quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Ainda o livro "Linguagem, Argumentação e Decisão Judiciária",


Sobre este livro de que demos notícia aqui, e em que colaboramos, foi publicada esta interessante nota do Prof. Bacelar de Vasconcelos no JN:


A linguagem da justiça

Os tribunais foram inventados para decidir conflitos que, de outra forma, permaneceriam para sempre irresolúveis. Para esse efeito, foi-lhes conferida uma autoridade irrecorrível e a independência estatutária necessária para afiançar às irreconciliáveis paixões em confronto uma promessa credível de solução imparcial. A justiça substantiva da decisão final ficava, apenas, dependente da bondade da lei universal - geral e abstrata - cujo sentido concreto se postulou ser apenas acessível naquele preciso lugar e segundo o ritual previamente estabelecido - pausado, complexo e rigoroso. Para os diversos atores judiciais, mediadores exclusivos e devidamente iniciados, foram confecionadas vestes distintas e apropriadas, um palco destacado, uma arena, um cenário sóbrio e condizente.
Mas faltava ainda um elemento essencial: a palavra - o que obrigou à construção de uma nova língua.
Durante muito tempo, foi possível ignorar as críticas que denunciavam a ambiguidade das leis, assentenças tardias e inúteis, a morosidade dos processos, a opacidade da linguagem convencionada, enfim, tudo o que, flagrantemente, distanciava a minuciosa encenação judicial da realidade comum.
Mas não era essa, exatamente, a sua finalidade? Persuadir os litigantes a acatar as regras imperantes nesse outro universo ou, como dizia Niklas Luhmann, predispor as partes desavindas a aceitar "uma solução", "qualquer que ela fosse"?
Esse espaço exclusivo, reservado a mediadores iniciados, acabaria por ceder à inevitável contaminação democrática e ao envolvimento crescente das instituições judiciais nas mais díspares modalidades de composição de conflitos que marcam a sociedade contemporânea. Onde remotamente se viam apenas as virtudes da morfologia conceptual e da sintaxe dogmática que configuravam a linguagem jurídica e uma inacessível gíria forense, passou exigir-se a legibilidade indispensável à participação reclamada por todos os interessados, profissionais ou leigos. A própria formulação das leis, vencendo objeções catastrofistas que anunciavam a perda irreparável de todo o rigor e autoridade, vai aceitando incorporar exigências de clareza e simplificação discursiva.
Em maio do corrente ano, realizou-se em Coimbra, no âmbito do "Programa de Formação Avançada - Justiça XXI", um seminário interdisciplinar dedicado ao tema da "Linguagem, Argumentação e Decisão Judiciária", promovido por organizações profissionais de juristas em colaboração com o "Observatório Permanente da Justiça" do "Centro de Estudos Sociais" da Universidade de Coimbra. Dos trabalhos apresentados por autores "com origem em diversas áreas do saber e com diferentes experiências profissionais" - física, linguística, filosofia, retórica e direito - resultou a publicação, em dezembro, pela Coimbra Editora, de um livro extremamente interessante, com o mesmo título do referido encontro científico, coordenado pelo Procurador da República, Rui do Carmo.
Como ali explicam Maria Manuel Leitão Marques e Mafalda Domingues, "linguagem clara e rigor não são conceitos opostos, pelo contrário, muitos exemplos mostram que ao eliminar as ambiguidades e as falhas que o excesso de complexidade tende a esconder, a linguagem clara pode até contribuir para mais rigor e precisão" (pp. 82,83). A clareza é também manifestação do respeito devido ao destinatário da mensagem e é este quem, definitivamente, a irá aferir. É destas problemáticas contemporâneas que se trata nesta obra, sem iludir as dificuldades, sem confundir as diferentes instâncias discursivas da linguagem jurídica nem as respetivas funções e contextos específicos, evitando enviesamentos disciplinares redutores duma "compreensibilidade" que só pelo "diálogo interdisciplinar" é possível esclarecer ou facultar.
PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS
Jornal de Notícias publicado a 2012-12-28 às 00:00

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