segunda-feira, 4 de setembro de 2006

Projecto do CPP: suficiência ou prevalência?

Duas histórias reais, a justificarem uma proposta.

Primeira, uma história alegre: um funcionário público foi arguido num processo-crime e num processo disciplinar, essencialmente pelos mesmos factos. Teve a sorte de o ministro a quem foi proposta a sua demissão, ter feito «veto de gaveta». O funcionário foi absolvido do processo-crime e o ministro, ante tal ilibação, mandou aquivar o processo disciplinar.
Agora uma história triste, a de um outro funcionário arguido também num processo-crime e num processo disciplinar, também pelos mesmos factos. Desta feita, o ministro queria mostrar zelo e pulso e demitiu-o vertiginosamente. Quando foi absolvido do processo-crime, o funcionário demitido tentou a via que lhe restava, o recurso extraordinário de revisão administrativa da sanção disiciplinar. Em vão, pois os tribunais administrativos entenderam, em primeira instância e em recurso que os critérios de apreciação da responsabilidade penal e disciplinar são diferentes, por isso a absolvição penal era irrelevante para o efeito.
É claro que diz a Constituição que as decisões dos tribunais prevalecem sobre as de todas as outras autoridades. É o n.º 2 do artigo 205º da Lei Fundamental: «as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.» No caso destas duas histórias, fiquei com a ideia contrária, talvez por não saber ler: uma pessoa corre o risco de ser demitida e absolvida porque se provou disciplinarmente que um facto aconteceu e se provou criminalmente que não aconteceu. É a unidade do sistema jurídico e a segurança jurídica, na sua melhor expressão.
Vem a isto a propósito de haver um artigo 7º do CPP onde se estatui o princípio da suficiência do processo penal e que esta reforma deixou intocado. Não comento essa opção. Pergunto-me é se não faria sentido [talvez no quadro de uma reforma do processo penal] e precisamente por causa daquela regra constitucional, prever o princípio da prevalência do processo penal em termos de fazer sustar até ao trânsito em julgado da decisão penal qualquer outro procedimento disciplinar que tenha como fundamento os mesmos factos. Dir-me-ão que, a ser assim, até lá, a esse momento longínquo do trânsito, a função pública ficava onerada com funcionários arguidos penalmente, pronunciados mesmo, mas insusceptíveis de serem suspensos. Não digo tanto, digo apenas que se evite o irremediável da decisão punitiva final, mormente a demissão ou aposentação compulsiva, antes do trânsito penal.
E já agora, pergunto se não causa arrepio ao sentido juridico de cada um ver num processo penal inquéritos disciplinares, autos de sindicâncias, relatórios de inspecção, tudo a concluir, por mão administrativa, como é que sucederam certos factos, quase como que a (im) pressionarem o juiz penal a quem cabe, aparentemente, a decisão fundamental, a prevalente, sobre tal matéria?
P. S. Para aqueles para quem o processo é apenas um fólio de papéis secos: no caso da história alegre, o funcionário, absolvido criminalmente e disciplinarmente ilibado, morreu pouco tempo depois. Assisti à sua decadência, como passou da esperança à indiferença. Ainda hoje quando penso nisso me causa engulhos. Quanto ao outro, aprendeu a odiar a função pública e os tribunais.

3 comentários:

hfm disse...

Não comento mas que a "justiça" é muito estranha... ai isso é!

victor rosa de freitas disse...

É a história por que eu próprio estou a passar.

Não na mão de um qualquer "ministro", mas da PGR.

São os verdadeiros ASSASSINATOS (sempre impunes) do "sistema".

E ainda dizem que vigora o princípio da legalidade estrita...

Os ASSASSINOS do "sistema" são impunes e continuam a sua actividade criminosa, o que daria a prisão preventiva de qualquer leigo, até à sua condenação...

António Madureira disse...

Antes de mais nada, quero apresentar os meus humildes cumprimentos, perante os autores que constituiem este blog.

Em especial para JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS, cujo "escrito" em Liber Disciplorum Figueiredo Dias, é música para os ouvidos de qualquer interessado pelo direito criminal.

A (des)propósito do seu post, e na minha curta vida profissional, fica uma sentença que independentemente da (in)suficiência, de toda a prova produzida, valorou de sobre maneira a sanção disciplinar aplicada pela "justiça do futebol", que como é evidente tem muito a caminhar para se tornar em "justiça dos homens", e na dúvida condenou o arguido.

Suficiência ou insuficiência eis a ciência...!?