quarta-feira, 2 de maio de 2012

Sem recurso


Está aberta a frente de batalha que a banca receava: um juiz de Portalegre julgou que a entrega da casa liquidaria toda a dívida ao banco. A sentença, transitada em julgado, é definitiva e ameaça criar jurisprudência em Portugal, onde 70% de todo o endividamento dos particulares, ou seja, cerca de cento e vinte mil milhões de euros, se refere somente a crédito à habitação (fonte: Banco de Portugal). Ora, a decisão do juiz de Portalegre, numa altura em que as entregas de casas aos bancos quase duplicaram face ao ano passado, é extraordinária. Mais ainda tendo em conta que a taxa de incumprimento no crédito à habitação continua a ser reduzida, quando comparada com a taxa de incumprimento noutras modalidades de crédito. Dito isto, a sentença colocou Portugal a par daquilo que se pratica noutros países – nos Estados Unidos, na Alemanha e, agora, até na nossa vizinha Espanha.
O problema é que durante anos a banca nacional concedeu crédito à habitação de forma quase indiscriminada. As avaliações aos imóveis eram generosas. E o volume de crédito concedido mais generoso ainda. Dava para comprar casa, mobília e automóvel – com aparente conforto. Em consequência, também em Portugal se gerou uma bolha estrutural no mercado imobiliário, observável na relação entre o valor dos imóveis e os rendimentos anuais dos agregados familiares. O múltiplo em Portugal, utilizando como referência de cálculo os valores publicados pelo INE, é hoje de sete a oito vezes, sendo que em teoria se recomenda aos compradores um múltiplo não superior a quatro.
Sem surpresa, assistimos hoje ao endividamento, não menos estrutural, das famílias portuguesas que, a exemplo do Estado, também têm agora de reestruturar as suas dívidas para poderem começar de novo. Quanto aos bancos, é bom não esquecer, têm para já doze mil milhões de euros da ‘troika’ destinados ao reforço dos seus capitais.
Mas regressando a Portalegre, no enquadramento actual não existe qualquer garantia quanto à independência da avaliação de um imóvel e seu valor de mercado quando, no limite – como sucedeu em Portalegre -, é o próprio banco credor que, tendo encomendado a avaliação e organizado a venda, compra também o imóvel. Segundo, não existindo qualquer garantia naquele sentido, é também de questionar se haverá algum interesse do banco em chegar a um acordo de interesse mútuo, em especial, se ao mesmo tempo se admitir como aceitável o direito de recurso sobre todo o património e rendimentos do devedor. Assim, para além da jurisprudência agora inaugurada, é necessário actuar sobre os mecanismos de avaliação e venda imobiliária. E uma ideia seria a criação de um leilão electrónico aplicado a todas as casas devolvidas, centralizado junto do Banco de Portugal ao jeito do que o Fisco faz com a venda de bens penhorados, onde todos os investidores (nacionais e estrangeiros, particulares e institucionais) fossem bem-vindos. Eliminar-se-iam conflitos de interesses, abusos de direito, e adoptar-se-ia uma solução de mercado: justa, 1007o transparente e, acima de tudo, líquida. Com uma vantagem adicional: sendo os preços do imobiliário em Portugal excessivos para o bolso da maioria dos portugueses são, apesar de tudo, nominalmente apetecíveis para o bolso dos estrangeiros.
Ricardo Arroja – Economista
Diário Económico 2012-05-02

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