10/01/2013 - 00:00
Cortes permanentes nos salários e pensões,
despedimentos na função pública, subsídios dependentes do crescimento do PIB:
as medidas sugeridas pelo FMI têm o potencial para animar ainda mais o debate
constitucional no país
As classificações
repetiam-se à medida que se desfiavam as propostas perante os dois
constitucionalistas consultados pelo PÚBLICO. "Problemático",
"problema acrescido", "violação".
Por não serem novas, por transformarem em permanente o que fora
apresentado como extraordinário, por já terem sido objecto de jurisprudência do
Tribunal Constitucional, Bacelar Vasconcelos e Bacelar Gouveia levantaram
sérias dúvidas sobre a possibilidade de virem a ser aplicadas algumas das
ideias mais emblemáticas e com maior capacidade para cortar na despesa constantes
no Relatório do FMI ontem divulgado pelo Governo, após ter sido noticiado de
forma quase integral pelo Jornal
de Negócios.
Apesar de o FMI afirmar no documento - realizado a pedido do
Governo como contributo para a redefinição das funções do Estado e o corte
adicional de 4000 milhões de euros de despesa - que "qualquer reforma deve
ser baseada em medidas de uma natureza permanente e, por isso, consistente com
os constrangimentos constitucionais existentes", poucas são as medidas que
não colocam dúvidas a nível constitucional. O documento tem por isso o
potencial para animar ainda mais uma discussão já bastante acesa com os pedidos
de fiscalização do Orçamento do Estado de 2013.
Senão vejamos: nas três opções colocadas pelo FMI para a reforma
da segurança social, apenas uma foi vista pelos dois constitucionalistas como
passível de não levantar sérias dúvidas em termos de adequação às normas
constituicionais.
Bacelar Vasconcelos começou pela proposta do corte permanente de
15% em todas as pensões. "Não vejo como um montante dessa natureza possa
ser obtido sem violação da Constituição", disse ao referir-se ao princípio
da igualdade. Bacelar Gouveia concorda, lembrando que se no passado estes
cortes passaram no TC, tal se devia ao seu caracter temporário. "A única
solução possível seria admitir a redução das pensões, mas para as camadas mais
jovens", admite.
A proposta de fazer depender o pagamento do 13º e 14º meses do
comportamento do PIB pareceu também a ambos uma hipótese remota.
"Condicionar os subsídios ao comportamento de um índice económico,
deixando de ser por um tempo determinado, ainda por cima tendo em conta um
indicador cuja evolução é imprevisível, afectaria a excepcionalidade que foi
tida em conta no passado pelo TC", alerta Bacelar Vasconcelos. Bacelar
Gouveia vai ainda mais longe ao lembrar que caso a medida fosse aplicada a
pensionistas, estes estariam a ser penalizados por uma "situação económica
para a qual já não contribuiriam". "Além disso assenta numa ideia do
indivíduo ao serviço do colectivo: é uma concepção totalitária e
anti-democrática", critica o constitucionalista próximo do PSD.
O terceiro cenário apresentado - mudar a fórmula de cálculo para
todos os pensionistas, incluindo os actuais - "levanta todos os problemas
que já conhecemos e sobre os quais o TC já fez jurisprudência", alerta
Vasconcelos. Gouveia apenas admite essa possibilidade na eventualidade desta
ser trabalhada por forma a surgir uma "diferenciação de estratos"
etários.
A única proposta do FMI vista como constitucionalmente aceitável
é o aumento da idade da reforma e mudança da fórmula de cálculo das pensões
para os futuros reformados. "Desde que o princípio da igualdade não seja
violado", resumiu Vasconcelos.
As propostas relativas à função pública também não escapam às
dúvidas constitucionais. Sobre a proposta de cortes salariais permanentes para
todos os funcionários, Vasconcelos afirma que "não há forma de escapar
àquilo que já foi decidido pelo TC". Gouveia classifica a medida como
"claramente inconstitucional", lembrando que também aqui o TC aceite
o corte nos rendimentos por ser excepcional. Tornar essa amputação no salário
permanente viola essa "excepcionalidade", além de pôr em causa o
princípio da garantia da confiança entre trabalhador e Estado.
Quanto ao despedimento após dois anos no regime de mobilidade,
as opiniões dividem-se. Vasconcelos vê nesta medida a violação do princípio da
segurança jurídica e da confiança: "Quando assinaram um contrato de
trabalho com o Estado não se previa essa possibilidade." Gouveia alerta,
contudo, para o facto de a Constituição ser omissa em relação à mobilidade.
Poderia ser aplicado, admitiu, desde que o empregador apresentasse "sempre
razões objectivas e num despedimento colectivo".
No final, o constitucionalista próximo do PSD, o partido
liderante da coligação, não conseguiu evitar um desabafo sobre o dia de ontem.
Reconhecendo um certo sentimento de dejá-vu em relação a algumas das medidas,
perguntava para que precisaria o Governo do relatório do FMI: "É triste
ver um país andar a toque de caixa das organizações internacionais."
Durante o dia de ontem, foi o secretário de Estado adjunto do
primeiro-ministro, Carlos Moedas, quem deu a cara pelo estudo. Moedas
classificou o relatório como "muito completo". Uma posição bem diferente
de outros membros do Governo, que receberam o documento de forma glaciar (ver
texto da página ao lado). "Muito bem feito", "muito
trabalhado", devendo vir a ser "lido por todos", insistia o
secretário de Estado, que momentos antes afirmara ter recebido o documento há
apenas algumas horas. E que por ter "medidas muito específicas", não
podia assumir quais as matérias de que o Governo discordava: "São
discussões sérias de mais para recebermos o relatório num dia e
pronunciarmo-nos sobre ele."
"Pode ter erros factuais, esperemos que não",
ressalvava ainda Carlos Moedas, referindo-se às declarações do ministro da
Segurança Social, Pedro Mota Soares, que considerou que o relatório do FMI tem
"pressupostos que estão errados".
O documento apresentado pelo FMI sugere a realização de reformas
e poupanças em cinco áreas fundamentais: segurança social, função pública,
educação, saúde e segurança, e defende que é hora de apostar em reformas
"inteligentes". No entanto, as semelhanças com planos de austeridade
anteriores são notórias. Por exemplo, pensionistas e funcionários públicos são
outra vez os mais visados pelas medidas.
PORTUGAL JÁ TEM A MAIS ALTA TAXA DE EMPREGO
A PARTIR DOS 65 ANOS
O sistema português de pensões
"não fomenta a participação no mercado de trabalho", pelo contrário,
fornece incentivos que são "adversos" a essa participação, defende o
FMI. Mas os dados do gabinete de estatística da União Europeia (UE), o
Eurostat, mostram que Portugal já tem a mais elevada taxa de emprego na população
com 65 ou mais anos: 14,4%, em 2011, contra uma média de 4,8% nos 27
Estados-membros da UE. Mesmo na população entre os 50 e os 64 anos a
percentagem de pessoas empregadas é ligeiramente superior à média europeia:
quase metade (47,9%) está, em Portugal, no mercado de trabalho (47,4% na UE). O
FMI sugere um aumento da idade da reforma dos 65 para os 66 anos. Uma análise
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) aos
sistemas de pensões, divulgada em 2011, mostrava que Portugal já era um dos países
onde as pessoas se retiravam mais tarde: os homens aos 67 anos, em média, e as
mulheres aos 63,6. A média na OCDE era, respectivamente de 63,6 e 62,4 anos.
Quanto à "idade oficial" da reforma, na OCDE é de 64,4, para eles, e
de 63,1, para elas. Abaixo dos 65 anos regulamentares em Portugal. Andreia
Sanches
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