quinta-feira, 5 de julho de 2012

“O Tribunal Constitucional é para litigantes muito ricos”

Entrevista a João Correia, líder da comissão de reforma do processo civil: Em Setembro, a reforma do processo civil deverá estar pronta para o Parlamento. Deverá acelerar processos e, espera-se, reduzir substancialmente as pendências.
A reforma do processo civil, preparada ao milímetro pela comissão liderada por João Correia, está pronta e nas mãos da ministra da Justiça. Há ainda, porém, decisões que Paula Teixeira da Cruz terá de tomar, relacionadas com sugestões dadas pela troika. Esta, preocupada com as pendências, preconizava uma "privatização da acção executiva" e sugeriu que todos os portugueses passassem a ter uma residência legal obrigatória
- A reforma do Processo civil está pronta a ir ao Parlamento?
- O trabalho da comissão está pronto e entregue. Não sei se é a proposta definitiva, porque há uma interacção entre a troika e a ministra e, em função dos pareceres emitidos por váriasentidades,comoaassociação sindical dos juizes, Ministério Publico, Ordem dos Advogados, há ali uma tendência para se dizer que se podia ou devia ter ido mais longe.
- É a troika que diz isso?
- Também a troika, mas não só a troika. E não é propriamente a troika que manda Há uma sintonia entre aquilo que é preconizado pela troika e pela ministra O que está a ser ponderado agora é se se deve e pode ou não ir mais longe.
- A troika não manda, mas dá opiniões.
- Sim, e mais na acção executiva
- E ai, até onde é que a troika queria ir?
- Queria uma quase absoluta privatização da acção executiva, o modelo holandês, que não é possível em Portugal, porque temos um princípio de reserva de juiz – há certos actos que só ele pode praticar, como a entrada no domicílio ou a própria ordem para proceder à penhora Depois, porque há que ter em conta a natureza dos títulos executivos. E os que são fiáveis, como as injunções, cheques, letras, livranças, escrituras públicas em certas circunstâncias, podem dar origem a um processo sumário, que vai ao tribunal, mas não ao juiz e depois vai directamente para o agente de execução. Ai é que a troika diz – verbalmente, porque ainda não escreveu – que não é necessário registar o processo em tribunal, que é um acto paralisante. Nos títulos executivos menos fiáveis, como documentos particulares, o processo segue a forma ordinária, em que o juiz tem de fazer uma verificação.
- E que outras sugestões apresentou a troika?
- Foi também avançada sempre em termos verbais, a necessidade de criar uma residência legal obrigatória para facilitar a localização dos devedores, como no modelo alemão, em que, se mudarem, as pessoas são obrigadas a avisar os serviços de identificação. E nós tentámos explicar que somos um país de emigração, mas que somos mais portugueses lá fora do que cá dentro e que é difícil ter um país tão organizado como os alemães ou os suecos. Nós temos uma residência, que damos quando fazemos o cartão do cidadão, mas que é apenas a residência declarada Eu posso mudar de residência e não dizer nada a ninguém. Não sou obrigado a comunicar, até posso ter três residências.
- E essa medida avança ou não avança?
- Agora está nas mãos da ministra Mas posso dizer-lhe que a troika tem uma visão positiva das reformas em curso na justiça e a ministra tem sido louvada Nós vamos dizendo que pode ou não ser e eles vão aceitando. Nesta área são mais dialogantes do que impositivos. Estão mais preocupados com a redução das pendências processuais e esta reforma vai neste sentido.
- Acredita que funcionará?
- Na acção executiva, sim. Na acção declarativa, vem modificar radicalmente a relação entre juizes e advogados, advogados e clientes. Há um princípio de gestão processual que diz que o juiz deve adoptar e impor todas as condutas para que o processo seja adaptado à natureza do conflito, isto é, tem uma tramitação própria, que pode ser mais lenta ou mais rápida, em função da natureza do conflito.
- Isso implica também uma mudança de mentalidade do próprio juiz...
- Do juiz, do advogado, das partes... O juiz deve limitar-se, na audiência preliminar, a dizer quais são as questões nucleares, as grandes questões do processo, deixando de identificar os factos provados e por provar. A cronologia dos actos é pré-determinada na audiência preliminar e há um aceleramento processual, até porque passa a ser impossível adiar diligências.
- O que é que isso significa?
- Na audiência preliminar as agendas dos advogados e do juiz são concertadas e a partir daí entende-se que, salvo justo impedimento, não há mais fundamentos para adiamentos. Há uma vocação para respeitar o exercício da cidadania e não para fundamentar o autoritarismo do estado. Bem pelo contrário. O cidadão foi colocado no epicentro desta reforma
- Diria que é desta que os advogados vão deixar de poder de lançar mão de praticas dilatórias?
- Os advogados não têm práticas dilatórias. Os advogados cumprem os prazos. Se não fizerem, perdem. As regras é que têm de ser simplificadas. Mais transparentes, directas e flexíveis e claramente vão ser.
- A máquina está preparada? Não tem de ser mais oleada?
- Claramente que sim. O novo mapa judiciário vai nesse sentido e interage com esta reforma
- Diz que na acção executiva a pendência recua substancialmente. Como é que isso se consegue?
- Os poderes dos juizes sobre os agentes de execução são fortemente alargados. Estes não podem prorrogar o processo a seu bel talento, como agora acontece em muitos casos. Preconiza-se um estatuto deontológico mais forte para o agente de execução e, eventualmente, a contingentação de processos por agente de execução. Estes também ganham novos poderes, com penhoras de saldos bancários, apreensões de bens.
- Está satisfeito com esta reforma?
- Não estou. Penso que devíamos ir um pouco mais longe. Criaria por exemplo, uma única forma de processo. Está previsto o ordinário e o sumário, mas um seria suficiente. Se se atribui ao juiz o poder de gestão processual, e a faculdade de, ouvidas as partes, adaptar a tramitação à natureza e complexidade da lide, não vejo necessidade para que haja duas formas de processo. O juiz e as partes adaptarão o processo à natureza da causa O problema é que há muita legislação que remete para a forma sumária e que seria preciso adaptar e a comissão não teve todo o tempo necessário. Por outro lado, há muitos processos especiais que não têm grande justificação como as convocações de assembleias-gerais, acções de divórcio, de divisão de coisa comum... é um manancial de acções que se pode evitar, a partir do momento em que o juiz e as partes podem negociar qual a melhor tramitação. Mais uma vez, faltou o tempo necessário.
- Concorda com a ministra quando ela afirma que esta é a maior reforma de sempre do código de processo civil?
- É rigorosamente verdade, seja em termos científicos, sociais, relacionais ou políticos – de política judiciária, que na justiça a política partidária não tem qualquer interesse.
- Ou não deveria ter...Há uma politização da justiça?
- Às vezes há. Já o disse quando era secretário de Estado e fui bastante fustigado por alguns responsáveis da Justiça
- Em que sentido é que diz isso?
- Não me pergunte... Eu tenho aqui alguns processos que podiam mostrar que há politização da justiça E às vezes há obediências que não deviam existir.
- Obediências de que género?
- Simpatias, às vezes patológicas, que levam a que algumas decisões sejam proferidas. Há decisões que são tomadas e que são incompreensíveis à luz do bom senso.
-Isso não se muda com uma reforma.
- Muda. Posso garantir. Porque os juizes passam a ter novos poderes, mas exige-se outro tipo de fundamentação. Não poderão escolher os factos que entendem como provados e não provados e têm de elencar só as questões que vão decidir. A margem de manobra para os apetites é fortemente encurtada. Mas também lhe digo que isto é uma minoria. Não generalizemos, porque não é justo. Há casos pontuais em que se nota, ou politização, ou obediências nas opções tomadas, mas de poucos juizes.
- O tema da politização da justiça esteve recentemente em causa, com a nomeação dos juizes para o Tribunal Constitucional (TC). Como viu esse processo?
- O TC é um tribunal político, mas há uma excessiva partidarização na escolha dos juizes que devia ser evitada Tanto mais que no TC as partes, para litigar, têm de ter muito dinheiro. Eu evito até ao limite ir para o TC porque é muito caro, é um tribunal para ricos. Para muito ricos. As custas rondam sempre os 2500 euros ou mais. E nem toda a gente tem dinheiro para isso. Mesmo quando o TC decide não decidir, por três linhas pagam-se 2500 euros. É uma injustiça muito forte e alguma coisa tem de mudar.As custas são urna taxa,em função de um serviço, se este não é prestado, não deve ser pago ou deve ser pago muito menos. Não compreendo a taxação dos actos do TC. Aliás, não compreendo muitas das decisões do TC, que é com extrema facilidade que decide não decidir. Embora haja belíssimos acórdãos.
- Porque decidem não decidir?
- Ou porque dizem que a matéria já foi decidida ou que não é controvertida ou que há um elemento formal que não foi observado... aquilo passa por um crivo que não imagina e como tal só os ricos e só com sorte se passa pelo buraco daquela agulha Alguma coisa tem de ser feita em homenagem ao TC, cuja autonomia deve ser mantida
- É a imagem da justiça que sai comprometida?
- É a imagem da tutela dos direitos constitucionais. Olha-se para o TC e a pergunta que se faz é: serão aqueles juizes os guardiães da nossa Constituição? São. Agora, eu, cidadão, tenho confiança naquele TC? E a resposta é que, com esta partidarização, esvai-se a minha confiança
- Desde que foi criado o TC, os juizes sempre foram indicados desta forma...
- Podem ser indicados de forma hábil, em função da competência, percurso doutrinário, autoridade, densidade científica No início, olhava-se para o TC e via-se que tinha uma actuação de grande segurança e tutela da constituição. Hoje parece que isso se modificou. Antes não era tão partidarizado. Os critérios que existem são bons, os seus aplicadores é que têm de ter bom senso. O que aconteceu pôs em causa o nome do Dr. Conde Rodrigues, o que não podia ter acontecido. A minha sensibilidade até é que ele tem currículo para ser juiz do TC, embora não o conheça tão de perto como isso. O Dr. Paulo da Mata é um brilhante jurista, advogado, professor de direito. Não é este o mecanismo para escolher os juízes para o TC.
PERFIL
O ADVOGADO QUE QUIS MUDAR PARA SEMPRE 0 PROCESSO CIVIL
Do currículo consta, sobretudo, uma longa experiência como advogado.
Aquilo que, aliás, "sempre quis fazer", sublinha João Correia. Pelo caminho, algumas incursões pela política, sempre próximas do PS, como a que o levou a aceitar o convite para secretário de Estado no segundo Governo de José Sócrates. Acabou por sair por sua iniciativa, batendo com a porta em conflito com o ministro, Alberto Martins. Deixou a meio caminho o trabalho de reforma do processo civil, mas Paula Teixeira da Cruz foi buscá-lo e acabou por ser ele a liderar novamente o grupo de trabalho a quem foi confiada a missão de mexer numa das legislações mais complicadas do edifício legal português.
O trabalho está feito e entregue, mas não lhe enche completamente as medidas. Gostaria de ter ido mais longe, mas o tempo foi demasiado curto para isso. Ainda assim, não tem dúvidas de que é "a maior reforma de sempre do processo civil" e que, depois dela, fazer um julgamento no cível será muito mais rápido e eficiente.
Filomena Lança
Jornal de Negócios de 04-07-2012

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