Luís Fábrica - Dizer a verdade aos cidadãos é um
verdadeiro imperativo jurídico, fundado no princípio fundamental da Boa-Fé.
Uma trabalhadora da Administração Pública pediu ao
superior hierárquico uma licença sem vencimento, que foi concedida – e não
podia sê-lo. A ilegalidade da licença veio a ser descoberta por algum
funcionário mais zeloso, que advertiu o superior hierárquico. Ainda mais
zelosamente, este revogou o seu acto e determinou a abertura de um procedimento
disciplinar à senhora por... abandono do lugar. Resultado: cessação do vínculo.
O caso foi para tribunal, onde a Administração
invocou que estava apenas a corrigir um lapso, repondo a legalidade estrita,
como lhe competia. Mas os juízes responderam que acima de todas as regras
legais estava a Justiça e a Boa-Fé: se a Administração, bem ou mal, criou no
espírito da trabalhadora a convicção de que podia ausentar-se do serviço, era
injusto e de má-fé que viesse agora extrair consequências lesivas de uma
situação cuja responsabilidade lhe cabia. O dirigente do serviço é que devia
conhecer a lei que aplica, e não a humilde trabalhadora, que acreditou na
legalidade da situação.
Esta sentença corajosa, que afastou as leis para
aplicar a Justiça e a Boa-Fé, merece ser recordada num momento em que a hegemonia
do discurso económico – corrijo: a hegemonia do discurso financeiro – ameaça
reduzir o Direito a um instrumento coercivo de governação livremente
manipulável segundo as conveniências do momento. Corre a ideia de que vivemos
em "estado de excepção" não declarado e que a Constituição,
encontrando-se suspensa na prática, deixou de representar o padrão de validade
das restantes normas. O poder político disporia, assim, de prerrogativas
ilimitadas sobre o ordenamento jurídico, criando, revogando ou modificando
quaisquer regras por invocação das necessidades financeiras do Estado (no
passado, já se invocaram os "objectivos de construção da sociedade
socialista", ou os "superiores interesses da Nação" – são
simples variantes da mesma ideia perigosíssima).
A verdade, porém, é que a Constituição está
plenamente em vigor, que não há interesse público fora ou para além do Direito
e que é precisamente nos momentos de crise que os princípios jurídicos
fundamentais – o travejamento do Estado! – exigem um respeito mais escrupuloso.
Ora, um desses princípios jurídicos fundamentais é
o da Boa-Fé, do qual resulta, entre outros corolários, que os cidadãos – tal
como a trabalhadora da Administração - devem poder acreditar nos poderes
públicos. Os governantes têm conhecimentos e dados inacessíveis ao cidadão
comum. Por isso, e tal como o superior hierárquico que concedeu a licença sem
vencimento, são responsáveis por aquilo que dizem e pelo que não dizem e os
cidadãos podem e devem exigir-lhes um comportamento coerente com as afirmações
feitas.
Dizer a verdade, especialmente em tempos de
angústia e incerteza, não é um mero preceito ético. Constitui o primeiro dos
imperativos jurídicos dos governantes.
Luís
Fábrica, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica DinheiroVivo.pt de 01-05-2012
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