Sobre este livro de que demos notícia aqui, e em que colaboramos, foi publicada esta interessante nota do Prof. Bacelar de Vasconcelos no JN:
A linguagem da justiça
Os tribunais foram inventados para
decidir conflitos que, de outra forma, permaneceriam para sempre irresolúveis.
Para esse efeito, foi-lhes conferida uma autoridade irrecorrível e a independência
estatutária necessária para afiançar às irreconciliáveis paixões em confronto
uma promessa credível de solução imparcial. A justiça substantiva da decisão
final ficava, apenas, dependente da bondade da lei universal - geral e abstrata
- cujo sentido concreto se postulou ser apenas acessível naquele preciso lugar
e segundo o ritual previamente estabelecido - pausado, complexo e rigoroso.
Para os diversos atores judiciais, mediadores exclusivos e devidamente iniciados,
foram confecionadas vestes distintas e apropriadas, um palco destacado, uma
arena, um cenário sóbrio e condizente.
Mas faltava ainda um elemento
essencial: a palavra - o que obrigou à construção de uma nova língua.
Durante muito tempo, foi possível
ignorar as críticas que denunciavam a ambiguidade das leis, assentenças tardias
e inúteis, a morosidade dos processos, a opacidade da linguagem convencionada, enfim,
tudo o que, flagrantemente, distanciava a minuciosa encenação judicial da
realidade comum.
Mas não era essa, exatamente, a sua
finalidade? Persuadir os litigantes a acatar as regras imperantes nesse outro
universo ou, como dizia Niklas Luhmann, predispor as partes desavindas a
aceitar "uma solução", "qualquer que ela fosse"?
Esse espaço exclusivo, reservado a
mediadores iniciados, acabaria por ceder à inevitável contaminação democrática
e ao envolvimento crescente das instituições judiciais nas mais díspares
modalidades de composição de conflitos que marcam a sociedade contemporânea.
Onde remotamente se viam apenas as virtudes da morfologia conceptual e da
sintaxe dogmática que configuravam a linguagem jurídica e uma inacessível gíria
forense, passou exigir-se a legibilidade indispensável à participação reclamada
por todos os interessados, profissionais ou leigos. A própria formulação das
leis, vencendo objeções catastrofistas que anunciavam a perda irreparável de
todo o rigor e autoridade, vai aceitando incorporar exigências de clareza e
simplificação discursiva.
Em maio do corrente ano,
realizou-se em Coimbra, no âmbito do "Programa de Formação Avançada - Justiça
XXI", um seminário interdisciplinar dedicado ao tema da "Linguagem,
Argumentação e Decisão Judiciária", promovido por organizações
profissionais de juristas em colaboração com o "Observatório Permanente da
Justiça" do "Centro de Estudos Sociais" da Universidade de
Coimbra. Dos trabalhos apresentados por autores "com origem em diversas
áreas do saber e com diferentes experiências profissionais" - física, linguística,
filosofia, retórica e direito - resultou a publicação, em dezembro, pela Coimbra
Editora, de um livro extremamente interessante, com o mesmo título do referido
encontro científico, coordenado pelo Procurador da República, Rui do Carmo.
Como ali explicam Maria Manuel
Leitão Marques e Mafalda Domingues, "linguagem clara e rigor não são
conceitos opostos, pelo contrário, muitos exemplos mostram que ao eliminar as
ambiguidades e as falhas que o excesso de complexidade tende a esconder, a
linguagem clara pode até contribuir para mais rigor e precisão" (pp.
82,83). A clareza é também manifestação do respeito devido ao destinatário da
mensagem e é este quem, definitivamente, a irá aferir. É destas problemáticas
contemporâneas que se trata nesta obra, sem iludir as dificuldades, sem
confundir as diferentes instâncias discursivas da linguagem jurídica nem as
respetivas funções e contextos específicos, evitando enviesamentos disciplinares
redutores duma "compreensibilidade" que só pelo "diálogo
interdisciplinar" é possível esclarecer ou facultar.
PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS
Jornal de Notícias publicado a
2012-12-28 às 00:00
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