Discrição, reserva, sigilo, formalismo, espírito institucional são a marca deste tribunal e dos seus 13 juizes e muitos assessores, que assumem, em total resguardo, que passam por um momento de história fundamental
TEXTOS DE LUÍSA MEIRELES
Certo é que foi na terça-feira de Carnaval, dia em que não houve tolerância de ponto. Mas no Tribunal Constitucional — garantiram-nos — era um dia como os outros, portanto, era suposto estarem todos ao trabalho. Não sabemos. Num canto do átrio, onde o bem-disposto Sr. Amaro, o "oficial-porteiro", toma conta das entradas e saídas na casa, está afixado um quadro de funcionários: 94. A verdade, porém, é que durante toda a manhã e boa parte da tarde vimos pouco mais de uma dezena.
As três secções do tribunal estavam a funcionar, bem como a quarta, que só trata dos assuntos dos partidos e é a mais concorrida de todas. Não há dia que não apareça por lá um jornalista, a perguntar pelas declarações de rendimento de figuras públicas. Desta vez fomos nós, mas não queríamos saber da declaração de Franquelim Alves, o novo secretário de Estado.
Ficámos a saber, porém, que há dois novos partidos que estão quase a receber a "carta de alforria", depois dos três funcionários da secção verificarem, uma a uma, a assinatura de cada proponente (no mínimo 7500!): o Voz do Povo, do deputado madeirense José Manuel Coelho, e o Movimento Alternativa Socialista (MAS), do ex-bloquista Gil Garcia, que até já inaugurou uma sede e tudo. E soubemos ainda que o tribunal acabou de passar a certidão de óbito a outro partido: o Movimento Esperança Portugal, o MEP de Rui Marques, que em tempos teve a esperança de poder vir a ser fiel da balança partidária.
Na secção central, entretanto, o escrivão registou nesse dia a entrada de cinco novos processos, desta feita de fiscalização da constitucionalidade, que tinham vindo diretamente do Supremo Tribunal. Saber se uma norma está ou não conforme com a Constituição, se cabe no seu sentido ou se tem nela a sua base é a competência central deste tribunal e que o distingue dos demais. Por isso lhe chamam o primeiro e tem uma orgânica à parte. Mas a verdade é que. juizes, procuradores ou assessores, não encontrámos nenhum. Ou então fomos nós que não soubemos.
O SANCTA SANCTORUM
Terça e quarta costumam ser dia de plenário, ou de reunião de secção do tribunal, mas não desta vez. Os corredores estavam vazios e silenciosos e, no 1.º andar, as portas altas dos gabinetes (entre eles o do presidente e da vice-presidente) estavam fechadas. Na sala de sessões, onde se alinham 13 cadeiras (tantas quantos os juizes conselheiros) à volta de uma grande mesa, os vagos vestígios da presença humana — dois ou três rabiscos em folhas de papel — foram rapidamente tirados da vista da jornalista.
É aqui o sancta sanctorum das decisões do tribunal, onde os juizes se reúnem em plenário para discutir os acórdãos o tempo que for preciso. Já os arrastaram por seis anos, em tempos que já lá vão, quando discutiram o Código do IRS do então primeiro-ministro Cavaco Silva; ou sete meses, para se porem de acordo quanto às questões jurídico-ético-morais que implicava o ensino de Religião e Moral nas escolas..
Mas, apesar de tudo, foram rápidos, no ano passado, quando tiveram de decidir sobre o Orçamento do Estado: seis meses, menos três que no anterior, também sobre o OE. Este ano, quanto tempo levará? Com o carimbo de prioridade aposto no processo, a aposta é para o mês que vem.
Ver-se-á, que a pressão é muita. Ela percebe-se, e não apenas pelas notícias dos jornais, que vão dando conta das intenções do Governo e dos cortes que anuncia, em função do que for decidido pelo tribunal. Até as agências de notação se interessam: a Standard&- Poors manteve a nota de "lixo" (BB) a Portugal, tão só por causa dos "riscos orçamentais de curto prazo relacionados com a decisão do Tribunal Constitucional".
É também na sala das sessões que se faz o sorteio dos processos pelos juizes, relata-nos a infatigável chefe de gabinete do novo presidente, Joaquim Sousa Ribeiro, recém-chegada ao tribunal. O sorteio é feito por computador desde 2003, mas a diligência continua a revestir-se de formalismo — como tudo neste tribunal guardião da Constituição — com a presença do presidente ou da vice-presidente. À cautela, num cantinho da sala, no chão, alinham-se as lembranças do passado: o móvel de gavetas com as bolinhas de madeira para o sorteio, a urna onde eram depositadas, a caixa de cartão onde os juizes continuam a votar os presidentes. E uma inexplicável almofadinha, uma espécie de genuflexório sem encosto e fora do contexto.
AQUI É SÓ PAPÉIS
Em todo o edifício, tudo é resguardo e silêncio. Esse é o costume, de resto, e quem visita o tribunal nota-o. É a sua marca. Até soa estranho, quando antigos assessores e juizes dizem que "há grandes discussões", que "as pessoas se envolvem nos temas que tratam", que "a troca de opiniões é essencial" e que "as conversas se prolongam nos corredores". Terá sido antes que era assim e agora já não é?
No 2° andar do belo Palácio Ratton estão os gabinetes dos juizes e secretárias, mas não fomos lá. Na parte nova, o anexo, como lhe chamam, construído em 2000, estão os assessores e outros serviços de apoio e, desde há um ano, também a Entidade das Contas e dos Financiamentos Políticos, que depende do tribunal e que para ali se mudou de um prédio vizinho, por razões de poupança em tempos de crise. Desde a sua fundação, em 1983, o tribunal ocupa o palácio que foi mandado construir no início do século XIX pelo industrial francês de chapelaria do mesmo nome, ali na Rua do Século, antiga Rua Formosa.
Na véspera de Carnaval, é facto, até houve animação nos corredores. Um grupo de uns 30 estudantes brasileiros visitou o tribunal e a vice-presidente, Maria Lúcia Amaral, professora da Universidade Nova e no tribunal desde 2007, explicou-lhes: "Aqui, só andamos com papéis. Nós ouvimos sempre por escrito, ninguém aparece perante nós oralmente." É quase um falar antigo.
Audiência pública de julgamento só houve uma, quando em 1994 foi extinto o Movimento de Ação Nacionalista (MAN), por veicular ideologia fascista. Ocorreu na chamada Sala de Atos, dominada por uma esplêndida tapeçaria reproduzindo um cartão de Eduardo Batarda. Fora disso e tirando as ocasiões da foto protocolar, os juizes, de beca e colar, só ali aparecem por "cortesia institucional", para ler os acórdãos em que é requerente o Presidente da República.
Discrição, reserva, sigilo, formalismo, espírito institucional. A cultura é de tal modo forte que deve pegar-se à pele. Mesmo anos após terem saído do tribunal, muitos dos assessores e juizes preferem falar sem serem citados. "Estamos ali no intuito exclusivo de servir a Constituição", justificava-se um ex-assessor, "o nosso comportamento muda". Um outro chamou ao tribunal "um túmulo" e um ex-juiz, que era mais dado às lides políticas, achou o trabalho "uma maçadoria".
O DEDO NA FERIDA As opiniões diferem, claro. O atual deputado do PSD Paulo Mota Pinto (juiz nove anos, 1998-2007), o mais jovem de sempre aos 31 anos, não só não está "nada arrependido" como acha que lhe acrescentou muitíssimo à formação académica.
Maria dos Prazeres Beleza, que partilhou a mesma "composição" do tribunal que Mota Pinto (a quarta), também não esconde o entusiasmo pelo verdadeiro "curso" que ali tirou. "Quem gosta da profissão de jurista, gosta de estar no TC", afirmou ao Expresso. Mas ressalva: "Ser juiz é muito difícil, muito absorvente, tem de se estudar muito. Pela primeira vez na vida pensei que não ia ser capaz de fazer o que me propunha."
O antigo juiz Guilherme da Fonseca (1993-2002), ele próprio juiz de profissão, também guarda boas recordações, sobretudo porque "o trabalho era verdadeiramente coletivo" e ele gostava assim, por contraponto à solidão que preside a decisão judicial comum.
A antiga professora, consultora e hoje juíza no STJ, pôs o dedo na ferida. Para que lado se virasse no gabinete só via processos, disse. As estatísticas confirmam que os juizes, atendendo ao número de processos que entram por ano (930, em 2012), vivem afogados em papéis. Cada juiz despacha em média 100 processos por ano, dos quais resultam uma esmagadora maioria de acórdãos de "fiscalização concreta da constitucionalidade" (96% do total, no ano passado), referentes a processos com casos concretos.
Os outros, aqueles que são delicados ou controversos politicamente, acabam por ser uma percentagem ínfima: os acórdãos de fiscalização abstrata, preventiva ou sucessiva consoante é feita antes ou depois da norma em causa entrar em vigor, somaram 27 em 2012 (preventivos 16, dos quais 12 referentes a referendos locais e apenas quatro a diplomas). Os sucessivos foram 11. Em percentagem global dá 2,2%. Entre 1983 e 2012, este tipo de acórdãos representou apenas 4% do total.
E depois há outros, os acórdãos eleitorais, sobre os financiamentos dos partidos, um sem-fim de competências que até já levaram o último presidente, Rui Moura Ramos, a sugerir que algumas passassem para outros órgãos (algum contencioso eleitoral) e a protestar contra outras (caso do controlo das contas dos grupos parlamentares).
O PAÍS EM SUSPENSO
Seja como for, não é por causa destes que o Tribunal Constitucional tem agora os olhos do país postos nele. Mas o resguardo é tal que até parece uma "caixa negra", para usar a expressão de um ex-assessor, que percebe bem os mecanismos de defesa e "enconchamento" dos juízes, em vésperas de emitir uma decisão que sabem ser crucial. Nada transpira das suas atividades. Adivinha-se um stresse total.
Maria Lúcia Amaral definiu o tempo ao dizer que "o tribunal passa por um momento de história fundamental, e também do país e da Europa". A razão é a próxima decisão sobre o Orçamento do Estado, na sequência de quatro pedidos de fiscalização (pelo Presidente, o provedor de Justiça, um grupo de deputados do PS e outro de deputados do Bloco e do PC), que hão de ter de ser esmiuçadas pelos juizes e em primeira mão pelo presidente, obrigado a sintetizar num memorando as principais questões e eventuais soluções. Sousa Ribeiro tem a coadjuvá-lo três assessores, entre eles Mariana Canotilho, que já esteve no tribunal há uns anos.
"Somos guardiões daquilo sobre o que estamos de acordo, os princípios constitucionais", disse Maria Lúcia Amaral. Só que a interpretação das normas traduz-se em opiniões e a que se faz sobre a Constituição — a mais política de todas as normas — não passa sem um apertado escrutínio da sua fundamentação jurídica. "Nem sempre lendo a Constituição se sabe interpretá-la", dizia Canotilho, "às vezes é preciso bater-lhe para ela ser inteligente". Juizes e assessores salientam: "Não passa pela cabeça de ninguém defender argumentos políticos, tudo é jurídico."
O problema é que uma e outra coisa confundem-se ou, se se quiser, interpenetram-se. O TC não faz escolhas políticas, apenas diz que uma determinada escolha não pode ter lugar. Mas as suas decisões têm efeitos políticos e um enorme alcance social, económico e financeiro. "O dinheiro é o nervo da República e por isso é matéria constitucional", afirmou a propósito o professor de Direito.
O TRIBUNAL DA POLÍTICA
A verdade, porém, é que tem sido a prática política dos últimos tempos a pôr no palco o TC. Facilmente, a dinâmica salta da Assembleia ou de Belém para o tribunal, numa aparente judicialização da política que tem por retorno a politização da Justiça, como diz Ana Catarina Mendes no livro "O Papel Político do Tribunal Constitucional". O TC não é nem pode ser um ator nem agente político, mas protagonista — a pedido — é-o seguramente.
Os estudos feitos demonstram que sempre que a conflitualidade política (ou a instabilidade entre órgãos de soberania) aumentou em Portugal, em particular durante as legislaturas de maiorias políticas, cresceu também a intervenção do TC. Quem não se lembra das "forças de bloqueio" de que se queixava Cavaco Silva? Entre elas estava o tribunal, destinatário dos pedidos de fiscalização de Mário Soares, o Presidente que mais ativo se revelou neste capítulo.
Nos idos de 90, Durão Barroso chegou a dizer que "este TC é pior do que o Conselho da Revolução", citado na primeira página deste jornal. E se Jorge Sampaio moderou a atividade, também o foi porque durante grande parte dos seus mandatos ter convivido com uma maioria política próxima.
"A litigância constitucional tem calendários políticos, e muitas vezes as decisões do TC judicializam (e legitimam) conflitos políticos que de outro modo poderiam ser inultrapassáveis", diz ainda Ana Catarina que qualifica o tribunal como "o último reduto da ação política, sendo ainda assim um tribunal".
O problema será esse? Decerto que este não é um tribunal como os outros. Dez dos seus juizes são eleitos pela Assembleia República, que assim os "crisma" politicamente, o que não quer dizer que lhes retire a independência PS e PSD têm a parte de leão (a eleição é por dois terços) e ao sabor dos tempos têm chamado à colação também os juizes da sensibilidade PCP e CDS, num "entendimento tácito" que nos últimos anos o PS quebrou. Desde 2009 não há nenhum juiz na área PC. Por outro lado, no ano passado, a atribulada eleição dos novos membros quebrou um tabu: cada partido passou a assumir o "seu" juiz.
Face às críticas de que "a qualidade dos juizes nem sempre é a melhor", os partidos queixam-se que "a base de recrutamento" também se estreitou. As condições remuneratórias (salário com regalias, carro e motorista suplementos por sessão) são as de um membro do Supremo e agora sujeitas a cortes. Para um juiz mais afeiçoado à discrição, pode não compensar o trabalho e a visibilidade acrescida, mas para um académico ou advogado, definitivamente não. "Por um único parecer, um jurista de topo pode cobrar o que ganha em meses um juiz", dizia Maria dos Prazeres.
PRESSÕES E INDEPENDÊNCIA
O poder político também não facilita As pressões existem. Há conversas e telefonemas, juizes e juizes. A propósito do "chumbo" à lei do enriquecimento ilícito, a vice-presidente Teresa Leal Coelho manifestava a esperança de ver o texto aprovado numa futura alteração da composição do tribunal.
Os juizes sabem quem os indicou, mas nenhum quer ser visto como "boy" ou "girl" do partido. A eleição é um dado adquirido, um pecado ou virtude original que lhe garante a legitimidade para poder "dizer não à maioria que legisla", como dizia Moura Ramos. É o TC um contrapoder, um antipoder? Em todo o caso, "um poder negativo", dizem os académicos.
Quem lá trabalhou, diz que, na hora de decidir, cada juiz está por si. Mas ninguém se despe da sua maneira de ser, das suas convicções, ou "pré-compreensões", a sua mundividência, em suma. Os juizes não são "quimicamente puros" e porventura serão sensíveis às preferências ou interesses do partido que os indicou.
Os estudos estatísticos demonstram que os juizes votam segundo divisões partidárias, consoante são de direita ou de esquerda.. Os de direita são mais propensos a votar em favor da constitucionalidade, os de esquerda contra, os primeiros votam mais em função das linhas ideológicas, os segundos dos interesses do partido. As contas são elucidativas mas não explicam tudo, nomeadamente as discussões "que desbastam argumentos" ou a necessidade de encontrar consensos, como dizia um antigo juiz. "A lógica da decisão coletiva faz parte da fisiologia das coisas, não é a patologia das coisas." Mais de 80% das decisões foram votadas por unanimidade ou maioria de dois terços.
Por outro lado, o tribunal não está mais partidarizado do que no passado, pelo contrário, a sua composição é bem menos política, o que se reflete nas decisões. Na atual, só dois — curiosamente duas juízas indicadas pelo PS — exerceram cargos mais ou menos ligados à política: Catarina Sarmento e Castro, professora e que foi adjunta do ex-ministro da Administração Interna Jorge Coelho, e Maria João Antunes, que foi membro do Conselho de Fiscalização do Serviço de Informações.
Mas a eventual fratura também passa por outras linhas. Entre os juizes há seis obrigatoriamente de carreira e, aí, os próprios reconhecem que há diferenças. "Os juristas são mais afeitos à teoria, os juizes à aplicação concreta do direito", salientava Mota Pinto. E, claro, por uma outra fratura que poderá ser a mais marcante de todas nos tempos que correm; o predomínio de funcionários públicos ou até da elevada média de idades. Mas isso já é pura opinião. Ou preconceção. E exige que sejam validados dotes reconhecidos de premonição.
Expresso, 23-02-2013
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