O Julgamento, Narrativa Crítica da Justiça
de Álvaro José Brilhante Laborinho Lúcio
Notas
de Leitura 3:
Daí que, acompanhando os tempos
e sua evolução, o livro esteja divido em quatro grandes partes: a primeira de 1968
a 1974, a segunda de 1974 a 1990, a terceira de 1990 até ao presente e a quarta
em que é proposta a abertura de uma reflexão sobre o Estado, a democracia, a
política no futuro, num corte com o discurso dominante sobre a justiça para
procurar responder às exigências do sistema face à mudança radical da realidade
exterior, como procura sublinhar na alegoria inicial, com os juízes a certa
altura a olharam para fora da carruagem e verificaram que o comboio estava
parado há muito tempo e a linha desactivada, enquanto haviam mantido o
discurso.
Face à forma como a Constituição
trata a Justiça e os tribunais, sem se referir ao poder judiciário, o Autor enfatiza
a distinção entre poder judicial e sistema de justiça, este mais vasto do que aquele,
para propor uma intervenção ao nível dos respectivos modelos, para dar corpo ao
sistema de justiça5, mas não estruturado sobre a afirmação das
autonomias que gerou mecanismos internos de corporativismos no sentido de que
se criam circuitos fechados dentro do sistema de justiça, sem qualquer tipo de
cooperação ou co-responsabilização.
Defende um conselho único para o sistema de justiça, que tenha a seu cargo a
gestão e a administração do que tem a ver com a magistratura judicial, o
Ministério Público, os Tribunais Administrativos e Fiscais integrados também
por juízes, mas não designados por eles, mas como entidades indicadas
exactamente pelo poder político Assembleia da República, o Governo, o Presidente
da República que não se ocupe do jurisdicional, aos processos que cabe aos
tribunais, sem qualquer tipo de intervenção, mas na gestão global do sistema da
justiça, onde se deve criar co-responsabilização, cooperação acountability.6
Descrendo o Autor da possibilidade
de regeneração de um sistema que – a seu ver – mesmo do ponto de vista do
pensamento se tornou burocrático e obsoleto, propõe se encontre um mecanismo de
cooperação interna, mecanismo de definição estratégica que permita que os
tribunais se assumam eles próprios também como integrando a actividade
estratégica do Estado, não se comprometendo com as políticas em concreto, mas
comprometendo-se com a dimensão estratégica do próprio Estado definida nas leis
que lhes cabe aplicar.
Mas sublinha que não se trata
de um programa de governo, mas sim de provocar um debate que possa responder a um
conjunto de questões, algumas delas fortes que coloca, um debate vivo na
sociedade portuguesa, nos partidos políticos, na Assembleia da República,
saindo do Governo e dentro deste do Ministério da Justiça, onde tem
essencialmente permanecido, com vista a uma reforma da justiça que conduza
também à reforma da política entre nós.
O livro, sendo obviamente
dirigido ao jurista, interpela igualmente o cidadão, as pessoas que pensam as
coisas da justiça, as que pensam as questões do Estado, a cidadania em geral.
Com efeito, o Autor, como
refere na contracapa, identifica finamente os «múltiplos e complexos os
factores que, acumulados ao longo de décadas conduziram a justiça, e não apenas
entre nós, a uma situação de precariedade tanto na solidez das estruturas que a
suportam, como na qualidade e na eficácia das respostas que se lhe solicitam». O
«sentimento de “crise” – que se instalou – sobre o qual nem sempre se promoveu
a necessária análise crítica que permitisse elencar os factores que a
determinam e buscar caminhos para a sua superação.»
Faz apelo ao reconhecimento do juízo
de precariedade que se abateu sobre o sistema e o atravessou na pluralidade das
suas expressões, desde o plano ontológico […] até aos domínios da sua
realização prática […] para concluir que a crise
dos sistemas de justiça constitui questão de natureza política a debater fora
dos espaços especializados, nomeadamente da chamada «comunidade jurídica», como
verdadeira questão de cidadania.
É interessante que, na Justiça e os Justos (1999), a terminar,
o Autor responde à pergunta de como desejaria que fosse a Justiça de amanhã, da
seguinte forma:
Gostaria
que a Justiça de amanhã fosse, exactamente, o que os cidadãos, conscientes,
quisessem que ela fosse. Daí, julgo ser fundamental informar melhor os
cidadãos, para os tomar cada vez mais conscientes da importância essencial,
quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista individual, do que é ter
uma justiça à medida do que são as exigências profundas da democracia. A
Justiça, no fundo, joga directamente com questões essenciais como a segurança
dos cidadãos, mas também como a liberdade e como a sua própria felicidade.
Quando
sentirem, que é na sua mão que se detém, verdadeiramente, o poder democrático,
serão capazes de lutar por uma Justiça com essa dimensão. Quando forem capazes
de o exigir, estarão mais perto de o ter. Quando o tiverem, terão a Justiça que
eu gostaria de ver no meu país, no século XXI.
No livro que hoje se apresenta
– e assim termino – o Autor presta o seu depoimento, no qual faz uma certeira e
profunda análise da evolução e estado actual estado da justiça, o Estado e a
democracia e, entre muitos outros pensamentos, faz – quero crer – as perguntas
fortes mas capazes de propiciarem um debate fundamental.
Numa importante concretização
da necessidade de mais ampla participação de todos no acompanhamento da
política da justiça, a que se referia o Presidente Jorge Sampaio7
dizendo que se trata de «questão tão inadiável e tão inequivocamente decisiva
para o futuro dos portugueses e do pleno exercício da sua cidadania, que se
impõe a intervenção eficaz de todos os que têm uma palavra a dizer. No respeito
das competências inalienáveis do poder político – decerto. Mas com apelo a
todos os que, pela sua experiência e saber, são condição insubstituível para
que aquelas competências se exerçam – bem e depressa.»8
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5 Não entrando na questão mais esotérica de saber
o que é isso de sistema, se a teoria sobre sistemas ainda faz sentido.
6 Portanto se nós não reforçarmos o sentido da
responsabilidade nós podemos estar no mundo moderno a fazer esta coisa que dentro
de pouco tempo se pode tornar ela própria também viajante de um comboio parado
com a linha desactivada que é continuarmos a defender a outrance a separação de poderes quando o poder está completamente
fora dos poderes separados entre si.
7
Intervenção do Presidente da República na abertura do ano judicial de 1998.
8 Intervenção citada
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