José
Vítor Malheiros
1. A única coisa espantosa a propósito da
declaração de Cavaco Silva sobre a sétima avaliação da troika e a estratégica
intervenção no caso por parte de Nossa Senhora de Fátima é a extrema
benevolência com que o caso foi recebido pelo establishment político, pelos
comentadores e pelas instituições em geral. E esta é a única coisa espantosa,
porque Cavaco já nos tem presenteado com pérolas de igual ou superior quilate
e, por isso, o dislate em si não pode ser considerado surpreendente. Mas a
reacção, essa, é sui generis. Na televisão, os entrevistadores fazem um
discreto sorrizinho malicioso quando referem o caso e os entrevistados
entreolham-se fugazmente com um sorriso benevolente enquanto vão dizendo que o
facto está a ser empolado sem necessidade. Claro que adivinhamos todos que, mal
os microfones se desligam, entrevistados e entrevistadores se dobram em
gargalhadas a comentar a última (penúltima, antepenúltima?) tolice do ocupante
do Palácio de Belém, mas em público todos referem o caso com discrição e um
evidente pudor, sem revirar o punhal na ferida, com aquela gentileza que tornou
famosos os nossos brandos costumes e com uma elegância que seria ocioso tentar
explicar ao visado.
O que é espantoso é que parece ter-se instalado o
consenso sobre Cavaco Silva: todos o tratam como tratariam o idiota da aldeia,
com paciência e benevolência, às vezes com um sorriso de comiseração, sem
esconder aqui e ali um lampejo de irritação, mas garantindo-lhe sempre a
inimputabilidade que os costumes, a moral e a lei concedem aos pobres de
espírito. Cavaco deixou, pura e simplesmente, de ser (e de poder ser) levado a
sério. Uma referência a Cavaco no meio de uma conversa é, forçosamente, um
convite à mofa e aos gracejos. O que é grave, já que lhe cabem deveres de
garantia do funcionamento das instituições democráticas que ele é, assim,
absolutamente incapaz de cumprir, seja através de intervenções públicas ou de
lanches privados. O que é grave, porque vivemos um momento de emergência
nacional, de catástrofe social, de submissão a interesses estrangeiros e de
traição aos portugueses que exigiriam a intervenção de um chefe de Estado.
Não é a simples referência a Nossa Senhora de
Fátima que é surpreendente – Paulo Portas acreditava que a maré negra do
petroleiro “Prestige” se tinha desviado da costa portuguesa devido a “uma
intervenção de Nossa Senhora” -, nem o facto de que Cavaco Silva não tenha
percebido que, como chefe de Estado de uma república laica, se deve abster de
propaganda das suas crenças pessoais, nem sequer o facto de o Presidente
manifestar tão débil confiança na sua autoridade que quis desculpar a tirada
atribuindo a justificação milagreira à lavra da sua consorte. Mas há uma
questão política que subjaz às declarações do Presidente da República:
aparentemente (o que surpreende, atendendo a outras declarações suas), Cavaco
Silva considera que a troika se tornou uma bênção de tal prodigalidade que
apenas pode ser explicada por causas sobrenaturais, qual maná celestial. A
imagem poderia ser compreendida – e muito mais pessoas gritariam “milagre” – se
a troika decidisse perdoar-nos a dívida. Mas não foi isso que aconteceu. Esta
aura divina de que o PR reveste a decisão dos nossos principais credores pode
dever-se ao facto de Cavaco Silva estar a ser envenenado com uma substância
hipnótica espalhada nas torradas mas, com hipnose ou sem ela, o PR parece
considerar um sacrilégio que os portugueses pensem ou façam qualquer outra
coisa que não nasça desta troika de três cabeças. Seria mais compreensível e
certamente mais patriótico que Cavaco sonhasse que a troika não é mais do que a
forma humana, mal disfarçada, do cão de três cabeças que guarda os infernos.
Mas imaginar que eles são os serafins favoritos da Virgem Maria é pornográfico.
2. Cavaco não está só na inimputabilidade nem no
desvio alucinatório em relação ao real. O Governo, com Gaspar ao leme, continua
a sua caminhada apocalíptica, indiferente ao consenso crescente sobre os
malefícios da austeridade e a incompetência da governação, indiferente à
pobreza crescente e ao sofrimento dos portugueses, indiferente ao que diz a
ciência política e a economia, ansioso por servir os seus verdadeiros amos, os
barões da finança. O Governo sabe que os portugueses não o apoiam, sabe que
perderá as próximas eleições sejam elas quando forem, sabe que não tem
legitimidade democrática (aquela que advém de um programa sufragado), sabe que
já toda a gente percebeu que a sua única preocupação é enriquecer os poderosos,
sabe que está a destruir o Estado e com ele as vidas de milhões de portugueses
mas prossegue porque pode prosseguir, devido à cadeira vazia que está em Belém.
Que não seja possível substituir um presidente que
deixou de cumprir os seus deveres nem um Governo que quebrou todas as promessas
e que vende o país a quem paga mais são duas das desgraças do actual regime
político, que vai ser preciso reparar mal seja possível.
Público, 21 Maio 2013
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