António Cluny
1. O Acórdão (Ac) do Tribunal Constitucional (TC), que considerou inconstitucional o corte dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas, revelou sobre o estado da sociedade portuguesa bem mais do que, sem dúvida, pretendia.
O Ac teve como objecto imediato a decisão política – agora declarada inconstitucional e ilegal – de não pagar a um grupo específico de cidadãos uma parte das remunerações e pensões há muito estabelecidas nas leis. Para quem realmente tiver lido o que ali se escreveu, não parece difícil alcançar o sentido e os fundamentos reais do referido Ac.
Como bem realçou o presidente do TC, o essencial da sua fundamentação reside no facto de tal medida ter, afectado princípios de proporcionalidade e de igualdade na repartição de “sacrifícios” entre quem, em geral, trabalha ou trabalhou e aufere um salário ou uma pensão e quem obtém rendimentos de outras actividades lucrativas.
2. Se esta foi, na verdade, a explícita mensagem jurídico-política do Ac, este demonstrou também, por arrasto, os limites e impreparação dos media e dos jornalistas que, numa primeira mão, trataram do assunto. O que os media, de imediato, difundiram sobre o conteúdo do Ac veio a revelar-se falso.
Disseram, erradamente, que nele se sustentava que os cortes impostos exclusivamente às prestações devidas aos trabalhadores da função pública e aos pensionistas patenteavam um tratamento desigual relativamente aos outros trabalhadores no activo.
Sabemos hoje que não é assim, que o TC se referiu, isso sim, a desigualdades bem mais significativas e sensíveis, política e economicamente. Ora, ou os jornalistas não foram realmente capazes de entender o essencial do Ac, ou pode apenas ter acontecido que, sem o lerem, se tenham limitado, por negligência ou disciplina, a transmitir sobre ele uma “notícia” que alguém, alertado, previdentemente produziu para limitar danos políticos e manipular a opinião pública.
Referimo-nos à propalada tese do confronto de interesses entre, de um lado, trabalhadores do Estado e pensionistas de todos os sectores e, do outro, trabalhadores activos do sector privado.
Nenhuma das hipóteses é, contudo, lisonjeira para o nosso jornalismo.
3. O mais grave, porém, nem é isso: é a sucessiva – e agora já despudorada – manipulação da opinião pública por parte de um sector militante de analistas e comentadores.
Desvendado que foi o óbvio sentido jurídico do Ac, assistimos, ainda assim, a uma persistente e escamoteadora actividade comentarista destes zelosos ideólogos de serviço. Uns atiram-se, furibundos, à iniciativa do presidente do TC. De facto, o seu pronto e eficaz esclarecimento desmascarou, inesperadamente, aquela – agora mais evidente – estratégia político-mediática.
Outros, mais cínicos, ignoram pura e simplesmente a realidade do Ac e preferem, ainda assim, continuar a espalhar análises abstrusas sobre o que ele teria dito, não disse e, segundo eles, deveria ter dito. Pior ainda, muitos deles preconizam já, sem réstia de respeito democrático, a imprescindível relativização do valor jurídico da Constituição e procuram mesmo inculcar a ideia da falta de isenção do TC e da necessidade da sua extinção.
Não que, em rigor, lhe assaquem erros jurídicos, tão só – sacrilégio! queo TC se atreveu, desta vez, a não se deixar orientar exclusivamente pela cartilha ideológica da “solução única e indiscutível” que defendem para Portugal.
Cuidado: é com campanhas destas que a democracia e o Estado de direito começam a claudicar.
Jurista e presidente da MEDEL escreve à terça-feira
i - terça-feira, 24 Julho 2012
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