Pela primeira vez desde a criação do
IRS, metade do rendimento vai ser cobrado. Algo que o Tribunal Constitucional
pode considerar “confiscatório”
João Ramos de
Almeida
Há, sobretudo,
dois problemas que o Tribunal Constitucional (TC) deveria abordar preventivamente
sobre as mexidas no IRS. Segundo os fiscalistas ouvidos pelo PÚBLICO, um é o
“nível confiscatório” do imposto quando, pela primeira vez desde a sua criação
em 1989, o IRS ultrapassará a taxa simbólica de metade do rendimento
colectável. O outro é o do IRS tender a ser um imposto proporcional a partir de
rendimentos relativamente baixos (80 mil euros anuais).
As alterações
surgem na proposta de Orçamento do Estado (OE) de 2013 em resposta às
preocupações do TC (acórdão 353/2012 de 5 de Julho). Grosso modo, o TC exigiu
que, por violação da regra de igualdade na repartição dos encargos públicos, os
esforços não incidissem sobretudo sobre os funcionários públicos e
pensionistas. O Governo foi forçado a anular o corte de um subsídio, mas
agravou a carga fiscal. Primeiro, pela redução do número de oito para cinco
escalões. Depois, pelos rendimentos escolhidos para esses escalões e pela
subida de todas as taxas de IRS. Os rendimentos mais baixos são penalizados,
mas o último escalão é fortemente reduzido (de 153 mil para 80 mil euros).
Quarto, pela criação de uma sobretaxa de 4% para os rendimentos acima de 485
euros e ainda uma taxa de solidariedade de 2,5% para o último escalão. Os
rendimentos acima de 80 mil euros serão tributados a uma taxa-base de 48%, a
que se soma a sobretaxa e a taxa de solidariedade, atingindo os 54,5%. Como
sublinha a fiscalista Serena Cabrita Neto (ver pág. 47), uma acima da “taxa
máxima praticada no Reino Unido, em França e na Alemanha e em linha com a
tributação que ocorre em países como a Suécia e a Dinamarca”. Quinto, ainda
pelo novo rombo nas deduções fiscais. E sexto, pelo agravamento complementar de
outros impostos.
Na altura da
sua apresentação em conferência de imprensa, a 3 de Outubro passado, o ministro
das Finanças esforçou-se por mostrar que “o enorme aumento de impostos” não
agravava a progressividade do IRS (quem mais recebe, paga mais IRS). Mostrou
gráficos e sublinhou que “as alterações de IRS foram calibradas por forma a
conseguir um aumento significativo da progressividade do imposto”.
A polémica que
se seguiu colocou o ministro Vítor Gaspar em rota de colisão com fiscalistas,
economistas e até firmas de consultoria. Ao contrário do ministro, todos
reiteravam que a progressividade diminuía. Quem mais tinha continuava a pagar
mais IRS, mas essa diferença iria esbaterse. A discussão chegou ao Parlamento
com os ministro das Finanças e dos Assuntos Parlamentares, Miguel Relvas, a
apresentar aos deputados da maioria PSD/CDS simulações equívocas e até com
erros, mostrando apenas o lado positivo do OE de 2013. A eventual redução da
progressividade do IRS suscitou a questão de poder ser um dos pontos a
salientar pelo TC, numa avaliação preventiva ao OE de 2013. A Constituição
estabelece que “o imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das
desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os
rendimentos do agregado familiar”. Mas para os fiscalistas ouvidos pelo PÚBLICO
o problema é outro.
O que será
inconstitucional?
Para o
professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Casalta Nabais, a
questão não se coloca se o IRS fica mais ou menos progressivo. “A Constituição
em norma alguma estabelece qualquer ritmo da progressividade, para o IRS, nem,
em meu entender, o poderia fazer.” Na sua opinião, “o decisivo para o teste da
constitucionalidade desse agravamento reside no que se tira e no que se deixa
aos contribuintes, neste caso aos trabalhadores, pensionistas e pequenas
empresas”. Ou seja, que “não seja um imposto verdadeiramente confiscatório”.
No mesmo
sentido vai António Carlos Santos, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
do Governo Guterres. Além de o Governo continuar a cortar dois subsídios ao
funcionalismo público (um directo e outro por via fiscal), o fiscalista acha
que o Estado exorbitou das suas funções ao levar a cabo um “confisco” de
pensões e levanta a questão analisada noutros países – a da “tributação
confiscatória”.
“A questão”,
afirma, é, “com esta punção tributária”, quanto “queda de rendimento
disponível” ao contribuinte. “Mesmo que os impostos não se baseiem no princípio
do benefício, terá de haver algum equilíbrio entre a receita e o que, em termos
gerais, o Estado disponibiliza aos cidadãos, incluindo coesão social e
territorial. O aumento é manifestamente desproporcionado e não tem em conta, em
muitos casos, a capacidade contributiva.”
O mesmo
sublinha Serena Cabrita Neto: tributar mais de metade do rendimento “levanta
importantes questões sobre a admissibilidade destas medidas à luz dos limites
constitucionais à tributação, nomeadamente se olharmos para os princípios da
justiça redistributiva e da proporcionalidade”.
Para outro
ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, do último Governo Guterres,
Rogério Fernandes Ferreira, o problema é “o IRS estar a tornar-se num imposto
proporcional”, ao chegar mais rapidamente ao escalão mais alto de tributação,
ao mesmo tempo que o IRC se está a tornar num imposto progressivo. Vasco
Valdez, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais dos governos Cavaco Silva e
Durão Barroso, alinha com esta ideia: “Caminhamos para uma flat rate [uma única
taxa], como nos países do Leste.” O IRS é “altamente progressiva até aos 80 mil
euros”, mas a partir daí é proporcional. “Mais um anito estamos numa flat
rate.” Mas as mexidas podem ainda ser olhadas como fonte de “trapalhadas”.
Rogério Fernandes Ferreira lembra que há uma dupla progressividade – dos
escalões de IRS, mas igualmente a das deduções consoante os escalões;
introduz-se uma sobretaxa proporcional num imposto progressivo. “São dois
impostos sobre o mesmo rendimento”, com retenções na fonte diferenciadas e
liquidações à parte. Será que a resposta do Governo ao TC, com pesados efeitos
recessivos, não redundará num novo acórdão e tudo regressa à estaca zero? com
Pedro Félix
Ribeiro
Depoimentos
dos fiscalistas ouvidos pelo PÚBLICO
Há sérias
dúvidas se o agravamento do IRS respeita a Constituição
Na minha
modesta opinião, as perguntas feitas [sobre se o OE reduz ou não a
progressividade do IRS] falham em larga medida o alvo (quanto à
inconstitucionalidade do forte agravamento do IRS constante da Proposta de
LOE/2013), pois a Constituição em norma alguma estabelece qualquer ritmo da progressividade
para o IRS, nem, em meu entender, o poderia fazer. Para mim, o juízo sobre esse
agravamento tem outros vectores.
I. De um lado,
é decisivo saber se um tal agravamento conduz ou não aos resultados
pretendidos, isto é, ao aumento das receitas. Ora, eu tenho as maiores dúvidas
(para não dizer certeza) de que esse agravamento produzirá menos receitas do
que as previstas na referida Proposta, pois os efeitos da lei de Laffer, que já
se verificou na LOE/2012, serão ainda mais evidentes. Ou seja, essa cura
agravará o estado do doente. Por certo que não sossegarão os credores, pois a
última coisa que estes podem querer é que morra o devedor.
II. Passando
ao plano jurídicoconstitucional, o decisivo para o teste da constitucionalidade
desse agravamento reside no que se tira e no que se deixa aos contribuintes,
neste caso aos trabalhadores, pensionistas e pequenas empresas. Pois, o que a
Constituição por certo exige é que, no respeitante aos rendimentos mais baixos,
se respeite o mínimo de existência dos indivíduos e das famílias, e, em relação
aos rendimentos médios e mais altos, que o IRS não seja um imposto
verdadeiramente confiscatório. O que interessa do ponto de vista
jurídico-constitucional não é a taxa marginal máxima (que ainda assim não é a
mais alta da Europa) mas a efectiva taxa média, que será muito elevada para
parte significativa dos contribuintes, ficando estes assim com rendimento
disponível insuficiente para ter uma vida que mereça ser vivida. Quanto ao
limite inferior (mínimo de existência) e superior (carácter confiscatório) da
taxa do IRS, trata-se de ideias que já constam do meu livro (que é a minha tese
de doutoramento, de 1998, O Dever Fundamental de Pagar Impostos).
Ora, mesmo que
no actual estado de excepção económicofinanceira em que vivemos se permita uma
certa contracção dos princípios e normas constitucionais, temos sérias dúvidas
se o agravamento do IRS proposto para o OE/2013 respeite os mencionados
limites.
III. Todavia,
para mim, mais importante do que quaisquer questões de inconstitucionalidade é
a praticabilidade da solução referida em I.
Casalta
Nabais, professor da Universidade de Coimbra É o IRS, mais a TSU, o IMI, o IVA
e quanto sobra?
Diria que há
duas boas razões para o Tribunal Constitucional se pronunciar sobre o OE:
1.ª O OE
mantém os cortes nos vencimentos da função pública, um corte directo e um
indirecto por via fiscal. Não contraria este facto o que foi decidido? Não há
mesmo incumprimento de uma decisão por parte do executivo?
2.ª O TC
deixou bem claro que a questão dos cortes nas pensões (sobre os quais não se
pronunciou) PODE CONVOCAR OUTROS DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS QUE NA ALTURA NÃO
FORAM ANALISADOS. Na realidade, o executivo na questão dos vencimentos age como
entidade empregadora, no caso das pensões age como gestor de um património que
é alheio e que as pessoas lhe confiaram. Pode pedir um empréstimo forçado. Não
pode é efectuar um confisco.
Noutros países
(por exemplo, na Alemanha), a jurisprudência é muito atenta à questão da
tributação confiscatória. A questão até agora não tem sido analisada entre nós.
Assim, alguém que vê subir a sua tributação para 54,5% por que passa a cair no
último escalão (mais de 80 mil euros) e é trabalhador por conta de outrem vê
acrescer à tributação nominal de IRS (cada vez mais próxima da efectiva, pois
as deduções à colecta diminuem drasticamente) a tributação em TSU (11%). A isto
acresce, se tiver casa própria, o IMI (sabe-se lá quanto), o IVA nas compras e
prestações de serviços, pois não goza do direito à dedução e provavelmente o
imposto de circulação, o imposto sobre produtos petrolíferos e inúmeras taxas
(esgotos, etc) e contribuições (rodoviária, audiovisual, etc.). A questão é:
com esta punção tributária, quanto lhe queda de rendimento disponível?
Sobre questão
de saber se as alterações introduzidas aumentam ou diminuem a progressividade
do IRS, diria que diminuem nos escalões mais baixos e no mais alto. A partir de
80 mil, a taxa é proporcional. A progressividade do imposto é ainda lesada pelo
facto de se introduzir uma sobretaxa proporcional (4%) num imposto que deve ser
progressivo. A aplicação desta sobretaxa, sendo idêntica para todos, atinge
mais fortemente os contribuintes de menor rendimento. Mantém-se uma enorme
desigualdade de tratamento de contribuintes com igual rendimento, ferindo o
princípio da equidade horizontal. As deduções à colecta acabam para muita gente
pondo em causa um princípio de personalização do imposto e de apoio à família
Mesmo que os impostos não se baseiem no princípio do benefício, terá de haver
algum equilíbrio entre a receita e o que, em termos gerais, o Estado
disponibiliza aos cidadãos, incluindo coesão social e territorial. O aumento é
manifestamente desproporcionado e não tem em conta, em muitos casos, a
capacidade contributiva. Sem prejuízo de um estudo mais profundo, eis, quanto a
mim, vários tópicos que justificariam a fiscalização a priori da
constitucionalidade de muitas das normas da parte tributária e parafiscal do
OE.
António Carlos
Santos, fiscalista
Público,
23 Outubro 2012
Sem comentários:
Enviar um comentário