terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Limitação de mandatos: argumentos políticos e jurídicos (II)

Público - PAULO RANGEL 
19/02/2013 - 00:00
Não se pode dar por previamente interpretada a norma que afinal se quer agora interpretar
4. Uma advertência intercalar
O tema da limitação de mandatos autárquicos permanece sob as luzes da ribalta. Antes mesmo de prosseguir com o prometido argumentário - que, de resto, não se esgotará por hoje -, justifica-se fazer um ponto de ordem. As diferentes tomadas de posição e a suposta discussão que lhes subjaz, na maior parte dos casos, enfermam do vício da petição de princípio ou denunciam um raciocínio tautológico. E, por isso, é absolutamente essencial prevenir e precaver o maior dos riscos neste debate: dar por interpretada (a priori) a norma que justamente se visa interpretar!
Eis um cuidado que vale tanto para as normas que integram a chamada lei de limitação de mandatos como para as normas constitucionais pertinentes. Com efeito, não falta agora quem tenha subido um degrau e haja transferido o juízo apriorístico para o patamar da Constituição. E as juras de certeza antecipada que antes eram feitas a propósito da lei são agora produzidas, com idêntica profissão de fé, a respeito da Constituição. Importa, pois, seja no plano da lei, seja no plano da Constituição, nunca esquecer um princípio hermenêutico fundamental: não se pode dar por previamente interpretada a norma que afinal se quer agora interpretar.
5. O argumento administrativo (ou da "natureza autárquica" do mandato)
Quando se olha para a querela em volta da lei da limitação de mandatos autárquicos, parece esquecer-se, com demasiada leveza, o adjectivo "autárquicos". Na realidade, concentra-se grande atenção no substantivo "limitação" e porventura mais atenção ainda no conceito de "mandatos". Mas deixam-se no olvido as implicações próprias do carácter autárquico dos mandatos em causa.
Os mandatos autárquicos não podem, pura e simplesmente, ser tratados como os mandatos nacionais. Com efeito, os mandatos autárquicos são, por natureza, "desdobráveis" ou "replicáveis" em centenas ou milhares de unidades estanques no território nacional. E são, por conseguinte, os únicos mandatos a propósito dos quais se pode colocar a questão da permissão ou da proibição da "mobilidade territorial".
Já nos mandatos de alcance nacional, pela própria essência das coisas, essa questão não se põe nem pode pôr-se. Basta pensar na limitação existente para o Presidente da República, para logo ver as diferenças. No caso do Presidente, não subsiste a hipótese de, exercidos dois mandatos, se lançar uma candidatura a novo mandato numa outra circunscrição, pelo que a questão nem sequer se abre. Mas no caso dos presidentes dos executivos autárquicos, porque existe a possibilidade de tentar um mandato numa outra circunscrição, não podemos deixar de nos interrogar sobre o verdadeiro alcance da limitação. Será simplesmente a interdição de desempenho de mais de três mandatos numa concreta e dada autarquia ou será mesmo a interdição absoluta de exercício de mais de três mandatos?
Não faz sentido imprimir uma carga mística ao conceito de mandato autárquico, plasmado na Constituição ou na lei, ligando-o umbilicalmente a um certo território. As funções de presidente de câmara e de presidente de junta podem, por natureza, ser desenvolvidas em territórios diversos. Porque cientes desta possibilidade de exercício de mandatos sucessivos em mais do que um território, não pode à partida excluir-se que a Constituição e a lei não acolham realmente uma proibição absoluta. Há-de ser justamente por referência à ratio essendi da lei e até da Constituição e não por um qualquer apriorismo ou dado prévio que deve ser encontrada uma solução.
6. O argumento da discriminação
Muitos são aqueles que têm visto no estabelecimento da limitação dos mandatos (seja absoluta, seja territorial) uma injusta discriminação dos autarcas (melhor, dos presidentes de executivos autárquicos). E que dizem até que a discriminação será tanto maior quanto mais "absoluto" for o sentido da interpretação.
Em primeiro lugar, perguntam porque não existe uma limitação idêntica para os restantes presidentes de executivos, designadamente o primeiro-ministro e os presidentes de governos regionais. Lembre-se, aliás, que o I Governo Sócrates queria estender o princípio da limitação dos mandatos à chefia de todos os órgãos executivos e que foi essa, de resto, a grande controvérsia que dominou as negociações, a discussão e a aprovação da actual lei. Como à época, deixei escrito em declaração de voto e decorre do que acima se disse, não há qualquer semelhança entre os dois tipos de cargos. A chefia de governos não configura um mandato, porque não corresponde a um cargo electivo. A legitimidade destes cargos é indirecta, a sua continuidade em funções depende dos respectivos parlamentos e, em certas circunstâncias, podem até do chefe de Estado. Não intercede por isso qualquer analogia ou similitude que confira verosimilhança à alegação de discriminação.
Em segundo lugar, e com mais veemência até, insurgem-se contra a inexistência de limitação dos mandatos dos deputados. Nada tenho a opor à limitação de mandatos dos diferentes cargos políticos - aí incluídos os deputados -, mas deve encarecer-se que a teoria política, desde os seus alvores, sempre se focou no risco de perpetuação do poder executivo, em particular daquele poder executivo que goza de legitimidade eleitoral directa. É justamente nesse campo que mais se faz sentir a necessidade de renovação e que, mostra a experiência, mais são de temer a inércia da rotina, o risco de promiscuidade ou até os abusos.
Embora sabendo que há diferenças a considerar, sempre será de perguntar: se tal limitação fosse instituída, aceitar-se-ia que um deputado, consecutivamente eleito, durante três mandatos, pelo círculo de Bragança, pudesse candidatar-se a um quarto mandato nas listas de Vila Real? Ora, aí está um bom teste para os defensores da mobilidade territorial...
Eurodeputado (PSD). Escreve à terça-feira paulo.rangel@europarl.europa.eu

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