quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

RAMOS CANIÇO, COORD. INVESTIGAÇÃO CRIMINAL: "Criminalidade não justifica aumentar quadros na PJ"


por Valentina Marcelino e Licínio Lima

Ramos CaniçoFotografia © João Girão/Global Imagens
Uma referência da Polícia Judiciária, Ramos Caniço deixa a instituição depois de 32 anos de serviço contra o crime. Na sua primeira grande entrevista após a aposentação, o antigo coordenador afirma que neste momento os meios da PJ são suficientes para responder à evolução da criminalidade.
O que há de diferente entre a PJ de hoje e a PJ onde entrou há 32 anos?
Quando cheguei à PJ encontrei uma polícia um bocado individualista baseada nas estrelas. Isto é, tínhamos aqueles investigadores que se distinguiam pela sua intuição, no âmbito de uma investigação criminal própria do século XX e, sobretudo, da primeira metade do século, baseada na rua, na recolha de informação proveniente dos processos. Depois era o 'dedinho' do agente que fazia a diferença de investigação para investigação.
Passados 32 anos, já não há as estrelas dos anos 80, mas deixei uma polícia científica, uma polícia técnica, que foi evoluindo e estruturando no sentido de aproveitar as novas tecnologias.
Mas a PJ perdeu a rua...
A rua não se perdeu. A rua pode ter sido transferida de instituição para instituição. Com a nova lei orgânica de 2000 , a PJ começou a especializar-se e dedicar-se à criminalidade mais complexa, à criminalidade transnacional, internacional - terrorismo, corrupção, tráfico internacional de estupefacientes e por aí fora. Ou seja, as burlas, os abusos de confiança, assaltos, os furtos, passaram a ser investigados pela PSP e pela GNR indistintamente, dependendo apenas da área geográfica.Mas, mesmo a informação, da rua, daqueles processos que deixaram de ser investigados pela PJ, não se perdeu. Só perco a colheita direta. Basta que a informação flua entre os órgãos de polícia criminal. O que já acontece, mas ainda não de forma automática.
Está a falar de um mundo irreal. As polícias não partilham informação... Ainda no verão aconteceu um exemplo, que poderia ter tido consequências trágicas, em Aljezur, no qual a PJ e a Marinha fizeram uma operação na área da GNR e não avisaram...
Mas isso terá sido uma questão de coordenação operacional. Tinha que ter havido um telefonema de alguém para outrem a dizer 'olha eu vou entrar na sua zona, no dia a ou b, ou entre as horas a ou b, atenção se vires alguma coisa estranha'. Isto é que não terá sido feito. Quanto à partilha de informação entre as polícias, ela acontece. O que não partilham é informação online, automatizada.
São frequentes os casos da PSP e da GNR terem a tentação de extravasar a sua área de competência, por exemplo na investigação de raptos...
Mas a culpa não é da PSP nem da GNR. Ninguém investiga nada que não for deferido pelo Ministério Público (MP). O que acontece muitas vezes é que o MP decide investigar ele determinado crime e depois, como temos visto em alguns casos de corrupção, aparece gente da PSP, GNR, peritos tributários metidos numa equipa que está a investigar. Mas na verdade eles estão é auxiliar o MP. Ou seja, não há um deferimento formal de competência de investigação na PSP ou na GNR. São o apoio em campo.
Mas tem havido o argumento, como aconteceu na investigação dos ATM, que a PJ não tem capacidade para responder...
Há muita coisa que se diz que não é verdade. Se olharmos para o tempo de investigação de um inquérito nos anos 90 e o que demora hoje, hoje demora menos. Seja qual for o tipo de inquérito. Há inquéritos muito complexos, como os da criminalidade económica. Mas se olharmos hoje para as estatísticas, os inspetores da PJ têm hoje menos processos distribuídos do que no final anos 90, devido à Lei Organização de Investigação Criminal. Não podemos é deixar de pensar na diferença de inspetor/hora de trabalho que leva um processo de corrupção ou um assalto a uma ourivesaria. Há, por outro lado, determinados tipo de investigação que exigem uma especialização do inspetor em termos de recolha de prova - como a criminalidade económica - que as outras polícias, do meu ponto de vista, não estão minimamente preparadas para o fazer.
Os magistrados do Ministério Público (MP) estão preparados para investigar?
Nunca estiveram. Não é numa visita que se faz à PJ numa semana que os magistrados ficam a conhecer os métodos de investigação criminal. Mas também é verdade que há magistrados e magistrados e há alguns que têm neste momento tanta competência para investigar como um inspetor da PJ.
A PJ é cada vez mais um braço armado do MP?
Eu diria o contrário. Como demonstra a 'Operação Furacão' e outras, cada vez menos o braço armado do MP é a PJ.
E isso deve-se a quê?
É que a PJ não costuma abdicar da sua independência na questão da competência técnica e autonomia tática. Fazer isso seria abdicar de cerca de 70% da eficácia da investigação. Ninguém nega ao MP que seja o gestor da investigação, o titular, mas o que a PJ diz é o seguinte: ou o MP quer investigar ele próprio e não precisa de ninguém muito especializado ou defere a competência da PJ e aí compete à hierarquia da PJ gerir a investigação e apresentar os resultados. Ou então o MP investiga e diz à GNR, PSP ou autoridade tributária o que querem que eles façam, diligência a diligência. E é isto que a PJ tem dificuldade em aceitar, que lhe digam o que fazer.
Mas cada vez há mais casos de delegação de competências na GNR ou na PSP de crimes de competência da PJ, com o argumento que a PJ não tem capacidade... A falta de quadros na PJ está a levá-la a perder terreno na investigação criminal?
A PJ tem meios e pessoas para isso. Os quadros da PJ não estão a 100%. Nunca estiveram. Estarão mais ou menos a metade. Nestes últimos 32 anos, que me lembre, houve sempre vagas na PJ.
Mas nesta questão do MP delegar ou não, não me parece que tenha a ver com a capacidade das polícias. O que me parece que tem a ver é com a necessidade sentida por alguns magistrados de serem eles próprios a fazeres as coisas. Mas eu aí acho que havia um exercício que devia ser feito: deviam ser averiguados nos casos investigados pelo MP e nos pela PJ quem tem mais condenações.
Mas o quadro da PJ, como já disse, está a 50%....
A Direção Nacional (DN) da PJ neste momento só tem dois elementos. É a mais reduzida direção de sempre. Mas se estes dois diretores entendem que conseguem, com algum sacrifício, assumir aquela responsabilidade, essa é uma posição absolutamente inatacável. Porque no estado de constrangimento orçamental que está a PJ se se consegue apresentar resultados com uma direção reduzida é um argumento imbatível nesta altura.
Claro que isso provocará um enorme desgaste físico e psicológico...
E os inspetores que estão no terreno, não terão um ainda maior desgaste?
Os inspetores têm os seus diretores e se esses diretores conseguirem proporcionar ao diretor nacional e ao diretor nacional adjunto resultados...
A PJ está bem então?
A PJ não está bem, mas também não está a ponto de cair. A PJ com o DN que é oriundo da casa, conhece bem o funcionamento de tudo e os seus colegas. Tem condições, com o seu adjunto, de funcionar bem. Não é o ideal. Mas a PJ funciona. Quanto aos quadros, e eu tenho muita pena de dizer isto, mas temos de ver as coisas de um ponto de vista de gestão.
Eu preciso de quadros numa polícia de acordo com o volume de trabalho dessa polícia. Se eu tenho um campo de investigação mais reduzido que há 15 anos eu precisarei do mesmo quadro de pessoal que tinha nessa altura? Por outro lado, coloca-se outra questão: a evolução da criminalidade foi tão grande nestes últimos anos no sentido que justifique eu ter de aumentar os meus quadros. Olhamos para essa evolução e isso não se verificou. A evolução da criminalidade, como a conheço até agora, não justifica que tenhamos de aumentar os quadros da polícia.
O sindicato da PJ (ASFIC-Associação Sindical dos Funcionários da Investigação Criminal) tem reivindicado o contrário...
O que tem que se ver é se esse não preenchimento do quadro colide com a qualidade da investigação e que se alcancem resultados na investigação. Até agora viu-se que não.
Porque há sempre reações tão negativas na PJ quando se fala numa fusão das polícias?
É uma questão de quintas.
Mas qual é o receio? Medo de ser absorvida? Porque não o contrário? Pense numa direção de investigação criminal numa Polícia Nacional, que absorve os quase 4000 investigadores da GNR e da PSP, como sugeria uma proposta do PSD, não seria mais eficaz?
Não vejo porque é que a PJ há-de ser fundida com outras polícias. Do ponto de vista da eficácia a ideia que tenho é que a criação de PN noutros países não vieram trazer melhorias do ponto de vista da eficácia.
Mas no caso português qual seriam as desvantagens?
A desvantagem é só uma. A PJ é um órgão auxiliar da administração da justiça que as outras não são. São polícias de segurança pública. Por isso a PJ é considerado um corpo superior de polícia. Sendo assim tem necessariamente de estar no Ministério da Justiça. Por outro lado, a PJ não trata questões de trânsito, nem de policiamento, e nunca o iria fazer. Faz só investigação criminal e isso é propriedade exclusiva do MP em Portugal, que é MJ. Não faz, por isso, nenhum sentido, tirar a PJ do MJ. Porque se eu transformar a PJ numa direção de uma outra polícia qualquer, eu estou a transpor do MJ para o MAI um órgão que é um auxiliar da administração da justiça, que trabalha exclusivamente com o MP e com o MJ. Não tem nada a ver com o MAI. Nem do ponto de vista orgânico faz sentido.
E mais, a investigação criminal nas outras polícias nem é o seu objetivo principal. Na PJ é o objetivo exclusivo.
A PJ não fica isolada com esta atitude? São elitistas?
A PJ tem diferenças das outras policias. Não entra ninguém que não seja licenciado. A PJ tem sistemas de formação d e investigação criminal que, provavelmente, são diferentes. A PJ tem a base nacional das impressões digitais, tem o laboratório de policia científica, está a formar as equipas de local de crime. Tem uma série de valências que as outras polícias não têm.
Os magistrados estão a desaparecer da PJ?
Os magistrados na PJ faziam sentido logo a seguir ao decreto-lei 35 042, de 1945 (que requalifica a PJ), na tradição dos anteriores serviços de investigação criminal, quando os elementos da PJ tinham a 4ª classe e o 5º ano. Hoje só tem gente licenciada, portanto tenho um estatuto cultural ao nível dos magistrados.
Se houvesse mais magistrados nas unidades nacionais o diálogo com o MP não estaria facilitado?
Mas já tivemos magistrados, como diretores nacionais adjuntos, praticamente em todas as unidades nacionais e, que eu me recorde, das situações de maior tensão entre a PJ e o MP, foi nesse altura. Recordo, por exemplo, o início da década de 90. Mas melhor que eu o Dr. Marques Vidal pode falar disso. Ele tem uma memória extraordinária.
Por outro lado, a verdade é que na ultima década o único diretor nacional que aguentou um mandato inteiro foi o atual diretor de carreira. Mais nenhum conseguiu.
A atual estrutura orgânica da PJ está adaptada às organizações criminosas, cada vez mais frequentes, que operam em vários tipos de crime?
Só temos três grandes tipos de crime: contra a propriedade e os económicos e temos uma unidade nacional vocacionada para isso; a criminalidade transnacional de trafico de estupefacientes, e também temos uma unidade vocacionada; depois o terrorismo e os crimes contra as pessoas, cuja criminalidade organizada tem os raptos, sequestros e homicídios. Tirando os homicídios, todos os outros caem numa unidade nacional que é a Unidade Nacional de Contra-Terrorismo (UNCT), que do meu ponto de vista se chamava muito melhor, como antes, Direção Central de Combate ao Banditismo, que é a essência da sua existência e não propriamente o terrorismo, que acabou com a FP 25. Nunca mais houve nada de terrorismo. E mesmo o terrorismo das FP 25... enfim... à portuguesa.
Mas há organizações que se dedicam a todo este tipo de crimes. Não faria sentido uma abordagem de investigação às organizações propriamente ditas, com gente de todas as unidades relacionadas, em vez de investigar o crime em si?
Nessas alturas a informação é cedida por todos. Na investigação também muitas vezes vão pessoas das diversas unidades coordenadas pelos diretores.
Diário de Notícias, 3-1-2013

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