terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Tempo e Constituição


Paulo Rangel

Palavra e Poder

Se a 'realidade' faz parte da norma constitucional, dificilmente pode ser vista como marginal à Constituição

1. Há para aí um mundo de comentadores e cronistas que, usando de ironia e quiçá de uma sageza intuitiva, decretaram a manifesta inconstitucionalidade da realidade. Na verdade, nas últimas semanas, mercê da corrida à fiscalização da constitucionalidade da lei orçamental e outrossim dos conteúdos do relatório do FMI, a Constituição, a sua revisão ou até a sua substituição integral andam nas bocas do mundo. Nada que se deva estranhar ou temer. Porque, como assinalou Häberle, a Constituição se dirige à comunidade aberta e plural de intérpretes, em que virtualmente se incluem todos os cidadãos, e não apenas aos juristas ou especialistas.

Sobre a Constituição e o seu sentido, sobre as normas constitucionais e o seu sentido todos podem opinar, ainda que depois tais afirmações ou posições careçam ou possam carecer de um enquadramento técnico (numa espécie de "retroversão" jurídica).

A Constituição não pode ser apenas a sede instituidora da democracia, ela própria tem de ser democrática - democrática no sentido de que está acessível a todos e de que está à disposição e na disponibilidade de todos. Não há donos, nem senhores, nem sequer pais da Constituição. É bem verdade que o Tribunal Constitucional e os seus juízes, quando interpelados para o efeito - e só nesse caso -, exprimem uma posição vinculante e preclusiva, que deve ser acatada e executada como legítima e própria.

Mas mesmo essa decisão está sujeita à crítica e à discordância e pode - como tantas vezes sucedeu e sucede - vir a ser revisitada e revista numa outra circunstância, conjuntura ou contingência.

Não por acaso, num discurso que comemorava o 25 de Abril na Assembleia da República, escrevi e disse - com escândalo de alguns capitães e com nítido desconforto dos mais puristas - que a democracia é, "de entre todos os regimes políticos, aquele que menos deve aos seus fundadores". A democracia e a Constituição estão sempre nas mãos dos cidadãos e nenhuma geração pode amarrar ou agarrar as gerações vindouras àquele que foi o seu desígnio inicial. A vinculação de uma geração ulterior à equação política da geração que a antecedeu é a negação pura e simples da democracia. A democracia é aberta ao tempo e a Constituição, enquanto instrumento que a garante, há-de ser também geneticamente aberta ao tempo (Bäumlin). No dia em que a Constituição se fechar - ou for fechada - ao tempo, o tempo encarregar-se-á de a fechar a ela…

2. Vem esta reflexão a propósito da visão "positivista" e "legalista" da Constituição e das normas constitucionais que, inexplicavelmente, ainda perdura e faz escola entre nós (e não só, diga-se em abono da verdade). Bastaria recordar os trabalhos de Rogério Soares, seja na sua obra maior (Direito Público e Sociedade Técnica), seja numa concisa entrada do Dicionário Jurídico da Administração Pública, seja em lições incompletas que circularam quase marginalmente, seja no célebre artigo "O conceito ocidental de Constituição".

Ou a estimulante monografia de Lucas Pires, publicada em 1970, com o título O problema da Constituição. Nesses trabalhos - e na corrente e na escola que os gerou e que os desenvolveu -, fica claro que a Constituição não é apenas uma norma escrita, um enunciado verbal. E que, muito mais do que isso, o seu sentido normativo resulta da interacção do articulado escrito com um conjunto de valores e com a realidade factual. A norma é, por isso, não propriamente o preceito escrito, mas o resultado interpretativo da leitura desse preceito à luz dos valores dominantes e da concreta situação real a que há-de aplicar-se.

Esta visão - que obviamente não é partilhada por todos - arranca, pois, de uma pré-compreensão quanto à essência ou, como antes se dizia, quanto ao "ser" da Constituição. E, adaptada às profundas mudanças que entretanto sofreram os Estados enquanto entidades políticas, obriga-nos a olhar para a Constituição de modo bem diferente. Por um lado, aceitando que, tal como acontece com a Constituição britânica, nem todo o ordenamento constitucional se reduz a textos escritos. Por outro lado, e reflectindo o ajustamento dos Estados à dinâmica da integração europeia e da integração global, admitindo que há matérias constitucionais reguladas fora da Constituição. Por exemplo, é evidente que os princípios constitucionais em sede económica são hoje os constantes dos tratados europeus (e não propriamente os artigos respectivos inseridos na nossa lei fundamental).

A Constituição não é, pois, susceptível de uma integral redução à forma escrita e (já) não conforma todos os domínios da "sua" competência, abrindo-se à (e articulandose com) a regulação proveniente de fontes exteriores. A que acresce que ela deve ser perspectivada como a lei básica da comunidade política no seu todo e não apenas daquilo que usávamos denominar por "Estado".

3. A admissão de uma narrativa constitucional com este conteúdo e com este alcance altera imediatamente aquelas condenações sumárias da nossa situação real a um "estádio" de inconstitucionalidade. Com efeito, se a própria "realidade" faz parte da norma constitucional, dificilmente ela pode ser rotundamente qualificada como marginal à Constituição. É também manifesto que se os princípios da necessidade e da proporcionalidade têm valor fundamental, então os imperativos da realidade têm cabimento e acolhimento jurídico. E é finalmente ostensivo, embora com sinal diverso ou até inverso, que, por mais que se alterem os textos, não há Constituição democrática sem vigência dos princípios da igualdade e da proporcionalidade que,com mais ou menos ponderação da situação real, resistirão sempre a qualquer revisão ou novação da Constituição.

Suzanne Cotter, nova directora do Museu de Serralves. Na entrevista dada à revista do Expresso ressalta a atitude de liderança, arrojo e risco de que precisa o Porto. E já agora o país.

Petição em defesa do cão que matou uma criança. Os animais merecem cuidado e afeição, mas não podem equiparar-se à pessoa humana. Uma família devastada carece do nosso respeito, solidariedade e compaixão.
Público, 15-01-2013

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