Por António Cluny,
publicado em 15 Jan 2013 - 03:00 - Informação
O Estado social é uma
consequência inevitável da democracia. A simples igualdade política dos
cidadãos não basta para fazer uma democracia plena
O Inverno,
que convida ao recolhimento, a necessidade que temos todos de conter despesas e
a premência de discernir a “crise” têm-me compelido a uma certa reclusão e a
pegar em livros que havia apenas folheado e depois guardado, e que hoje
redescubro com surpresa.
Entre eles destaco uma obra de 2002:
“La démocratie providentielle – un essai sur l’égalité contemporaine”, da
socióloga Dominique Schnapper, filha de Raymond Aron, membro do Conselho
Constitucional francês entre 2001 e 2010 e directora de estudos da École des
hautes études en sciences sociales.
Além de uma cuidadosa análise de
vantagens, defeitos, riscos e consequências dos diferentes modelos do
“Estado-providência”, esta obra desenvolve duas ideias, que se me afiguram
particularmente actuais.
Primeira: a democracia, enquanto
sistema que atribui e se funda na igualdade legal dos direitos políticos dos
cidadãos, gera, naturalmente, no seu exercício normal, a vocação para a
reivindicação e a aquisição de mais direitos tendentes à concretização da
“igualdade material”, que a própria prática das liberdades políticas pressupõe.
O Estado social é pois uma consequência inevitável da democracia.
Relatando o processo histórico desta
evolução, refere a autora, a dado passo: “A simples igualdade política de todos
os cidadãos não podia deixar de parecer insuficiente para garantir a verdadeira
cidadania. O cidadão, soberano, nas sociedades organizadas em torno da produção
tinha o direito a gozar das condições de vida materiais susceptíveis de
assegurar a sua dignidade. […] Os homens não são somente produtores, mas
cidadãos. O Estado devia, consequentemente, em nome da solidariedade induzida
pela “comunidade de cidadãos”, compensar os efeitos sociais da estrita lógica
económica, que resultam contrários à justiça social. Ele devia intervir porque
é seu dever garantir a cada cidadão as condições de existência colectivamente julgadas
normais num dado momento”.
D. Schnapper analisa ainda os
modelos de Estado-providência, distingue aqueles que defendem o princípio da
universalidade de direitos e os que atendem prioritariamente à situação
concreta de cada indivíduo ou comunidade e anota os efeitos sociais de cada um
deles.
Mas é a segunda grande ideia, apenas
esboçada, que interpela hoje com mais acuidade.
Na parte conclusiva da obra, ela
questionava, já em 2002, a possibilidade de a UE assegurar realmente uma “nova
cidadania”, capaz de materializar o projecto inevitavelmente político do
Estado-providência, que a democracia moderna fora capaz de construir, até
então, nos limites do Estado-nação.
Interrogava-se pois sobre a
existência, no espaço e nas circunstâncias da UE, de condições de coesão
necessárias à viabilização de um tal projecto político: “Mas a existência de
uma comunidade de cidadãos não é condição necessária para legitimar o sistema
de redistribuição das riquezas?”
Pensar, aqui e agora, o futuro do
“nosso” Estado social não pode pois prescindir da análise destas duas questões.
Procurar, por vanguardismo
neoliberal, limitar a discussão à situação actual das nossas finanças públicas
não será assim apenas uma maneira de iludir as reais opções constitucionais e
políticas dos portugueses em matéria de cidadania?
Os riscos decorrentes de uma tal
opção radical e aventureira são evidentes: além de pôr em causa a sobrevivência
da democracia, poderá conduzir a uma ruptura dramática da coesão social e
económica do país, e portanto afectar a própria paz.
Jurista e presidente da MEDEL
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