Paulo Rangel
Palavra e Poder
Uma coisa é ser inelegível, outra, bem diversa, é ser pura e simplesmente impedido de saber se se pode ou não ser candidato
1. A saga judicial em torno da limitação de mandatos prossegue. Como infelizmente chegou aos tribunais, não parece oportuno nem curial resolvê-la agora politicamente.
Já aqui defendi abundantemente o carácter “transterritorial” da proibição de acumulação de mandatos e, bem assim, a conformidade à constituição desta solução interpretativa. Disse ainda, em várias ocasiões, que nunca me pareceu adequada a via (seguida por um movimento de cidadãos) de tentar contornar ou antecipar o processo próprio (contencioso eleitoral), através de providências cautelares e acções cíveis que interditem a priori a simples possibilidade de apresentar uma candidatura. Uma coisa é ser inelegível, outra, bem diversa, é ser pura e simplesmente impedido de saber se se pode ou não ser candidato no processo e fórum próprios. Compreendo que haja problemas de direito de acesso das associações de cidadãos ou até de cidadãos individuais (invocando legitimidade quisque de populo) ao processo judicial eleitoral. Mas essas dificuldades talvez devam resolver-se no quadro do processo eleitoral, ainda que em recurso para o Tribunal Constitucional (TC).
Isto dito, importa também verberar as afirmações dos candidatos visados e até de responsáveis políticos que continuam a jurar certezas sobre o sentido da decisão final do TC. Uma coisa é a expressão firme da convicção pessoal e de confiança na regularidade da respectiva pretensão, outra é a produção destas “juras mediáticas” que, verdade seja dita, deixam o Tribunal numa posição desconfortável e aparecem aos olhos da opinião pública como arremedos de pressão.
2. Na imensa poluição de notícias, comentários e contra-informação, tende a esquecer-se que, no processo eleitoral, o TC não actua apenas como jurisdição constitucional, mas também como jurisdição “comum” em matéria de contencioso eleitoral. O que significa que, como instância de recurso, ele não se limita a verificar se a interpretação do juiz cível é conforme ou não à Constituição.
Ao invés, ele está habilitado a rever essa interpretação, mesmo que ela não seja inconstitucional. Por isso se afigura tão importante não dar por previamente interpretada a norma que afinal se quer submeter a interpretação.
É infelizmente o que se faz ou quer fazer – dar por antecipadamente interpretada a regra que o juiz tem de interpretar -, quando se diz que o entendimento de que a proibição de candidatura é “transterritorial” resulta de um recurso à analogia tout court ou, no mínimo, como diz a moderna metodologia, a uma extensão analógica…
3. Pese embora o TC actue como jurisdição de contencioso eleitoral, afigura-se natural que a sua “vocação constitucional” contribua para que a tarefa de interpretação da lei se opere no sentido “mais conforme” à ou “mais próximo” da Constituição. Daí que seja importante esconjurar alguns fantasmas que reaparecem a cada passo e em cada esquina.
4. Não há dúvida de que a lei que estabelece uma qualquer limitação de mandatos sejaterritorial ou “transterritorial” – é uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias, se bem que perfeitamente autorizada pelos arts. 50.º e 118.º da Constituição. Tem-se agitado muito o fantasma de que uma restrição de carácter “transterritorial”, que se estenda à função e não apenas à circunscrição geográfica, seria desproporcionada e desrazoável.
Mas a verdade é que uma restrição com esse alcance é manifestamente parcial e confinada. Na verdade, o impedido de renovar o mandato pode exercer todo o tipo de cargos públicos, com a singela excepção daquele que já exerceu durante doze longos anos. Pode ser membro do Governo ou do Parlamento, pode ocupar todos os cargos possíveis e imaginários de nomeação política ou administrativa.
Está tão-só impedido de exercer um e só um tipo de cargo, aquele e mais nenhum.
Acresce que essa proibição é puramente temporária, tem a breve duração de um mandato. Acaso alguém pode considerar que uma restrição tão evidentemente parcial e outrossim temporária é desproporcionada e não razoável?
Também se acena, por vezes, com a ideia de que a ratio da restrição é unicamente a relação de “conivência” desenvolvida com a população da autarquia em jogo.
E que, por conseguinte, as razões do impedimento não subsistiriam sempre que a candidatura ao cargo se fizesse noutro município ou noutra freguesia. Esquece-se todavia que o mercado das obras públicas, das concessões de abastecimento de água e saneamento, da contratação de refeições, comunicações e materiais é hoje totalmente nacional e desenvolvido por escassa meia dúzia de operadores em cada sector. Eis o que convoca os valores da isenção e da independência e perfila esses valores muito para lá das simples relações com uma comunidade local concreta. De resto, esquece-se que a limitação é imposta em nome do princípio republicano da renovação enquanto tal, como bem mostra a autonomização do art. 118.º, n.º 2, em face do 50.º, n.º 3.
Ao que se soma finalmente que o art. 50.º não estabelece apenas a garantia da liberdade no acesso aos cargos públicos e electivos; determina também o respeito pelo princípio igualdade. E está bom de ver que os cidadãos que ocuparam longamente um certo cargo, pela sua visibilidade e pelo domínio de certos meios de facto, estão em condições mais favoráveis do que todos os outros (lembre-se a velha lei de bronze das oligarquias). Essa posição de predomínio traduz-se, aliás, numa diminuição da liberdade de candidatura dos restantes cidadãos. E, por isso, uma restrição parcial e temporária, porque razoável e graduada, mesmo afectando limitadamente a esfera do visado, realiza a igualdade e induz um aumento global dos níveis de liberdade propiciados a todos os outros cidadãos. Eurodeputado (PSD). Escreve à terça-feira
D. Manuel Clemente. O cuidado humano, social e cultural e a afabilidade simples fizeram um enorme bispo do Porto. Há anos, a Igreja optou pelo carisma da pluralidade de vozes. Será capaz de o manter, escolhendo um substituto à altura?
PS. Até a remodelação que sempre exigiu termina num pedido de eleições antecipadas. Quando não há programa, fica só a ansiedade do poder.
Público | Terça, 02 Julho 2013
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