domingo, 5 de fevereiro de 2012

A fome da Justiça


Novos pobres" é o conceito que políticos, politólogos, comentadores, "cientistas" sociais, jornalistas e motoristas de táxi brilhantemente engendraram para classificar as pessoas que não passavam por apertos financeiros e que, devido à crise, começaram a passar. Julgo é que a resma de peritos não esperava ver o alcance do conceito tão alargado.
Primeiro foi o Presidente da República a queixar-se de que o salário não lhe é suficiente. Agora foi Maria José Morgado, a superprocuradora escolhida sempre que se quer publicitar um caso judicial e garantir que o caso não vai longe, a informar a nação de que há magistrados com fome. Aparentemente, não se trata de larica, aquela sensação de "já se deitava abaixo umas costeletas", nem sequer de jejum motivado por razões dietéticas ou religiosas. A dra. Morgado quis mesmo dizer vontade de querer comer e não ter o quê.
Perante isto, só nos resta lamentar a subida do custo de vida ao ponto de dois mil ou três mil euros mensais, no mínimo, serem insuficientes para o pão com manteiga. E lamentar ainda mais que a fome das figuras da Justiça não seja sinónimo de fome de justiça. Aliás, talvez a subnutrição explique o papel dos protagonistas do ramo na cerimónia de abertura do ano judicial. Eu não consigo explicar.
Suponho que, em épocas ou países normais, semelhante evento redunde num aborrecimento desnecessário. No Portugal de hoje, é um circo perturbador. O presidente do Supremo Tribunal fala no regresso do PREC e quase apela ao regresso do PREC. O bastonário dos advogados faz um comício contra o Governo. E o procurador-geral descarada e misteriosamente critica a ligação entre a política e a Justiça. À Justiça caseira não lhe chega não ser cega: também insiste em não ser muda.
Porém, o que aqui se estranha é menos o conteúdo dos discursos do que a circunstância dos seus autores. Arrepia testemunhar condenações da "situação" por parte de criaturas que dedicam a carreira a conspirar para que a "situação" se mantenha intacta e que são, afinal de contas, o pior da própria "situação". Já não se trata de ponderar se faz sentido acreditar numa Justiça representada por gente assim, mas de ponderar se faz sentido acreditar que um dia esta Justiça terá um remédio alternativo ao que o economista/socialista Keynes prescreveu para os desvarios económicos: no longo prazo estaremos todos mortos. Alguns de fome, pelos vistos.
ALBERTO GONÇALVES
Diário de Notícias, 5.2.2012

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