sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Tribunal de Contas e os autarcas


O Tribunal de Contas moveu 46 processos contra presidentes de câmara e vereadores, exigindo que estes pagassem do seu bolso perto dos 200 mil euros em 2010. Nem todos cumpriram e o valor efectivamente pago foi de pouco mais de 143 mil euros. O Orçamento do Estado vai provocar a fuga de autarcas. As câmaras vão entrar em incumprimento e os dirigentes não querem pagar por isso
As multas são quase sempre aplicadas por pagamentos indevidos resultantes do não cumprimento de normas concursais, quer em empreitadas de obras públicas, quer em admissão de pessoal, diz o Tribunal de Contas, que tem como aliado o Ministério Público.
Os números podem parecer insignificantes e a afirmação do secretário-geral da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Artur Trindade, um exagero: “É rara a semana em que o Tribunal de Contas não penaliza um presidente de câmara com uma multa de mil, 1500 ou 1600 euros”. Mas, se os dados não são dramáticos para alguns, para já, ameaçam sê-lo no futuro, para todos.
A nova lei veio tornar o valor das multas mais elevado, alargar o âmbito das responsabilidades dos autarcas e aumentar os poderes do Tribunal de Contas. Para menos, ficaram as dotações orçamentais para a administração local.
António José Correia, presidente de Câmara Municipal de Peniche, traça o cenário. “Os dirigentes vão entrar em incumprimento e não foram eles que fizeram o PEC [Programa de Estabilidade e Crescimento]. A nova legislação devia ser precedida de consolidação, os municípios estão a ser empurrados para situações financeiras desastrosas devido à redução brusca das transferências do governo central. Se há dinheiro para os bancos, para a Madeira, nós também queremos. Agora, as câmaras vão ficar imobilizadas e, com a responsabilidade criminal por pagamentos em atraso, vejo o futuro com muita apreensão. Muita gente vai entrar em incumprimento e os presidentes das câmaras têm de se pôr a pau. Estou a pensar muito bem no que vou fazer no futuro.”
E não é o único presidente a pensar assim. Francisco Moita Flores, à frente da Câmara Municipal de Santarém, garante ao jornal i que “não me vou recandidatar!” Faz parte do leque de autarcas que nunca teve de pagar um coima e acredita que “as multas são um dos contributos para a transparência, mas devem ser estendidas aos membros do governo e aos técnicos que formam e sustentam a decisão, porque é aí que está o grande problema Os presidentes não têm de ser arquitectos, engenheiros ou advogados, por isso têm equipas que sustentam as decisões do executivo.” E dá um exemplo: quando chegou à câmara de Santarém, apenas 60% do concelho tinha saneamento. Quando sair, esta taxa será de 93%, superior à média europeia “Só aqui foram investidos 60 milhões de euros. Os projectos, aprovados por concurso, estavam praticamente todos errados, com erros que custaram os olhos da cara e cujas correcções são de tal forma que obrigam a novo esforço financeiro, mas que já não é candidatável a ajudas.” Por que não levar o assunto a tribunal? “O tribunal não resolve o problema do dinheiro, que continuará a existir e que de certeza foi para alguém.”
O presidente da Câmara de Esposende, João Cepa, já foi multado uma vez. Pagou do seu bolso 1450 euros, o equivalente a 62% do seu ordenado. O pior é que para não “contrariar” o Tribunal de Contas, teria de incorrer no incumprimento da lei. Ou seja, autorizou o pagamento de facturas relativas aos transportes escolares antes de os contratos serem visados pelo TC. “As facturas foramme remetidas pelos serviços financeiros, que não me deram qualquer informação sobre o facto do contrato ainda não estar visado. Eu assinei as ordens de pagamento sem ter a mínima noção de que houvesse algum problema. Só tomei conhecimento quando fui “acusado” pelo Tribunal de Contas. De qualquer forma, mesmo que tivesse conhecimento na altura, é provável que tivesse pago as facturas, até porque o DL 299/84 obriga-nos a pagar as facturas dos transportes escolares até ao dia 20 de cada mês”, conta. Conclusão, “perante tudo o que está a ser feito ao poder local e aos autarcas deste país, ainda bem que já só faltam 20 meses para o final do mandato.” O presidente da Câmara Municipal de
Santa Comba Dão, João Lourenço, resume bem a posição de grande parte dos autarcas contactados pelo jornal i. “Os autarcas são sempre o alvo a abater nas decisões de qualquer governo. Exigem que os autarcas sejam simultaneamente políticos e técnicos, com a agravante de exigirem que sejam técnicos de todas as especialidades. Esta lei é um absurdo completo e só demonstra o desprezo e, provavelmente, a inveja que o poder central tem dos autarcas. É escandaloso que num Estado de direito seja exigido aos autarcas responsabilidades que não são exigidas a mais nenhum político deste país.”
As alegações estendem-se a outros autarcas que estão, sobretudo, preocupados com o futuro. Paulo Inácio, presidente da Câmara Municipal de Alcobaça lembra que, por exemplo, “a reposição de montantes relativos a obras pode estragar a vida a uma pessoa”.
E este é um dos receios, como explica o advogado Paulo Pinheiro, sócio da sociedade Vieira de Almeida responsável pela área de direito público. “Existe o risco da paralisação da decisão”. No entanto, o advogado considera que “o Tribunal de Contas tem tido uma postura pedagógica. Poderão existir algumas injustiças, mas serão excepções. Antes havia uma certa impunidade, os valores das multas eram baixos e o tribunal não tinha tanto poder, nem estava tão presente. Acontece que a responsabilização do dirigente ficava sem efeito”. De facto, o Ministério Público chegou a anunciar a investigação de casos de suspeita de autarcas que utilizaram fundos públicos para pagar coimas passadas em nome pessoal. E o próprio Tribunal de Contas afirma que nem todas as multas são pagas, nem sempre pela apresentação de recurso. Nestes casos, a multa, que é paga nos serviços de Finanças e cujo valor reverte a favor dos cofres do Estado, segue o tratamento de qualquer dívida fiscal, com direito a penhora incluído.
O presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, disse ao i que “as sanções que a lei prevê e que acabam de ser reforçadas pela Assembleia da República são importantes dissuasores que têm contribuído para melhorar a disciplina financeira e orçamental, o que corresponde ao facto de continuar a haver um número muito significativo de cumprimento voluntário por parte dos responsáveis!” Por outro lado, e no que toca às recomendações, “existe uma tendência crescente de acatamento das mesmas em percentagens muito significativas, o que tem sido assinalado em termos internacionais como exemplar na acção do Tribunal de Contas de Portugal.”
Isabel Tavares
ionline a 27-01-2012

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