quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Secretas. Elas podem ou não dar informações às empresas?


A reforma dos serviços de informação está em curso, mas os especialistas pedem cautela e bom senso

SÍLVIA CANECO

Devem as secretas passar informação às empresas? A pergunta faz todo o sentido perante a reforma dos serviços de informação já anunciada pelo governo. O primeiro-ministro, aliás, já lançou umas pistas sobre o que pretende ao anunciar em Dezembro que as secretas "podem e devem" informar as empresas sobre os mercados onde operam. Não é o único a defender isso: o secretário-geral do Sistema de Informações da República Portuguesa, Júlio Pereira (a cúpula do SIS e do SIED), também admitiu numa audição parlamentar que os serviços de informações mantêm contactos informais com empresas nacionais nas áreas da energia, da banca e das telecomunicações visando alertar para "oportunidades e riscos" de certos negócios. Os especialistas ouvidos pelo i avisam, no entanto, que o assunto é delicado e por isso exigem bom senso e uma legislação rigorosa.

A lei de 2007 que estabelece a orgânica dos serviços de informações não o diz ipsis verbis mas levanta a cortina: as actividades das secretas servem a segurança interna e externa do Estado português, mas também devem salvaguardar "os interesses nacionais". José Manuel Anes, presidente do conselho consultivo do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), explica que essa prática faz parte da rotina da dos serviços de informações de todos os países. "Os serviços dão e devem continuar a dar informações a empresas estratégicas sobre eventuais riscos de investimento no estrangeiro, ou mesmo informações sobre possibilidades de conflito nas zonas onde têm investimentos ou querem investir."

O Estado tem portanto de garantir a protecção dessas empresas que, apesar de serem privadas, "não deixam de ser portuguesas". Essa função cabe sobretudo ao Serviço de Informações Estratégicas e Defesa (SIED), enquanto secreta responsável pela segurança externa, mas também é uma responsabilidade da secreta interna (o SIS), que, segundo José Manuel Anes, deverá manter um diálogo com determinadas empresas - como os serviços rodoviários, as empresas de abastecimento de água ou de electricidade - caso perceba que as suas estruturas físicas estão ameaçadas por algum risco.

BOM SENSO O certo é que não existe uma lista a determinar quais são as entidades privadas que devem ser consideradas estratégicas. "É uma questão de bom senso. Se temos uma grande empresa de construção civil a querer investir numa zona conturbada como o Magrebe, essa empresa deve ser alertada para os riscos", diz o presidente do conselho consultivo do OSCOT, para quem não há dúvidas de que o tema só suscitou "tanta indignação" porque o ano de 2012 ficou marcado por um processo em que se suspeita que um ex-director do SIED, Jorge Silva Carvalho, terá passado informações confidenciais a uma entidade privada - Ongoing - em troca de um contrato na empresa.

"Não estamos aqui a falar de informações privilegiadas, de dar informações a empresas sobre os seus concorrentes cá. Isso seria inaceitável. Se as empresas querem informação sobre a concorrência, é para isso que têm os seus gabinetes de competitive intelligence", defende o também ex-grão mestre da Grande Loja Legal de Portugal (GLLP), que se auto-suspendeu da maçonaria para poder fazer declarações públicas a acusar o ex-chefe do SIED, de quem foi padrinho no seio da organização maçónica, de ter usado a maçonaria para um projecto "de ambição pessoal".

EXCEPÇÕES O constitucionalista Bacelar Gouveia, que já dirigiu o conselho de fiscalização dos Serviços de Informações da República Portuguesa (SERP), defende por outro lado que "o assunto é delicado" e deve ser "muito bem legislado". "A possibilidade de as secretas passarem informações às empresas privadas deve ser aceite, mas com várias cautelas", adverte o especialista, defendendo ainda que esta possibilidade deverá ser sempre encarada como "excepcional", e garantir também as condições de igualdade, para que uns grupos económicos não sejam favorecidos em detrimento de outros. "O interesse nacional deve ficar bem fundamentado para que se comprove um interesse que justifique gastar dinheiro com determinada empresa privada."

Esse deverá ser aliás um dos pontos que o governo irá clarificar na lei, aproveitando o embalo da reforma das secretas. Outro ponto passa por introduzir um "período de nojo" até cinco anos para os agentes do SIS e do SIED que abandonem funções para trabalhar no privado. A medida terá como objectivo evitar réplicas de situações como a de Silva Carvalho - que abandonou o SIED para ir imediatamente para a Ongoing.

DOIS EM UM? Fundir as duas secretas era também uma urgência deste governo, mas os planos caíram por terra depois de o PS rejeitar a ideia. "O PSD entendeu que não devia fazer essa mudança sem apoio dos socialistas e creio que foi prudente", defende Bacelar Gouveia. Mas, embora os serviços estejam organizados em duas estruturas - uma interna e outra externa -, já existem departamentos comuns ao SIS e ao SIED. O departamento de segurança, de recursos humanos, de finanças e apoio geral e ainda de tecnologias de informação já estão na dependência directa do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP). Manuel Anes é, contudo, partidário de dois serviços distintos. "São duas vocações diferentes e, em países com alguma imaturidade democrática concentrar tudo num pode ser perigoso", avisa, dando o exemplo da denúncia que levou à descoberta de que teria havido agentes das secretas a ajudar Silva Carvalho a fornecer informações à Ongoing. "Convém que haja sempre uma observação atenta. Nada melhor que ter um serviço a olhar para o outro." Bacelar Gouveia admite que se pode perder "um certo espírito de competição entre os dois serviços", mas é adepto da fusão. "Quando há dois serviços separados, eles não comunicam. Só falam um com o outro através do secretário-geral." Além disso, acrescenta, "traz a vantagem da poupança, já que passaria a haver só um director". Qual é o caminho? Para o constitucionalista e ex-deputado do PSD existem duas opções: a "fusão forte", em que tudo é concentrado num serviço; e a "fusão fraca", em que passa a haver um só serviço de informações, mas "com duas asas".

Ou seja, um departamento interno e outro externo. Apesar das múltiplas sugestões, Manuel Anes está convencido de que não está na separação ou na junção o maior problema dos serviços de informações portugueses. "Se queremos que sejam mais eficazes, teremos de lhes dar mais poderes legais e mais meios", remata.
I, 3-1-2013

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