segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Fazer justiça numa situação de crise extrema


A garantia de condições essenciais a um desenvolvimento social e económico justo do país está ligada à realização judiciária do Direito e dos direitos
“O que acontece à literatura quando é colocada perante uma situação extrema? Quando o mundo enfrenta uma das grandes crises económicas da sua História, parece indispensável colocar esta questão.” Assim é introduzida, no último “Magazine Littéraire”, uma entrevista com a comissária da exposição Arquivos da Vida Literária sob a Ocupação.
Questão idêntica pode bem ser colocada em relação ao papel do Direito e dos tribunais nos dias de hoje.
“Para que serve o Direito perante uma das mais graves crises económicas que o mundo enfrentou na sua História?” Muitos dirão, incomodados, que isso é politizar a Justiça.
Aos juízes – afirmarão peremptórios – cabe tão só, como é óbvio, aplicar a Lei.
Fazê-lo – esquecem – impõe, todavia, valorações éticas e jurídicas que só o Direito, e o que ele significa de equilíbrio, regra e compromisso na busca de soluções sociais capazes de realizar justiça, pode permitir.
A “História de um Alemão”, obra autobiográfica de Sebastian Haffener, um historiador e jornalista germânico refugiado em Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial, ilustra-o bem e quem a ler compreenderá melhor a pertinência desta questão.
Haffener, estagiário de juiz aquando da ascensão do nazismo, revela- -nos sem disfarces o problema ético e político dos juízes alemães e a causa da subordinação da maioria aos ditames do regime.
Os juízes – justificavam-se os próprios – tinham de aplicar a lei, fosse ela qual fosse e de acordo com o espírito vigente da nação.
Alguns, por excesso de zelo, acabaram, até, repreendidos pelo regime.
Não por acaso, muita da crítica mais interessante à visão positivista do Direito desenvolveu-se, por isso, nesse país depois da guerra.
Que, entre nós, alguns constitucionalistas tenham, nas actuais circunstâncias, decidido baixar a guarda e as expectativas contidas na lei fundamental, só podemos lastimar.
Não é a eles, porém, que compete dizer o Direito do caso concreto e confrontar-se com a realidade penosa das pessoas que ainda se socorrem dos tribunais para pedir justiça. Isso compete aos juízes.
Questionar a adequação da jurisprudência aos valores e direitos consagrados na Constituição tendo em vista a busca de equilíbrios conducentes a uma vida melhor para todos, faz, por isso, todo o sentido.
Frutos de um cauteloso acriticismo académico e de um conservadorismo judicial atávico, também muitos dos magistrados portugueses assimilaram um positivismo básico que, por vezes, os inibe de agir com acuidade sobre os problemas da vida real.
Aí, mais do que nos famosos atrasos, a causa da quebra actual da autoridade da Lei e dos tribunais.
Por isso, se o paradigma dessa cultura jurídica não mudar, de nada servirão, entretanto, as anunciadas reformas dos códigos e da organização judiciária.
Para continuar a fundar na Lei e nos tribunais a garantia da autoridade e da segurança democráticas, condições essenciais a um desenvolvimento social e económico justo do país, não podemos, por isso, fugir hoje ao debate sobre a realização judiciária do Direito e dos direitos.
Se, também na Justiça, não nos centrarmos de novo na hipótese da promoção de uma vida boa para todos, impossível será preservar o “princípio da esperança”, conceito que o filósofo alemão Ernst Bloch e, agora, noutro plano, também o Papa Bento XVI, consideraram ser a constituinte fundamental da dignidade humana e da sociedade decente em que o homem se deve mover.
Opinião de António Cluny
Jurista e presidente da MEDEL
Jornal I de 13-02-2012

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