segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Reportagem. Quanto vale o arrependimento numa pena?


Pelas prisões passam muitos casos de arrependimentos. A lei diz que o remorso pode ser uma atenuante da pena, mas o desafio é perceber se o sentimento é genuíno ou calculado
D.R.
Naquele momento, com um assassino dentro do corpo, Tiago nem reparou que o filho corria atrás dele, implorando-lhe que parasse. Mais tarde, saído da sala de interrogatórios da GNR, o pai de família está irreconhecível, os ombros à medida das orelhas, as costas vergadas por toneladas de vergonha. Mãe, pai e filho abraçam-se e choram. Os três apertam–se com a angústia de quem não sabe quando virá o próximo abraço. O inspector da Polícia Judiciária comove-se e sai da sala, dando espaço ao retrato da família infeliz. Tiago quer pedir desculpa, mas não consegue. Os três sabem que só muito tempo depois voltarão a ser três na mesma casa e que, por mais que o arrependimento roa na noite seguinte, nada apagará o que aconteceu na tarde anterior. Há dias destinados a perseguir para sempre um homem arrependido.
João e Pedro, irmãos de sangue, tinham convencido o amigo Tiago a meter-se num negócio. Mas os tempos de bonança pouco duraram. A certa altura o dinheiro já não chegava, Tiago não conseguia cumprir a sua parte no acordo. Começou a faltar comida na mesa e dinheiro para os livros da escola do filho. Os irmãos começaram a ameaçar, a espalhar boatos, a ir bater-lhe à porta e a dizer aos vizinhos que ele não passava de um caloteiro. Tiago fugia de todos, tinha vergonha pela mulher, descia pelo elevador de cabeça baixa, com o filho a avisá-lo que a professora tinha pedido mais um livro, e ele de bolsos vazios.
Um dia, os irmãos voltaram a bater-lhe à porta. Repetiram as ameaças e, mais uma vez, denunciaram as suas dívidas pela vizinhança. Tiago não suportou mais a humilhação. Um tiro certeiro e matou um dos irmãos. “Não me voltarás a humilhar mais”, pensou. “Não voltarás a tirar a dignidade da minha família”, pensou outra vez, e correu de pistola na mão, perseguindo o outro. Naquele instante, com um assassino dentro do corpo, Tiago não se lembrou que tinha um filho nem o ouviu correr atrás de si, implorando-lhe que não voltasse a matar.
“Há momentos em que sentimos uma tentação muito grande de ser Deus e perdoar. Este foi um deles”, recorda António Teixeira, inspector da PJ que passou 33 anos na brigada de homicídios de Lisboa e tantas vezes foi acusado pelos colegas de sentir uma espécie de “empatia” pelos assassinos. O inspector que se reformou em 2010 lembra as vezes em que, com a prova toda produzida e o suspeito à frente, não conseguia resistir à tentação de tentar saber o que levou aquele homem, ou aquela mulher, a matar. Puxava da cigarrilha, oferecia outra ao criminoso e perguntava “porquê?” E ali ficava, noites inteiras a ouvir o que tinha passado pela cabeça dos criminosos.
Outras vezes os inspectores nem precisam de perguntar. “Quando a polícia chega ao homicida, ele sente que não tem mais nada a perder. A primeira coisa que quer é justificar, mostrar que não é má pessoa, como se procurasse ali o primeiro perdão. Muitas vezes nem têm uma explicação racional para o crime”, explica o inspector. O certo é que os criminosos também sentem culpa. Pelas salas de interrogatório, celas de prisão ou tribunais passam muitos casos de arrependimento. Quase sempre, imediatamente a seguir a cometerem o crime. Quando nada há a fazer. A legislação portuguesa prevê que o arrependimento possa ser uma atenuante, mas o trabalho de inspectores, polícias e magistrados passa sobretudo por avaliar o peso dessa culpa. Não se trata de uma equação matemática. O desafio é perceber se um arrependimento é genuíno ou uma estratégia calculada para diminuir a pena.
Mulher isco Entre os muitos casos de remorsos, polícias e magistrados guardaram alguns na memória. Matilde é uma dessas histórias. No alto dos seus 17 anos nunca passou desapercebida. Cabelos longos, pernas altas, medidas que enchem as revistas masculinas. Luís, o namorado experiente, confiou-lhe uma missão: todos os dias iria usar o seu charme e a sua beleza para seduzir homens que ele depois iria roubar. Ela, cega de amor, confia. Vai fazer de isco, terão uma vida boa, e nada de mal lhes irá acontecer. Ele convenceu-a. Até um dia, em que o que era para ser mais um assalto acabou em morte. Na sala de interrogatórios, ao lado do namorado frio e indiferente, Matilde desmancha-se em lágrimas. Doze anos depois, cumprida a pena, Teófilo Santiago, director da PJ de Aveiro, recebe um postal de Matilde. Doze anos depois, a mulher isco cuja beleza não tinha passado despercebida aos olhos dos inspectores, carregava ainda o peso da culpa. Na carta enviada ao inspector justificava o crime e apresentava um pedido de desculpas.
Manipulado Aos 19 anos, Manuel está convencido de que Bia é a mulher da sua vida. E no dia em que ela lhe pede para a acompanhar no homicídio do pai do filho dela, para assim se verem livres dele de uma vez, Manuel não pensa sequer que poderá estar a ser manipulado por uma mulher. Afinal, o serem felizes para sempre pode estar apenas à distância de uma morte. No momento em que os inspectores deslindam o caso e chegam ao casal percebem quase de imediato que Manuel foi arrastado para o crime. O rapaz está agora arrependido. O sentimento é sincero, acreditam os inspectores, mas é tarde. Tem de pagar por ser cúmplice num crime. Tem de pagar porque acreditou na ilusão de um romance que se esfumou sem um final feliz.
Auto defesa Marta era chefe da PSP nos Olivais e hábil a camuflar as nódoas negras. Um dia, farta de anos de violência doméstica, agarrou na Glock (a arma de serviço) e defendeu-se de uma agressão. Quando o gatilho disparou e o homem caiu ao chão, Marta caiu a seguir. Chamou a polícia e esperou ao lado do marido morto, deitado numa poça de sangue. Marta não queria matar, apenas defender-se: a filha viria a confirmar que a mãe foi ao longo de anos vítima de maus-tratos.
Vingança Alice, 71 anos, bem tentou simular que o marido tinha sido morto por uns homens encapuzados. Os investigadores duvidaram desde o início da sua versão e depressa perceberam que a história era outra: aquela morte tinha sido a sua vingança ou, então, a sua última hipótese de sobreviver. Ao fim de 38 anos de violência doméstica, Alice perdeu o combate para uma barra de ferro e uma, duas, cinco, sete vezes, bateu na cabeça do marido, desfazendo-lhe o crânio. No momento da confissão, o inspector perguntou-lhe porque lhe tinha batido tanto e não se tinha ficado por uma pancada. “Ó filho, dei-lhe até me fartar”, respondeu. Alice também estava arrependida, mas ao seu jeito. Ao jeito de quem sabia que o homicídio é errado e socialmente condenável, mas de quem também sabia que ele não a podia ter maltratado uma vida inteira.
Homicídios Investigadores, juízes, advogados quase todos concordam: é nos crimes de homicídio – os mais graves do nosso ordenamento jurídico – que mais se vê o arrependimento. Quase nunca nos crimes calculados: “Um indivíduo que premedita um crime, 99% das vezes não se arrepende. Pode dizê-lo em julgamento, mas apenas para tentar aproveitar essa benesse”, conta o inspector–chefe Manuel Lico, recapitulando 22 anos de serviço na Brigada de Homicídios e mais de 30 ao serviço da PJ.
O arrependimento surge quase sempre quando o crime é cometido no momento. Por pessoas como tantas outras que se sentam ao nosso lado no autocarro, que acordam cedo para ir trabalhar, que nunca diriam ser capazes de matar. Homens e mulheres movidos por ciúmes, por vergonha ou desespero, por discussões acesas no trânsito, por anos de conflitos que moem e remoem e um dia são simplificados nos jornais a homicídios por causa de uma herança, de um rebanho ou de um muro. “As prisões estão cheias de pessoas que esgotaram toda a sua veia criminosa num só acto. E que lá dentro são pessoas exemplares, extremamente bem comportadas”, resume o inspector António Teixeira.
Ladrões e burlões A violência doméstica e as ofensas corporais graves também são crimes dados a remorsos. Já no mundo dos ladrões e dos burlões o arrependimento é coisa rara. “Quem começa a roubar é ladrão quase toda a vida. O que há mais é uma espécie de reciclagem: saem dos roubos para o tráfico de droga e quando estão velhos lembram–se de voltar aos roubos”, explica João Branco, o inspector-chefe que andou 33 anos a investigar furtos, roubos e assaltos à mão armada.
Pelas suas mãos apenas passaram aqueles que podiam ser chamados de preventivamente arrependidos. “Miúdos de 15 ou 16 anos que estavam ali na corda bamba, a serem chamados para a vida do crime e que consegui, com uma ou outra conversa, evitar que fossem para o lado dos bandidos.” De resto, a experiência ensinou-lhe a não ter fé na redenção de ladrões experientes. E a revoltar-se por nem sempre os juízes terem o mesmo olho atento para detectar arrependimentos fabricados.
Há três ou quatro anos, João Branco nem conseguia acreditar no que os homens da sua brigada lhe diziam pelo telefone. Tinha sido uma semana feliz para aquela equipa: tinham finalmente conseguido apanhar o grupo que num acto de carjacking espancou violentamente um homem em Santarém, largou-o num local ermo, e a seguir incendiou o carro. No dia da apresentação à juíza para determinar as medidas de coacção, um alegou que era doente, outro que tinha meia dúzia de filhos, e por aí adiante. Os testemunhos, carregados de drama e da palavra arrependimento, convenceram a juíza, que saiu da sala a chorar e deixou todos a aguardar julgamento em liberdade.
O juiz Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, também reconhece que nos crimes contra o património, em que o objectivo é a apropriação de bens ou dinheiro, o arrependimento aparece com menos frequência: “Ou porque vivem daquilo, ou porque precisam mesmo daquele dinheiro ou porque têm uma vontade clara de cometer aquele crime.” E o mesmo, diz, se aplica aos burlões profissionais “Acham que nunca estão a enganar ninguém. Pensam que são mais espertos do que os outros.”
Ao longo da sua carreira nos tribunais, Mouraz Lopes encontrou “muitos arguidos verdadeiramente arrependidos” – e confia que os juízes estejam preparados para detectar arrependimentos sinceros. Mas os que grava na memória são sobretudo os de não arrependimento, daqueles que mataram mas assumem que não voltariam atrás, daqueles que nunca sentiram remorsos.
Sentença popular Num desses casos, um jovem assassinou um homem mais velho que teria abusado dele sexualmente e de outros menores. Essa prova nunca foi produzida em julgamento, mas nas aldeias à volta não se condenava o homicida e até se lhe agradecia por se terem visto livres de um alegado pedófilo e violador. O assassino nem pensou sequer em fingir o arrependimento em tribunal. Não sentia culpa, se voltasse atrás faria o mesmo e estava convencido de que tinha feito um bem à sociedade.
Duas medidas Noutro caso, Mouraz Lopes foi confrontado com dois assassinos, na mesma sala de audiências: o bom e o mau, para simplificar. Ambos mataram um taxista de “forma violentíssima”, e sem razão aparente, para além da chacota que fizeram. Levaram-no para um sítio ermo e começaram por dar-lhe tiros nas pernas, obrigando-o a correr, para depois dispararem noutras partes do corpo. Se um percebeu que cometeu um crime inaceitável e desprezível, o outro “mostrou uma total desconsideração pela vida humana”. O juiz já não se recorda exactamente da pena que deu a um e a outro. Sabe que ambas foram pesadas, mas não tem dúvida que a do arrependido terá sido menor que a daquele que matou sem pensar e que em julgamento ainda tentou agredir o arrependido.
O arrependimento pesou na hora de aplicar a sentença. Como pesa sempre. O juiz garante que o remorso tem de ser necessariamente levado em conta em tribunal, respondendo ao artigo 71 do Código Penal, que diz que a determinação da medida da pena deve ter em conta a culpa do arguido e que todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra ele deverão ser ponderadas. Nesse leque de circunstâncias entra a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados “no cometimento do crime” e os motivos que o determinaram. Cabe depois, a cada juiz, avaliar se aquele arrependimento confessado “é sério e inequívoco”.
Os investigadores no entanto divergem quando se trata de avaliar o sentimento de culpa. O inspector-chefe Lico lembra que “as mulheres são as mais convincentes em tribunal, mais manipuladoras”. Se o crime tiver sido “violentíssimo”, cometido com grande barbárie, “já é mais difícil os juízes irem nessa conversa”. António Teixeira sabe que “teoricamente o arrependimento é uma atenuante, mas na prática, logo se vê” (se o julgamento for com tribunal de júri, a missão estará facilitada) e recorda a todo o tempo o caso de um jovem que deu vários tiros noutro e acabou apenas condenado por ofensas à integridade física por ter mantido sempre um ar muito cordato em julgamento. Mais tarde viria a ser condenado por homicídio por cortar a cabeça de um homem da noite e escondê-la num bidão.
O inspector-chefe João Branco também não consegue ser categórico perante o efeito do arrependimento em todos os casos. Diz-se por brincadeira entre os colegas que quem confessa está tramado: “Do ponto de vista teórico quem confessa tem atenuante mas se a prova não for produzida em julgamento quem não confessa é que é absolvido”. E Teófilo Santiago tem sempre um exemplo no bolso, como aquele que aconteceu nos anos 80 e envolvia o transporte de droga entre a Venezuela e os correios portugueses: aqui, brinca, “o arrependido arrependeu-se de se ter arrependido”. O único suspeito que colaborou com a polícia, numa data em que nada estava legislado sobre cooperação judicial, acabou por ser aquele que levou a maior pena.
ionline.pt, 14 Janeiro 2013

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