que se arrasta há anos, já convence cada vez menos pessoas. Uma só coisa, neste particular, é uma exigência crucial do Estado de Direito: respeite-se a segurança jurídica, os direitos das pessoas, defina-se um prazo, vários prazos, o que quer que seja, mas estabeleça-se definitivamente que são para cumprir e quando se derem, como se tinham dado, indicações claras de que se trata de prazos máximos, não se consinta, nunca mais, a total falta de respeito que é o fingir que a lei é só para alguns cumprirem.
PS 1 - já sei que para certas pessoas o culpado dos processos não andarem é o excesso de garantismo e a intervenção dos advogados; o argumento aqui não serve, pois se há fase processual em que os advogados nem sabem o que se passa nem podem actuar, éprecisamente a do inquérito;
PS 2 - não me digam que, para colmatar os incumprimentos dos prazos, existe o incidente da aceleração processual, porque basta olhar para o art. 109º do CPP para ver que, em nome dele, o PGR pode ordenar tudo menos medidas concretas com incidência no processo. Trata-se de um incidente esvaziado, o que tem uma explicação histórica: é que na fase judicial do processo a competência para decidir a aceleração cabe ao CSM e se a lei permitisse que, em nome da aceleração, se pudessem tomar providências que significassem ordenar a prática de actos processuais, estaríamos a dar a um órgão administrativo, o CSM, competência para praticar actos de processo penal, o que seria inconstitucional. Ora por causa desta impossibilidade de o CSM intervir directamente no processo, ficou o PGR, por paridade de razão, incapacitado de o poder fazer na mesma conformidade.
Houve, porém, uma grave ingenuidade por parte da comissão: o não ter previsto expressamente o que sucederia no caso de aquele comando legal não ser cumprido e de os inquéritos se arrastarem, por isso, para além daqueles prazos. É certo que o código era muito explícito ao dizer que as ilegalidades que não fossem taxadas como nulidades eram, ao menos, irregularidades (art. 118º do CPP) e que as irregularidades determinavam a invalidade dos actos posteriores (art. 123º).
Só que aquilo com que os legisladores de então não contavam é que à sistemática e deliberada violação da lei sucedesse, como sanção, coisíssima nenhuma. Na verdade, a jurisprudência dos nossos tribunais, fingindo não reparar que, por duas vezes, o legislador havia dado indicações expressas de que se tratava de prazos máximos, rapidamente construiu a teoria de que se tratava, afinal, de prazos meramente ordenadores e não cominatórios, ou seja, que os magistrados os podiam desrespeitar sem qualquer consequência. Mesmo quando as coisas atingiram o abuso de surgirem acusações que tinham a fundamentá-las quase 10 anos de inquérito [repito, quase dez anos ], mesmo assim a miopia jurisprudencial não se impressionou.
Denunciei, tantas vezes quanto me foi possível, esta situação de legitimação da ilegalidade pelos que deviam ser os primeiros a cumpri-la. Claro que, para vergonha nossa, o CPP de 1929, talvez por ter na sua génese o espírito liberal do Doutor Beleza dos Santos, continha o melhor antídoto para prevenir abusos quanto ao desrespeito dos seus curtos prazos: é que, esgotado o prazo do corpo de delito ou instrução preparatória [assim se chamava o que hoje conhecemos por inquérito] abria-se automaticamente a instrução contraditória. Dito por outras palavras: o investigador tinha a seu benefício o segredo de justiça e a total ausência de intervenção dos outros sujeitos processuais na fase das aveiriguações que visavam preparar a acusação e enquanto se contivesse dentro do limite do prazo legal; esgotado este, e porque se abria a fase contraditória, podia continuar as suas averiguações mas já tinha perdido aquelas duas vantagens, pois o conhecimento dos autos abria-se aos sujeitos processuais e eles podiam nele ter intervenção.
O legislador do código que aí virá manteve incólume o sistema do código que pretende reformular. Diga-se que hoje há criminalidade muito mais complexa, mas não tentem enganar-nos fingindo que é toda. Diga-se que lutamos com grande falta de meios, mas essa ladaínha, que se arrasta há anos, já convence cada vez menos pessoas. Uma só coisa, neste particular, é uma exigência crucial do Estado de Direito: respeite-se a segurança jurídica, os direitos das pessoas, defina-se um prazo, vários prazos, o que quer que seja, mas estabeleça-se definitivamente que são para cumprir e quando se derem, como se tinham dado, indicações claras de que se trata de prazos máximos, não se consinta, nunca mais, a total falta de respeito que é o fingir que a lei é só para alguns cumprirem.
PS 1 - já sei que para certas pessoas o culpado dos processos não andarem é o excesso de garantismo e a intervenção dos advogados; o argumento aqui não serve, pois se há fase processual em que os advogados nem sabem o que se passa nem podem actuar, éprecisamente a do inquérito;
PS 2 - não me digam que, para colmatar os incumprimentos dos prazos, existe o incidente da aceleração processual, porque basta olhar para o art. 109º do CPP para ver que, em nome dele, o PGR pode ordenar tudo menos medidas concretas com incidência no processo. Trata-se de um incidente esvaziado, o que tem uma explicação histórica: é que na fase judicial do processo a competência para decidir a aceleração cabe ao CSM e se a lei permitisse que, em nome da aceleração, se pudessem tomar providências que significassem ordenar a prática de actos processuais, estaríamos a dar a um órgão administrativo, o CSM, competência para praticar actos de processo penal, o que seria inconstitucional. Ora por causa desta impossibilidade de o CSM intervir directamente no processo, ficou o PGR, por paridade de razão, incapacitado de o poder fazer na mesma conformidade.
domingo, 10 de setembro de 2006
Abracemo-nos pactuosamente!
Honoré Daumier
Nous sommes tous d’honnêtes gens, embrassons-nous, et que ça finisse
La Caricature, 13 novembre 1834
Lithographie, ld 95
Bibliothèque nationale de France,
département des Estampes et de la Photographie, Paris
sábado, 9 de setembro de 2006
Textos (VII)
Supériorité des lois non écrites
CRÉON. — Réponds en peu de mots. Connaissais-tu mon édit ?
ANTIGONE. — Comment ne l'aurais-je pas connu ? Il était public.
CRÉON. — Et tu as osé passer outre à mon ordonnance ?
ANTIGONE. — Oui, car ce n'est pas Zeus qui l'a promulguée, et la Justice qui siège auprès des dieux de sous terre n'en a point tracé de telles parmi les hommes. Je ne croyais pas, certes, que tes édits eussent tant de pouvoir qu'ils permissent à un mortel de violer les lois divines : lois non écrites, celles-là, mais intangibles. Ce n'est pas d'aujourd'hui ni d'hier, c'est depuis l'origine qu'elles sont en vigueur, et personne ne les a vues naître. Leur désobéir, n'était-ce point, par un lâche respect pour l'autorité d'un homme, encourir la rigueur des dieux ? Je savais bien que je mourrais ; c'était inévitable — et même sans ton édit ! Si je péris avant le temps, je regarde la mort comme un bienfait. Quand on vit au milieu des maux, comment n'aurait-on pas avantage à mourir ? Non, le sort qui m'attend n'a rien qui me tourmente. Si j'avais dû laisser sans sépulture un corps que ma mère a mis au monde, je ne m'en serais jamais consolée ; maintenant, je ne me tourmente plus de rien. Si tu estimes que je me conduis comme une folle, peut-être n'as-tu rien à m'envier sur l'article de la folie !
LE CORYPHÉE. — Comme on retrouve dans la fille le caractère intraitable du père ! Elle ne sait pas fléchir devant l'adversité.
Sophocle (grec, 496-406 av.J.-C) [Auteur de cent vingt-trois pièces de théâtres tragiques. Remporte un nombre considérable de fois des premiers prix de concours dans sa discipline. Antigone, Electre, OEdipe, parmi d'autres personnages mis en scène par lui, servent aujourd'hui aux philosophes et aux psychanalystes pour penser tel ou tel point de leur doctrine.]
Antigone (441 av. J.-C), trad. R. Pignarre, Garnier-Flammarion, 1964.
CRÉON. — Réponds en peu de mots. Connaissais-tu mon édit ?
ANTIGONE. — Comment ne l'aurais-je pas connu ? Il était public.
CRÉON. — Et tu as osé passer outre à mon ordonnance ?
ANTIGONE. — Oui, car ce n'est pas Zeus qui l'a promulguée, et la Justice qui siège auprès des dieux de sous terre n'en a point tracé de telles parmi les hommes. Je ne croyais pas, certes, que tes édits eussent tant de pouvoir qu'ils permissent à un mortel de violer les lois divines : lois non écrites, celles-là, mais intangibles. Ce n'est pas d'aujourd'hui ni d'hier, c'est depuis l'origine qu'elles sont en vigueur, et personne ne les a vues naître. Leur désobéir, n'était-ce point, par un lâche respect pour l'autorité d'un homme, encourir la rigueur des dieux ? Je savais bien que je mourrais ; c'était inévitable — et même sans ton édit ! Si je péris avant le temps, je regarde la mort comme un bienfait. Quand on vit au milieu des maux, comment n'aurait-on pas avantage à mourir ? Non, le sort qui m'attend n'a rien qui me tourmente. Si j'avais dû laisser sans sépulture un corps que ma mère a mis au monde, je ne m'en serais jamais consolée ; maintenant, je ne me tourmente plus de rien. Si tu estimes que je me conduis comme une folle, peut-être n'as-tu rien à m'envier sur l'article de la folie !
LE CORYPHÉE. — Comme on retrouve dans la fille le caractère intraitable du père ! Elle ne sait pas fléchir devant l'adversité.
Sophocle (grec, 496-406 av.J.-C) [Auteur de cent vingt-trois pièces de théâtres tragiques. Remporte un nombre considérable de fois des premiers prix de concours dans sa discipline. Antigone, Electre, OEdipe, parmi d'autres personnages mis en scène par lui, servent aujourd'hui aux philosophes et aux psychanalystes pour penser tel ou tel point de leur doctrine.]
Antigone (441 av. J.-C), trad. R. Pignarre, Garnier-Flammarion, 1964.
(Extraído de Michel Onfray, Antimanuel de Philosophie)
sexta-feira, 8 de setembro de 2006
«Acordo político-parlamentar...»
O Acordo político-parlamentar para a reforma da justiça celebrado entre o PS e o PSD pode ser consultado aqui, aguarda-se comentários... não sujeitos a segredo de justiça.
O pacto secreto sobre a Justiça
É este o título de mais um imperdível post de José António Barreiros n'A Revolta das Palavras (também consultável, preferencialmente, por aqui).
Uma lei atirada às malvas
O n.º 3938 (Maio-Junho de 2006) da Revista de Legislação e de Jurisprudência, recentemente distribuído, traz um artigo demolidor do Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade sobre a chamada Lei-Quadro da Política Criminal, aprovada pela Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, que se imporá como um significativo contributo doutrinal para a análise e tentativa, que se antevê frustrante, da sua aplicação. Segundo o Autor, «armadilhando com o correspondente antídoto ou antagonista cada um dos remédios que propõe, a Lei-Quadro da Política Criminal parece irremediavelmente atraída pelo destino de uma self-destroying-prophecy. É, facilmente se concede, uma lei de que pouco ou nenhum mal haverá a recear: já é questionável que dela possa, fundadamente, esperar-se algum bem. É, bem ou mal comparado, como um chá de malvas. Mezinha que não fará mal a ninguém. E bem?».
Para além daquele escrito, inserto na secção de legislação, a prestigiada e renovada revista de Coimbra oferece-nos outros dois interessantes estudos – A Concordata de 2004 e o Direito Internacional Privado Português, de Rui Manuel Moura Ramos (secção doutrinal) e S.T.J., Acórdão de 9 de Março de 2004 (Centros comerciais: natureza meramente obrigacional do respectivo regulamento), de M. Henrique Mesquita (secção de jurisprudência).
Para além daquele escrito, inserto na secção de legislação, a prestigiada e renovada revista de Coimbra oferece-nos outros dois interessantes estudos – A Concordata de 2004 e o Direito Internacional Privado Português, de Rui Manuel Moura Ramos (secção doutrinal) e S.T.J., Acórdão de 9 de Março de 2004 (Centros comerciais: natureza meramente obrigacional do respectivo regulamento), de M. Henrique Mesquita (secção de jurisprudência).
quinta-feira, 7 de setembro de 2006
O novo CPP: constituição como arguido
O CPP anterior, o de 1929, que, apesar de aprovado pela Ditadura Nacional, tinha algumas normas mais liberais do que alguma da prática forense que se vem entronizando no domínio do Código em vigor, previa o que se chamava uma definição substancial de arguido: seria arguido aquele sobre quem recaísse forte suspeita de ter cometido infracção cuja existência estivesse suficientemente indiciada * . Como se sabe, o novo CPP, o de 1987, optou por um critério diverso e passou a adoptar uma definição formal: a constituição como arguido ficou a depender de uma pessoa ser sujeito a certos actos processuais. O pressuposto de ter que subjazer a isso uma suspeita suficiente desapareceu. O Anteprojecto, nessa parte dá um passo positivo ao clausular [artigo 58º, n.º 1, a)] que será constituído como arguido logo que «correndo inquérito contra pessoa determinada que seja suspeita da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal» [itálico nosso].
Sucede, porém, que não será demais este aviso, prevenindo que surjam algumas interpretações que logo recuperem o espírito passado face ao qual o legislador quis inovar. A fórmula «correndo inquérito contra pessoa determinada houver juízo de fundamentada suspeita de ter cometido crime [..., itálico nosso]», talvez seja preferível. É que assim, a constituição de arguido passa a ocorrer só quando houver um juízo de suspeita consistente, e não nos casos em que o inquérito tem como base uma denúncia que se revela manifestamente infundada. É que, ensina-mo a experiência, não há situação mais ridícula, mais estigmatizante e mais veaxtória do que um sujeito, claramente vítima da denúncia de um paranóico litigante ser constituído arguido [para sua defesa!, triste ironia] e logo a seguir automaticamente ser-lhe imposto o TIR, com toda a carga traumática que daí decorre, mormente quando logo a seguir a comunicação social dá conta do facto, apregoando-o aos sete ventos, numa notícia que, raramente é desmentida, quando vem [quantas vezes tão tarde!] o arquivamento ilibador.
O que digo parece ter alguma lógica, no próprio espírito do Anteprojecto, pois que ele propõe para a alínea d), que a constituição como arguido tamém opera quando «for levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada» [itálico nosso]. Se a expresão «auto de notícia» é aqui usada em sentido técnico [correspondendo a um flagrante delito presenciado, artigo 243º do CPP] é evidente que o flagrante é a melhor demonstração do fundamento do auto de notícia, pelo que a norma é inútil. Se o legislador usou aqui linguagem de leigo e o auto de notícia que refere é o auto no qual se narre uma denúncia, então é bom que melhore a terminologia, para não aumentar a confusão.
* Veja-se o espírito do CPP anterior nesta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.01.84: «só pode qualificar-se como arguido a pessoa sobre a qual recaia uma carga indiciária bastante para enformar forte suspeita de que tenha perpetrado uma infracção suficientemente comprovada (artigos 251º, 291º, § 1º, e 349º do Código de Processo Penal)».
Quantos arguidos existem no CPP da democracia com base em situações que quem está a constituir a pessoa naquele gravoso estado sabe que equivalem a nada? Digam a verdade, por favor!
terça-feira, 5 de setembro de 2006
Novo CPP: o artigo 16º e o manda quem pode
Como disse, comentarei os artigos que a Unidade de Missão se propõe alterar e outros. Um dos que não poderia faltar é o artigo 16º, n.º 3 que diz «3 - Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos no artigo 14.º, n.º 2, alínea b), mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos». Tenho a consciência que o Tribunal Constitucional viabilizou um tal preceito. Mas sempre me pareceu a tradução de uma intromissão intolerável do MP no âmbito do poder judicial esta possibilidade de o MP «escolher» qual o tribunal competente - optando pelo juiz singular em detrimento do tribunal colectivo que seria o naturalmente competente - sem que o tribunal escolhido possa rejeitar essa «nomeação». E não se diga que o arguido beneficia, pois é contemplado com uma pena mais benigna, pois as garantias que podem resultar de um julgamento por colectivo não são de desconsiderar. E, a agravar a situação, o preceito traduz a ideia de que é o MP quem se antecipa ao poder judicial na escolha das penas aplicáveis, isto numa escolha concreta mau grado aquilo que decorre da previsão abstracta da lei. É que a situação é esta: ante uma lei que prevê para certo crime pena superior a cinco anos e julgamento por colectivo, o MP manda que não se aplicará pena superior a tal limite, ordena o julgamento por tribunal singular e o todos obedecem.
segunda-feira, 4 de setembro de 2006
Suficiência ou prevalência do processo penal - um comentário
Reiterando o aplauso à iniciativa de José António Barreiros de diálogo «blogosférico» sobre a revisão do Código de Processo Penal, já formulada aqui, aproveito para um comentário sobre a eventual definição normativa de uma prevalência do processo penal, suscitada por José António Barreiros neste postal.
Embora sensível ao factor perturbador de o mesmo Estado formular pronúncias aparentemente contraditórias sobre os mesmos factos em diferentes procedimentos (aqui não provado, ali provado), parece-me perniciosa a eventual fixação genérica de uma prevalência da «verdade» do processo penal.
Como referi aqui: «Aquela verdade judiciária embora seja a única relevante para o fim do concreto processo (por exemplo o exercício da pretensão punitiva do Estado por aquele facto quanto àquele arguido) é apenas uma verdade que nem sempre é a epistemicamente mais forte (nomeadamente porque o juízo judiciário é, ainda, essencialmente fundado nas formas de cognição comuns e muitas vezes por razões jurídico-políticas relacionadas com o fim do processo existir material informativo com valor epistémico que não poder ser utilizado)».
Se então estava a referir-me essencialmente à indagação de factos no processo penal e em procedimentos não judiciários parece-me que tal também é válido para diferentes procedimentos judiciários (por exemplo cíveis, administrativos, de menores e família, fiscais) que sejam apreciados por diferentes instâncias (judiciárias ou não judiciárias).
Os valores em colisão implicam que se deva questionar, categoria por categoria, «se a verdade judiciária, e em particular do processo penal, pode [ou deve] conviver com outras verdades», mas parece-me que quando a questão se suscite entre procedimentos que podem culminar em processos judiciais, as questões devem ser essencialmente ponderadas não em sede de suficiência do processo penal (em que as soluções são determinados pelos valores do processo penal) mas de adesão / separação de processos (em que se têm de equacionar os valores dos vários tipos de processo e a compatibilidade de um único julgamento).
De qualquer modo, propendo, acima de tudo, a considerar, tal como defendi anteriormente a propósito de outras dimensões do valor da «verdade» do processo penal e seus efeitos prejudiciais, que:
«A problematização deste tema e dos valores em colisão, bem como a redefinição política dos espaços de controvérsia social sobre factos que foram (estão a ser ou podem vir a ser) objecto de processos judiciais (em especial de processos penais), parece ser hoje uma exigência e será um bom sinal para a democracia que se superem tabus em nome da discussão racional.
A discussão na esfera pública dos valores em confronto constituirá mesmo uma exigência do Estado de direito, sob pena de tratamentos desiguais nesta matéria serem não propriamente fundados em variáveis objectivas e questões de princípio mas estritamente na competência de acção dos envolvidos».
PS- Refira-se que a expressão de um princípio de prevalência do processo penal constava da redacção do art. 180.º, nº 5, do CPenal revogada pela Lei 65/98, quando, relativamente ao crime de difamação, limitava a faculdade de prova da verdade do facto imputado que constituísse crime «à condenação por sentença transitada em julgado». Sempre discordei dessa excepção que limitava a liberdade de expressão responsável (já que condicionada pela demonstração da veracidade dos factos) relativamente a determinados factos pela mera circunstância de os mesmos serem tutelados como crime (ou seja eventualmente mais graves do que outros que já poderiam ser imputados com lesão da honra do visado). Embora conexa com o objecto deste postal esta questão, contudo, suscita outros problemas, se calhar muito ligados à nossa cultura nacional e não compatíveis com este mero comentário (que aliás já vai demasiado longo).
Embora sensível ao factor perturbador de o mesmo Estado formular pronúncias aparentemente contraditórias sobre os mesmos factos em diferentes procedimentos (aqui não provado, ali provado), parece-me perniciosa a eventual fixação genérica de uma prevalência da «verdade» do processo penal.
Como referi aqui: «Aquela verdade judiciária embora seja a única relevante para o fim do concreto processo (por exemplo o exercício da pretensão punitiva do Estado por aquele facto quanto àquele arguido) é apenas uma verdade que nem sempre é a epistemicamente mais forte (nomeadamente porque o juízo judiciário é, ainda, essencialmente fundado nas formas de cognição comuns e muitas vezes por razões jurídico-políticas relacionadas com o fim do processo existir material informativo com valor epistémico que não poder ser utilizado)».
Se então estava a referir-me essencialmente à indagação de factos no processo penal e em procedimentos não judiciários parece-me que tal também é válido para diferentes procedimentos judiciários (por exemplo cíveis, administrativos, de menores e família, fiscais) que sejam apreciados por diferentes instâncias (judiciárias ou não judiciárias).
Os valores em colisão implicam que se deva questionar, categoria por categoria, «se a verdade judiciária, e em particular do processo penal, pode [ou deve] conviver com outras verdades», mas parece-me que quando a questão se suscite entre procedimentos que podem culminar em processos judiciais, as questões devem ser essencialmente ponderadas não em sede de suficiência do processo penal (em que as soluções são determinados pelos valores do processo penal) mas de adesão / separação de processos (em que se têm de equacionar os valores dos vários tipos de processo e a compatibilidade de um único julgamento).
De qualquer modo, propendo, acima de tudo, a considerar, tal como defendi anteriormente a propósito de outras dimensões do valor da «verdade» do processo penal e seus efeitos prejudiciais, que:
«A problematização deste tema e dos valores em colisão, bem como a redefinição política dos espaços de controvérsia social sobre factos que foram (estão a ser ou podem vir a ser) objecto de processos judiciais (em especial de processos penais), parece ser hoje uma exigência e será um bom sinal para a democracia que se superem tabus em nome da discussão racional.
A discussão na esfera pública dos valores em confronto constituirá mesmo uma exigência do Estado de direito, sob pena de tratamentos desiguais nesta matéria serem não propriamente fundados em variáveis objectivas e questões de princípio mas estritamente na competência de acção dos envolvidos».
PS- Refira-se que a expressão de um princípio de prevalência do processo penal constava da redacção do art. 180.º, nº 5, do CPenal revogada pela Lei 65/98, quando, relativamente ao crime de difamação, limitava a faculdade de prova da verdade do facto imputado que constituísse crime «à condenação por sentença transitada em julgado». Sempre discordei dessa excepção que limitava a liberdade de expressão responsável (já que condicionada pela demonstração da veracidade dos factos) relativamente a determinados factos pela mera circunstância de os mesmos serem tutelados como crime (ou seja eventualmente mais graves do que outros que já poderiam ser imputados com lesão da honra do visado). Embora conexa com o objecto deste postal esta questão, contudo, suscita outros problemas, se calhar muito ligados à nossa cultura nacional e não compatíveis com este mero comentário (que aliás já vai demasiado longo).
O meu eucalipto e o CPP...
Deixem-me contar-vos a pequena história do meu eucalipto, quase centenário.
Era uma árvore frondosa e cheia de viço, estendendo as suas raízes longamente em busca de água, que sorvia que nem um desalmado. Um dia, veio uma nova estrada – a “Correcção da Rua O” – e cortou-lhe uma parte substancial do seu abastecimento no sopé da colina.
Alguns ramos principiaram a secar, a casca do tronco começou a soltar-se com mais pressa e não fôra a intervenção urgente dos “Cirurgiões das Árvores” – firma do Porto com um excelente “cirurgião” – e o seu fim teria sido rápido.
Mau grado aquela intervenção de há cerca de cinco anos, inopinadamente no cume abrasador de Agosto uma pernada soltou-se lá do cocuruto e ficou suspensa a baloiçar a baloiçar sobre o caminho de acesso à habitação e os fios do telefone.
Pedido de apoio urgente à Protecção Civil e no mesmo dia apareceram dois bombeiros e um Chefe, que levaram um quarto de hora a descrever os equipamentos necessários para remover a pernada, os que tinham mas não funcionavam e os que precisavam mas não tinham. Considerei-me elucidado, e descalço de verba para filantropicamente remediar a situação, despedimo-nos sob o olhar vigilante da pernada – qual espada de Dâmocles suspensa sobre as nossas cabeças (as nossas e não as dos bombeiros que entretanto se haviam recolhido de sirene calada).
Lembrei-me logo dos “cirurgiões”...mas estavam de férias ( mal se falava ainda das férias às horas extraordinárias nos hospitais).
Restava-me a Câmara Municipal: usando o correio electrónico e o telefone, quando já desesperava e três dias eram passados, eis que vem uma resposta. Não devia fazer “reply” mas que telefonasse para um número que se indicava – quase à 007. Depois de um exercício mental de conjugação de horários administrativos, à quarta vez atingi o alvo e fui encaminhado para a área dos Espaços Verdes: metia-se o fim-de-semana e só na segunda-feira teria notícias.
Apesar do vento que engrossara, a pernada aguentava-se galhardamente e até o eucalipto esboçou um sorriso com uns pingos de chuva que caíram.
Finalmente a mensagem chegara aos Espaços Verdes, o contacto funcionou ao inverso, da Administração para o cidadão, e no dia seguinte a máquina com suporte e ascensor, em vinte minutos arreou a pernada. O eucalipto soltou um uf! aliviado e os fios do telefone e da Internet continuaram incólumes.
Punha-se o magno problema de saber como era possível ter-se soltado a pernada – estaria podre, o que era de mau agoiro para o centenário e já se pensava como abatê-lo com o mínimo de mossa. Mas não, a madeira está sadia ...o que leva a pensar que ainda podemos desfrutar do eucalipto se cuidarmos de lhe dar água com mais abundância e podá-lo dos ramos secos.
Moral da história: os códigos, tal como as árvores, não se podem deitar abaixo de qualquer maneira. Houve umas pernadas que se soltaram – especialmente depois de uns ventos fortes se terem abatido sobre certos processos e uns senhores terem profetizado as três questões essenciais para rever (ou reformar, ao tempo ainda não se punha a delicada questão). Por isso, há que arrear as pernadas e cuidar do eucalipto...por dentro, diria eu, e com aqueles que tratam das árvores todos os dias.
**
De um momento para o outro vejo que a este blog chegou uma nova lufada. Ainda bem.
Era uma árvore frondosa e cheia de viço, estendendo as suas raízes longamente em busca de água, que sorvia que nem um desalmado. Um dia, veio uma nova estrada – a “Correcção da Rua O” – e cortou-lhe uma parte substancial do seu abastecimento no sopé da colina.
Alguns ramos principiaram a secar, a casca do tronco começou a soltar-se com mais pressa e não fôra a intervenção urgente dos “Cirurgiões das Árvores” – firma do Porto com um excelente “cirurgião” – e o seu fim teria sido rápido.
Mau grado aquela intervenção de há cerca de cinco anos, inopinadamente no cume abrasador de Agosto uma pernada soltou-se lá do cocuruto e ficou suspensa a baloiçar a baloiçar sobre o caminho de acesso à habitação e os fios do telefone.
Pedido de apoio urgente à Protecção Civil e no mesmo dia apareceram dois bombeiros e um Chefe, que levaram um quarto de hora a descrever os equipamentos necessários para remover a pernada, os que tinham mas não funcionavam e os que precisavam mas não tinham. Considerei-me elucidado, e descalço de verba para filantropicamente remediar a situação, despedimo-nos sob o olhar vigilante da pernada – qual espada de Dâmocles suspensa sobre as nossas cabeças (as nossas e não as dos bombeiros que entretanto se haviam recolhido de sirene calada).
Lembrei-me logo dos “cirurgiões”...mas estavam de férias ( mal se falava ainda das férias às horas extraordinárias nos hospitais).
Restava-me a Câmara Municipal: usando o correio electrónico e o telefone, quando já desesperava e três dias eram passados, eis que vem uma resposta. Não devia fazer “reply” mas que telefonasse para um número que se indicava – quase à 007. Depois de um exercício mental de conjugação de horários administrativos, à quarta vez atingi o alvo e fui encaminhado para a área dos Espaços Verdes: metia-se o fim-de-semana e só na segunda-feira teria notícias.
Apesar do vento que engrossara, a pernada aguentava-se galhardamente e até o eucalipto esboçou um sorriso com uns pingos de chuva que caíram.
Finalmente a mensagem chegara aos Espaços Verdes, o contacto funcionou ao inverso, da Administração para o cidadão, e no dia seguinte a máquina com suporte e ascensor, em vinte minutos arreou a pernada. O eucalipto soltou um uf! aliviado e os fios do telefone e da Internet continuaram incólumes.
Punha-se o magno problema de saber como era possível ter-se soltado a pernada – estaria podre, o que era de mau agoiro para o centenário e já se pensava como abatê-lo com o mínimo de mossa. Mas não, a madeira está sadia ...o que leva a pensar que ainda podemos desfrutar do eucalipto se cuidarmos de lhe dar água com mais abundância e podá-lo dos ramos secos.
Moral da história: os códigos, tal como as árvores, não se podem deitar abaixo de qualquer maneira. Houve umas pernadas que se soltaram – especialmente depois de uns ventos fortes se terem abatido sobre certos processos e uns senhores terem profetizado as três questões essenciais para rever (ou reformar, ao tempo ainda não se punha a delicada questão). Por isso, há que arrear as pernadas e cuidar do eucalipto...por dentro, diria eu, e com aqueles que tratam das árvores todos os dias.
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De um momento para o outro vejo que a este blog chegou uma nova lufada. Ainda bem.
ACABADAS AS ENCURTADAS FÉRIAS JUDICIAIS
Acabadas as encurtadas ferias judiciais deste ano, sucedem-se divergentes declarações sobre se, com tal medida, aumentou, não aumentou, ou mesmo se diminuiu a produtividade do sistema de justiça. Não se esclarece, contudo, o que se entende por produtividade do sistema de justiça e, consequentemente, quais os critérios para a sua medição, sendo, contudo, notório, e significativo, que a confiança no êxito da medida se revela fraca mesmo por banda dos que a decidiram.
Uma medida populista que, para além de não ter resolvido nenhum dos verdadeiros problemas com que se debate o sistema, contribuiu para os iludir e, consequentemente, atrasar o caminho da efectiva resolução das questões de morosidade e de eficácia, mas também do acesso ao direito e da qualidade da justiça.
A organização do trabalho, e dos seus tempos, é, na realidade, um dos aspectos que terá de ser considerado numa reponderação do funcionamento do sistema de justiça, constituindo a sua consideração, por si só, uma relevante alteração de atitude e de mentalidade. Mas, para além do primarismo com que foi até agora tratado, é indissociável de, pelo menos, outros dois debates, e reformas, que estão anunciados – os que respeitam ao mapa judiciário e à formação (sendo o ingresso na magistratura e a formação inicial apenas uma, cada vez mais, pequena parcela do problema). Sob pena de se poder estar a contribuir para o aumento da desordem do sistema e, seguramente, de nada se estar a fazer para a melhoria da sua oferta e da qualidade das respostas.
Uma medida populista que, para além de não ter resolvido nenhum dos verdadeiros problemas com que se debate o sistema, contribuiu para os iludir e, consequentemente, atrasar o caminho da efectiva resolução das questões de morosidade e de eficácia, mas também do acesso ao direito e da qualidade da justiça.
A organização do trabalho, e dos seus tempos, é, na realidade, um dos aspectos que terá de ser considerado numa reponderação do funcionamento do sistema de justiça, constituindo a sua consideração, por si só, uma relevante alteração de atitude e de mentalidade. Mas, para além do primarismo com que foi até agora tratado, é indissociável de, pelo menos, outros dois debates, e reformas, que estão anunciados – os que respeitam ao mapa judiciário e à formação (sendo o ingresso na magistratura e a formação inicial apenas uma, cada vez mais, pequena parcela do problema). Sob pena de se poder estar a contribuir para o aumento da desordem do sistema e, seguramente, de nada se estar a fazer para a melhoria da sua oferta e da qualidade das respostas.
Projecto do CPP: suficiência ou prevalência?
Duas histórias reais, a justificarem uma proposta.
Primeira, uma história alegre: um funcionário público foi arguido num processo-crime e num processo disciplinar, essencialmente pelos mesmos factos. Teve a sorte de o ministro a quem foi proposta a sua demissão, ter feito «veto de gaveta». O funcionário foi absolvido do processo-crime e o ministro, ante tal ilibação, mandou aquivar o processo disciplinar.
Agora uma história triste, a de um outro funcionário arguido também num processo-crime e num processo disciplinar, também pelos mesmos factos. Desta feita, o ministro queria mostrar zelo e pulso e demitiu-o vertiginosamente. Quando foi absolvido do processo-crime, o funcionário demitido tentou a via que lhe restava, o recurso extraordinário de revisão administrativa da sanção disiciplinar. Em vão, pois os tribunais administrativos entenderam, em primeira instância e em recurso que os critérios de apreciação da responsabilidade penal e disciplinar são diferentes, por isso a absolvição penal era irrelevante para o efeito.
É claro que diz a Constituição que as decisões dos tribunais prevalecem sobre as de todas as outras autoridades. É o n.º 2 do artigo 205º da Lei Fundamental: «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.» No caso destas duas histórias, fiquei com a ideia contrária, talvez por não saber ler: uma pessoa corre o risco de ser demitida e absolvida porque se provou disciplinarmente que um facto aconteceu e se provou criminalmente que não aconteceu. É a unidade do sistema jurídico e a segurança jurídica, na sua melhor expressão.
Vem a isto a propósito de haver um artigo 7º do CPP onde se estatui o princípio da suficiência do processo penal e que esta reforma deixou intocado. Não comento essa opção. Pergunto-me é se não faria sentido [talvez no quadro de uma reforma do processo penal] e precisamente por causa daquela regra constitucional, prever o princípio da prevalência do processo penal em termos de fazer sustar até ao trânsito em julgado da decisão penal qualquer outro procedimento disciplinar que tenha como fundamento os mesmos factos. Dir-me-ão que, a ser assim, até lá, a esse momento longínquo do trânsito, a função pública ficava onerada com funcionários arguidos penalmente, pronunciados mesmo, mas insusceptíveis de serem suspensos. Não digo tanto, digo apenas que se evite o irremediável da decisão punitiva final, mormente a demissão ou aposentação compulsiva, antes do trânsito penal.
E já agora, pergunto se não causa arrepio ao sentido juridico de cada um ver num processo penal inquéritos disciplinares, autos de sindicâncias, relatórios de inspecção, tudo a concluir, por mão administrativa, como é que sucederam certos factos, quase como que a (im) pressionarem o juiz penal a quem cabe, aparentemente, a decisão fundamental, a prevalente, sobre tal matéria?
P. S. Para aqueles para quem o processo é apenas um fólio de papéis secos: no caso da história alegre, o funcionário, absolvido criminalmente e disciplinarmente ilibado, morreu pouco tempo depois. Assisti à sua decadência, como passou da esperança à indiferença. Ainda hoje quando penso nisso me causa engulhos. Quanto ao outro, aprendeu a odiar a função pública e os tribunais.
domingo, 3 de setembro de 2006
Novo CPP, suas definições e omissões: o problema do caso julgado
Como vimos, no comentário anterior feito ao artigo 1º, onde se albergam as definições, o legislador mantém nesta matéria omissões que já provinham da versão inicial do Código. Mas há neste Anteprojecto de CPP algo mais que gera perplexidade: porque motivo manteve o legislador a ausência de regulação jurídica quanto a um dos pontos nevrálgicos de um processo penal que se queira digno do espíteto de acusatório, o problema do caso julgado e da litispendência?. A propósito do artigo 219º, deixou o legislador no seu n.º 2 o seguinte enunciado: «Não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no número anterior e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos.» Só é pena é que não defina nenhum destes conceitos.
Estranha-se que procedendo a lei processual civil à definição dos conceitos em causa, no CPP, onde a sua extensão é uma garantia fundamental da paz do arguido e da segurança da comunidade nem uma palavra haja a este repeito e tenha que ser a jurisprudência a titubear quanto ao caminho a seguir. Veja-se a expressão límpida da indefinição jurisprudencial onde o legislador deveria ter feito reinar o rigor: «I – O instituto do caso julgado não se encontra, hoje em dia, regulado quer no Código Penal, quer no Código de Processo Penal, mas a ele é feita referência no artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. Os princípios que regem o caso julgado penal não se articulam adequadamente com as regras do caso julgado cível, o que implica que estes últimos não possam ser aplicados nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal. III – Ao não incluir regras especificas do caso julgado no Código Processual Penal vigente, as quais se achavam consignadas no Código anterior, o legislador não quis que se aplicassem, nos pleitos penais, as regras próprias do processo civil, mas, apenas, reservar para a lei substantiva penal a respectiva definição. IV – Como a lei penal ainda não regulamentou os efeitos do caso julgado penal, impõe-se que se considerem ainda em vigor as disposições sobre a matéria que constavam no anterior Código de Processo Penal de 1929». É um acórdão do STJ a dizê-lo.
P. S. Obrigado ao comentador «Vasconcelos» por me ter avisado do lapso na formatação deste post, que estava, de facto, incompleto.
Novo CPP: comentário ao artigo 1º
Comentemos, pois, a alteração que a Unidade de Missão propõe para o artigo 1º do CPP. Não se diga que é logo embirrar com o primeiro artigo. É antes um gesto de boa-vontade cívica.
1. É discutível se um Código deve conter definições e se o CPP, ao contê-las, não deveria tê-las sistematizado todas neste preceito, em vez de ter deixado algumas, como por exemplo, a de indícios suficientes para uma previsão esparsa como a do artigo 283º.
1. É discutível se um Código deve conter definições e se o CPP, ao contê-las, não deveria tê-las sistematizado todas neste preceito, em vez de ter deixado algumas, como por exemplo, a de indícios suficientes para uma previsão esparsa como a do artigo 283º.
2. Mais, é discutível se um CPP, uma vez que optou por conter definições e sistematizá-las, não deveria ter tido o cuidado de proceder ao enunciado de algumas, precisamente aquelas que mais dúvidas têm suscitado na prática e mais disparidades têm consentido. Veja-se o caso de «fortes indícios», que o Código não define, definindo embora, como vimos [em local atípico] proceda à definição do que sejam «indícios suficientes». Casos a carecer de definição abundam, pois o CPP em aspectos nevrálgicos deixou ao intérprete, para seu uso discricionário, conceitos inteiramente abertos: veja-se o que se passa com o «perigo de fuga» [artigo 204º do CPP] e tantas outras situações.
3. Na definição de terrorismo, para efeitos processuais penais consideram-se abrangidas as condutas que integrarem os crimes de organização terrorista, terrorismo e terrorismo internacional, critério que me parece inaceitável, pois significa a unificação sob um mesmo conceito de enunciado típicos completamente diversos, como se o legislador processual penal fosse arbitrariamente livre de chamar pelo mesmo nome o que a lei penal considera distinto e diferenciado.
4. Diferenciam-se os conceitos de criminalidade violenta e especialmente violenta, mas sempre sob a noção de que haverão de ser crimes que atentem contra os seguintes bens jurídicos referentes a pessoas singulares: a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas. Ora não se compreende que os crimes contra outros bens jurídicos trans-individuais não possam integrar o objecto de uma criminalidade violenta ou especialmente violenta, quando tudo mostra que actualmente são precisamente aqueles que atingem formas mais drásticas de violência, nomeadamente pondo em causa a segurança do Estado e a vida em sociedade.
5. Quanto à criminalidade altamente organizada (i) sabendo como se sabe em que medida vai surgir o problema consistente em saber se as associações crimininosas previstas no Direito Penal secundário podem integrar este conceito, não se compreende que o legislador não atalhe desde já o problema (ii) estranha-se que os crimes de terrorismo e de organização terrorista fiquem excluídos (iii) e note-se que este enunciado restritivo pode levar a conflitos de enunciados, bastando lembrar, por exemplo que a Lei de Segurança Interna [Lei n.º 20/87, de 12.06, no seu artigo 1º, n.º 3 define que «as medidas previstas na presente lei visam especialmente proteger a vida e a integridade das pessoas, a paz pública e a ordem democrática contra a criminalidade violenta ou altamente organizada, designadamente sabotagem, espionagem ou terrorismo», o que mostra que o conceito em causa encontra âmbitos materiais de incidência completamente diferenciados no nosso ordenamento.
sábado, 2 de setembro de 2006
Processo penal: revisionismo ou reformismo?
Prometi e vou cumprir, deixar neste blog algumas notas de comentários sobre o processo penal que aí vem. Começo hoje sábado, por uma questão que me surpreende esteja na ordem do dia e que me surge ante o artigo que Rui Pereira publica no jornal «Público» de hoje. É quase meia página para tratar de uma questão de nomenclatura, saber se o processo penal que a Unidade de Missão propõe é uma «reforma» ou uma «revisão». Leio e, mau grado a simpatia que tenho por ele como académico e o desapontamento ao vê-lo político, fica-me a incómoda sensação de que estes legisladores vivem mais o complexo político de se situarem ideologicamente, neste mundo de etiquetas, do que propriamente o problema de criarem um instrumento que seja útil à justiça penal do país. Fiel ao modo universitário de arrumar teorias por autores, diz-nos Rui Pereira que Germano Marques da Silva e Rogério Alves acham que é uma reforma, Mata-Mouros e Paulo Rangel uma revisão. Eu permito-me perguntar: qual é o interesse de se discutir isto? Porque é que ao ler tudo isto me lembra as quelízias politiqueiras soixantehuitards entre os revisionistas e os reformistas? Rui Pereira, depois de vários exemplos, insiste: «é de uma verdadeira reforma que se trata». Pois ainda bem. Só há uma coisa que me preocupa agora que vou começar a ler o texto. É se a revisão, reforma ou a «mexida» que por aí virá, mais não é do que a expressão legislativa da luta pelo poder dentro do processo penal, a velha questão do quem manda. É que tem sido essa a pecha endémica do nosso sistema penal, o ser o palco de uma luta de galos, entre o MP, os juízes, os polícias e os advogados. Poucos se perguntam o que é mais eficaz ou o que é sai mais barato. A única preocupação, ou pelo menos a preocupação dominante é o quem está por cima.
Textos (VI)
Pierre Gassendi (français, 1592-1655)
Prêtre libertin (au sens d'affranchi qui ne met rien au-dessus de sa liberté), il tente de christianiser la philosophie matérialiste d'Epicure. Son influence est grande parmi le courant libertin du XVIIe siècle. Descartes entretient avec lui une correspondance et une polémique philosophique.
Le droit naturel, modèle du droit positif ?
Comme la justice a été imaginée pour le bien commun, ce à quoi tend le droit, ou respect de ce qui est juste, est nécessairement quelque chose qui soit un bien pour tous les membres de la société, individuellement ou collectivement. Et puisque chacun recherche sous la conduite de la nature ce qui est bon pour lui, il est logique que le droit, ou respect de ce qui est juste, soit quelque chose de conforme à la nature et qu'on le qualifie de naturel.
Ce n'est pas sans raison que j'aborde ce point. En effet, il arrive parfois que dans une société on indique comme le droit, ou respect de ce qui est juste, ce qui n'est pas le bien de la société et qui, n'étant pas conforme mais contraire à la nature, ne doit donc pas, sinon abusivement et par manière de parler, passer pour juste, puisque ce qui relève vraiment du droit naturel, c'est-à-dire de ce qui est juste selon la nature, est, tel quel, véritablement utile et bon. Aussi le droit naturel, c'est-à-dire ce qui est juste selon la nature, n'est-il à proprement parler, que le gage d'un avantage, l'avantage proposé étant, suivant le désir général, que les hommes ne se fassent pas de mal les uns aux autres, et ainsi vivent en sécurité en cherchant chacun le bien avec la nature pour guide.
Je tiens donc ici l'utile et le bien pour identiques, et je considère qu'il dépend de deux conditions qu'une chose soit juste ou garantie par le droit : qu'elle soit utile ou tende à l'utilité commune, c'est-à-dire à la tranquillité, et qu'elle ait été prescrite d'un accord unanime de la société. En en effet, rien n'est complètement juste sinon ce que la société a, d'un commun accord et unanimement, voulu voir respecté. C'est pourquoi on attribue habituellement le nom de droit ou de chose juste à la fois à l'utilité commune et à l'accord commun de la société. En effet, on qualifie de droit aussi bien l'utile lui-même — parce qu'il coïncide avec le droit ou lui est à juste titre indissolublement lié — que l'accord et la prescription unanimes de la société qu'on appelle la loi, qui prescrit par exemple à chacun ce qui est utile ou juste.
Traité de la philosophie d'Épicure (1649), III, XXV
Prêtre libertin (au sens d'affranchi qui ne met rien au-dessus de sa liberté), il tente de christianiser la philosophie matérialiste d'Epicure. Son influence est grande parmi le courant libertin du XVIIe siècle. Descartes entretient avec lui une correspondance et une polémique philosophique.
Le droit naturel, modèle du droit positif ?
Comme la justice a été imaginée pour le bien commun, ce à quoi tend le droit, ou respect de ce qui est juste, est nécessairement quelque chose qui soit un bien pour tous les membres de la société, individuellement ou collectivement. Et puisque chacun recherche sous la conduite de la nature ce qui est bon pour lui, il est logique que le droit, ou respect de ce qui est juste, soit quelque chose de conforme à la nature et qu'on le qualifie de naturel.
Ce n'est pas sans raison que j'aborde ce point. En effet, il arrive parfois que dans une société on indique comme le droit, ou respect de ce qui est juste, ce qui n'est pas le bien de la société et qui, n'étant pas conforme mais contraire à la nature, ne doit donc pas, sinon abusivement et par manière de parler, passer pour juste, puisque ce qui relève vraiment du droit naturel, c'est-à-dire de ce qui est juste selon la nature, est, tel quel, véritablement utile et bon. Aussi le droit naturel, c'est-à-dire ce qui est juste selon la nature, n'est-il à proprement parler, que le gage d'un avantage, l'avantage proposé étant, suivant le désir général, que les hommes ne se fassent pas de mal les uns aux autres, et ainsi vivent en sécurité en cherchant chacun le bien avec la nature pour guide.
Je tiens donc ici l'utile et le bien pour identiques, et je considère qu'il dépend de deux conditions qu'une chose soit juste ou garantie par le droit : qu'elle soit utile ou tende à l'utilité commune, c'est-à-dire à la tranquillité, et qu'elle ait été prescrite d'un accord unanime de la société. En en effet, rien n'est complètement juste sinon ce que la société a, d'un commun accord et unanimement, voulu voir respecté. C'est pourquoi on attribue habituellement le nom de droit ou de chose juste à la fois à l'utilité commune et à l'accord commun de la société. En effet, on qualifie de droit aussi bien l'utile lui-même — parce qu'il coïncide avec le droit ou lui est à juste titre indissolublement lié — que l'accord et la prescription unanimes de la société qu'on appelle la loi, qui prescrit par exemple à chacun ce qui est utile ou juste.
Traité de la philosophie d'Épicure (1649), III, XXV
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