Pelas
prisões passam muitos casos de arrependimentos. A lei diz que o remorso pode
ser uma atenuante da pena, mas o desafio é perceber se o sentimento é genuíno
ou calculado
D.R.
Naquele momento, com um assassino dentro do corpo,
Tiago nem reparou que o filho corria atrás dele, implorando-lhe que parasse.
Mais tarde, saído da sala de interrogatórios da GNR, o pai de família está
irreconhecível, os ombros à medida das orelhas, as costas vergadas por
toneladas de vergonha. Mãe, pai e filho abraçam-se e choram. Os três apertam–se
com a angústia de quem não sabe quando virá o próximo abraço. O inspector da
Polícia Judiciária comove-se e sai da sala, dando espaço ao retrato da família
infeliz. Tiago quer pedir desculpa, mas não consegue. Os três sabem que só muito
tempo depois voltarão a ser três na mesma casa e que, por mais que o
arrependimento roa na noite seguinte, nada apagará o que aconteceu na tarde
anterior. Há dias destinados a perseguir para sempre um homem arrependido.
João e Pedro, irmãos de sangue, tinham convencido o
amigo Tiago a meter-se num negócio. Mas os tempos de bonança pouco duraram. A
certa altura o dinheiro já não chegava, Tiago não conseguia cumprir a sua parte
no acordo. Começou a faltar comida na mesa e dinheiro para os livros da escola do
filho. Os irmãos começaram a ameaçar, a espalhar boatos, a ir bater-lhe à porta
e a dizer aos vizinhos que ele não passava de um caloteiro. Tiago fugia de
todos, tinha vergonha pela mulher, descia pelo elevador de cabeça baixa, com o
filho a avisá-lo que a professora tinha pedido mais um livro, e ele de bolsos
vazios.
Um dia, os irmãos voltaram a bater-lhe à porta.
Repetiram as ameaças e, mais uma vez, denunciaram as suas dívidas pela
vizinhança. Tiago não suportou mais a humilhação. Um tiro certeiro e matou um
dos irmãos. “Não me voltarás a humilhar mais”, pensou. “Não voltarás a tirar a
dignidade da minha família”, pensou outra vez, e correu de pistola na mão,
perseguindo o outro. Naquele instante, com um assassino dentro do corpo, Tiago
não se lembrou que tinha um filho nem o ouviu correr atrás de si,
implorando-lhe que não voltasse a matar.
“Há momentos em que sentimos uma tentação muito
grande de ser Deus e perdoar. Este foi um deles”, recorda António Teixeira,
inspector da PJ que passou 33 anos na brigada de homicídios de Lisboa e tantas
vezes foi acusado pelos colegas de sentir uma espécie de “empatia” pelos
assassinos. O inspector que se reformou em 2010 lembra as vezes em que, com a
prova toda produzida e o suspeito à frente, não conseguia resistir à tentação
de tentar saber o que levou aquele homem, ou aquela mulher, a matar. Puxava da
cigarrilha, oferecia outra ao criminoso e perguntava “porquê?” E ali ficava,
noites inteiras a ouvir o que tinha passado pela cabeça dos criminosos.
Outras vezes os inspectores nem precisam de
perguntar. “Quando a polícia chega ao homicida, ele sente que não tem mais nada
a perder. A primeira coisa que quer é justificar, mostrar que não é má pessoa,
como se procurasse ali o primeiro perdão. Muitas vezes nem têm uma explicação
racional para o crime”, explica o inspector. O certo é que os criminosos também
sentem culpa. Pelas salas de interrogatório, celas de prisão ou tribunais
passam muitos casos de arrependimento. Quase sempre, imediatamente a seguir a
cometerem o crime. Quando nada há a fazer. A legislação portuguesa prevê que o
arrependimento possa ser uma atenuante, mas o trabalho de inspectores, polícias
e magistrados passa sobretudo por avaliar o peso dessa culpa. Não se trata de
uma equação matemática. O desafio é perceber se um arrependimento é genuíno ou
uma estratégia calculada para diminuir a pena.
Mulher isco Entre os muitos casos de remorsos,
polícias e magistrados guardaram alguns na memória. Matilde é uma dessas
histórias. No alto dos seus 17 anos nunca passou desapercebida. Cabelos longos,
pernas altas, medidas que enchem as revistas masculinas. Luís, o namorado
experiente, confiou-lhe uma missão: todos os dias iria usar o seu charme e a
sua beleza para seduzir homens que ele depois iria roubar. Ela, cega de amor,
confia. Vai fazer de isco, terão uma vida boa, e nada de mal lhes irá
acontecer. Ele convenceu-a. Até um dia, em que o que era para ser mais um
assalto acabou em morte. Na sala de interrogatórios, ao lado do namorado frio e
indiferente, Matilde desmancha-se em lágrimas. Doze anos depois, cumprida a
pena, Teófilo Santiago, director da PJ de Aveiro, recebe um postal de Matilde.
Doze anos depois, a mulher isco cuja beleza não tinha passado despercebida aos
olhos dos inspectores, carregava ainda o peso da culpa. Na carta enviada ao
inspector justificava o crime e apresentava um pedido de desculpas.
Manipulado Aos 19 anos, Manuel está convencido de
que Bia é a mulher da sua vida. E no dia em que ela lhe pede para a acompanhar
no homicídio do pai do filho dela, para assim se verem livres dele de uma vez,
Manuel não pensa sequer que poderá estar a ser manipulado por uma mulher.
Afinal, o serem felizes para sempre pode estar apenas à distância de uma morte.
No momento em que os inspectores deslindam o caso e chegam ao casal percebem
quase de imediato que Manuel foi arrastado para o crime. O rapaz está agora
arrependido. O sentimento é sincero, acreditam os inspectores, mas é tarde. Tem
de pagar por ser cúmplice num crime. Tem de pagar porque acreditou na ilusão de
um romance que se esfumou sem um final feliz.
Auto defesa Marta era chefe da PSP nos Olivais e
hábil a camuflar as nódoas negras. Um dia, farta de anos de violência
doméstica, agarrou na Glock (a arma de serviço) e defendeu-se de uma agressão.
Quando o gatilho disparou e o homem caiu ao chão, Marta caiu a seguir. Chamou a
polícia e esperou ao lado do marido morto, deitado numa poça de sangue. Marta
não queria matar, apenas defender-se: a filha viria a confirmar que a mãe foi
ao longo de anos vítima de maus-tratos.
Vingança Alice, 71 anos, bem tentou simular que o
marido tinha sido morto por uns homens encapuzados. Os investigadores duvidaram
desde o início da sua versão e depressa perceberam que a história era outra:
aquela morte tinha sido a sua vingança ou, então, a sua última hipótese de
sobreviver. Ao fim de 38 anos de violência doméstica, Alice perdeu o combate
para uma barra de ferro e uma, duas, cinco, sete vezes, bateu na cabeça do
marido, desfazendo-lhe o crânio. No momento da confissão, o inspector
perguntou-lhe porque lhe tinha batido tanto e não se tinha ficado por uma
pancada. “Ó filho, dei-lhe até me fartar”, respondeu. Alice também estava
arrependida, mas ao seu jeito. Ao jeito de quem sabia que o homicídio é errado
e socialmente condenável, mas de quem também sabia que ele não a podia ter
maltratado uma vida inteira.
Homicídios Investigadores, juízes, advogados quase
todos concordam: é nos crimes de homicídio – os mais graves do nosso
ordenamento jurídico – que mais se vê o arrependimento. Quase nunca nos crimes
calculados: “Um indivíduo que premedita um crime, 99% das vezes não se
arrepende. Pode dizê-lo em julgamento, mas apenas para tentar aproveitar essa
benesse”, conta o inspector–chefe Manuel Lico, recapitulando 22 anos de serviço
na Brigada de Homicídios e mais de 30 ao serviço da PJ.
O arrependimento surge quase sempre quando o crime
é cometido no momento. Por pessoas como tantas outras que se sentam ao nosso
lado no autocarro, que acordam cedo para ir trabalhar, que nunca diriam ser
capazes de matar. Homens e mulheres movidos por ciúmes, por vergonha ou
desespero, por discussões acesas no trânsito, por anos de conflitos que moem e
remoem e um dia são simplificados nos jornais a homicídios por causa de uma
herança, de um rebanho ou de um muro. “As prisões estão cheias de pessoas que esgotaram
toda a sua veia criminosa num só acto. E que lá dentro são pessoas exemplares,
extremamente bem comportadas”, resume o inspector António Teixeira.
Ladrões e burlões A violência doméstica e as
ofensas corporais graves também são crimes dados a remorsos. Já no mundo dos
ladrões e dos burlões o arrependimento é coisa rara. “Quem começa a roubar é
ladrão quase toda a vida. O que há mais é uma espécie de reciclagem: saem dos
roubos para o tráfico de droga e quando estão velhos lembram–se de voltar aos roubos”,
explica João Branco, o inspector-chefe que andou 33 anos a investigar furtos,
roubos e assaltos à mão armada.
Pelas suas mãos apenas passaram aqueles que podiam
ser chamados de preventivamente arrependidos. “Miúdos de 15 ou 16 anos que
estavam ali na corda bamba, a serem chamados para a vida do crime e que
consegui, com uma ou outra conversa, evitar que fossem para o lado dos
bandidos.” De resto, a experiência ensinou-lhe a não ter fé na redenção de
ladrões experientes. E a revoltar-se por nem sempre os juízes terem o mesmo
olho atento para detectar arrependimentos fabricados.
Há três ou quatro anos, João Branco nem conseguia
acreditar no que os homens da sua brigada lhe diziam pelo telefone. Tinha sido
uma semana feliz para aquela equipa: tinham finalmente conseguido apanhar o
grupo que num acto de carjacking espancou violentamente um homem em Santarém,
largou-o num local ermo, e a seguir incendiou o carro. No dia da apresentação à
juíza para determinar as medidas de coacção, um alegou que era doente, outro
que tinha meia dúzia de filhos, e por aí adiante. Os testemunhos, carregados de
drama e da palavra arrependimento, convenceram a juíza, que saiu da sala a
chorar e deixou todos a aguardar julgamento em liberdade.
O juiz Mouraz Lopes, presidente da Associação
Sindical de Juízes Portugueses, também reconhece que nos crimes contra o
património, em que o objectivo é a apropriação de bens ou dinheiro, o
arrependimento aparece com menos frequência: “Ou porque vivem daquilo, ou
porque precisam mesmo daquele dinheiro ou porque têm uma vontade clara de
cometer aquele crime.” E o mesmo, diz, se aplica aos burlões profissionais
“Acham que nunca estão a enganar ninguém. Pensam que são mais espertos do que
os outros.”
Ao longo da sua carreira nos tribunais, Mouraz Lopes
encontrou “muitos arguidos verdadeiramente arrependidos” – e confia que os
juízes estejam preparados para detectar arrependimentos sinceros. Mas os que
grava na memória são sobretudo os de não arrependimento, daqueles que mataram
mas assumem que não voltariam atrás, daqueles que nunca sentiram remorsos.
Sentença popular Num desses casos, um jovem
assassinou um homem mais velho que teria abusado dele sexualmente e de outros
menores. Essa prova nunca foi produzida em julgamento, mas nas aldeias à volta não
se condenava o homicida e até se lhe agradecia por se terem visto livres de um
alegado pedófilo e violador. O assassino nem pensou sequer em fingir o
arrependimento em tribunal. Não sentia culpa, se voltasse atrás faria o mesmo e
estava convencido de que tinha feito um bem à sociedade.
Duas medidas Noutro caso, Mouraz Lopes foi
confrontado com dois assassinos, na mesma sala de audiências: o bom e o mau,
para simplificar. Ambos mataram um taxista de “forma violentíssima”, e sem
razão aparente, para além da chacota que fizeram. Levaram-no para um sítio ermo
e começaram por dar-lhe tiros nas pernas, obrigando-o a correr, para depois
dispararem noutras partes do corpo. Se um percebeu que cometeu um crime
inaceitável e desprezível, o outro “mostrou uma total desconsideração pela vida
humana”. O juiz já não se recorda exactamente da pena que deu a um e a outro.
Sabe que ambas foram pesadas, mas não tem dúvida que a do arrependido terá sido
menor que a daquele que matou sem pensar e que em julgamento ainda tentou
agredir o arrependido.
O arrependimento pesou na hora de aplicar a
sentença. Como pesa sempre. O juiz garante que o remorso tem de ser
necessariamente levado em conta em tribunal, respondendo ao artigo 71 do Código
Penal, que diz que a determinação da medida da pena deve ter em conta a culpa
do arguido e que todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra ele
deverão ser ponderadas. Nesse leque de circunstâncias entra a intensidade do
dolo, os sentimentos manifestados “no cometimento do crime” e os motivos que o
determinaram. Cabe depois, a cada juiz, avaliar se aquele arrependimento
confessado “é sério e inequívoco”.
Os investigadores no entanto divergem quando se
trata de avaliar o sentimento de culpa. O inspector-chefe Lico lembra que “as
mulheres são as mais convincentes em tribunal, mais manipuladoras”. Se o crime
tiver sido “violentíssimo”, cometido com grande barbárie, “já é mais difícil os
juízes irem nessa conversa”. António Teixeira sabe que “teoricamente o
arrependimento é uma atenuante, mas na prática, logo se vê” (se o julgamento
for com tribunal de júri, a missão estará facilitada) e recorda a todo o tempo
o caso de um jovem que deu vários tiros noutro e acabou apenas condenado por
ofensas à integridade física por ter mantido sempre um ar muito cordato em
julgamento. Mais tarde viria a ser condenado por homicídio por cortar a cabeça
de um homem da noite e escondê-la num bidão.
O inspector-chefe João Branco também não consegue
ser categórico perante o efeito do arrependimento em todos os casos. Diz-se por
brincadeira entre os colegas que quem confessa está tramado: “Do ponto de vista
teórico quem confessa tem atenuante mas se a prova não for produzida em
julgamento quem não confessa é que é absolvido”. E Teófilo Santiago tem sempre
um exemplo no bolso, como aquele que aconteceu nos anos 80 e envolvia o
transporte de droga entre a Venezuela e os correios portugueses: aqui, brinca,
“o arrependido arrependeu-se de se ter arrependido”. O único suspeito que
colaborou com a polícia, numa data em que nada estava legislado sobre
cooperação judicial, acabou por ser aquele que levou a maior pena.
ionline.pt,
14 Janeiro 2013
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