sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Crises da Justiça


O livro de Amartya Sen, “A Ideia de Justiça”, publicado em 2009 e agraciado com o Prémio Nobel da Economia, critica a pretensão da filosofia política de estabelecer definitivamente os fundamentos essenciais da construção de um Estado idealmente justo, ambição de que John Rawls ofereceu o mais acabado exemplo com a sua “Teoria da Justiça”, de 1971. Contra esta obsessão filosófica de encontrar os requisitos essenciais de uma justiça perfeita numa sociedade ideal, Amartya Sen privilegia o esforço da aproximação às soluções concretas que possam minimizar as injustiças reais do mundo globalizado, ponderando critérios divergentes e convocando pontos de vista alheios capazes de iluminar o sentido das escolhas que em cada caso se revelem mais vantajosas. É isto que os nossos reformadores da Justiça parece terem desistido de procurar porquanto ela permaneça preocupação comum a todos os poderes públicos. A reforma da Justiça tornou-se um trabalho de Sísifo, um fazer e refazer sem princípio nem fim. Agora, segundo o memorando da troika, o que está em crise seria, sobretudo, o processo executivo e o regime da insolvência. Também no passado, além da urgência dos negócios e da morosidade dos processos, se deplorou o estado da justiça criminal. A crise da Justiça tornou-se entre nós um tema recorrente, há várias décadas, e foram variando os diagnósticos e multiplicaram-se as receitas sem que um balanço sério das reformas encetadas facilitasse alguma vez o esclarecimento do que foi conseguido e do que ficou por alcançar.
Em junho de 1998, em resposta a um amável convite do dr. Mário Soares, publiquei no número 3 dos “Cadernos Democráticos”, coleção editada pela Gradiva, um curto ensaio intitulado – “A Crise da Justiça em Portugal”. Ali refletia sobre a reforma da Justiça, as enfermidades que então a reclamavam e os remédios que exigia, sublinhando o estado da justiça criminal onde se articulava uma teia perversa dos polícias e dos tribunais contra “os suspeitos do costume”. O abuso da prisão preventiva fazia de Portugal o país da União Europeia com a mais elevada taxa de reclusos a aguardar julgamento e a mais elevada percentagem de cidadãos encarcerados, atingindo a sobrelotação das prisões, a essa data, índices só ultrapassados pelos países de Leste… e pelos Estados Unidos da América. Adam Gopnik, num artigo intitulado, “O Encarceramento da América – por ue prendemos nós tanta gente?”, publicado nesta semana no “The New Yorker”, qualifica essa situação como “o escândalo moral americano”: em 2010, por cada mil americanos, mais de sete encontravam-se detidos numa prisão, quando, em países “civilizados”, a média não ultrapassa um por mil. Só no Texas, mais de 400 adolescentes estão a cumprir pena de prisão perpétua. Esta escandalosa justiça criminal é o resultado não só da extrema severidade das penas aplicadas, sem comparação no mundo ocidental, mas também do abuso de formulações legislativas rígidas e minuciosas (mandatory-sentencing laws) que não consentem ao juiz a desejável amplitude para a ponderação da medida da pena a aplicar. Embora o senso comum resista a admiti-lo, a verdade é que não existe uma relação direta da variação dos níveis de criminalidade com as prisões nem tampouco com a severidade das penas. De entre a multiplicidade de fatores sociais, políticos e legislativos que condicionam os crimes e a sua oportunidade, avulta a ação policial, as suas modalidades e acerto. A reforma da Justiça é essencial à afirmação de uma sociedade civil mais exigente e interventiva, à emergência de novas atitudes culturais e, por aí, também um substancial incentivo à atividade económica. Todavia, a máquina judicial continua desdobrada por infinitas instâncias de recurso, ainda preserva uma insondável opacidade e resiste ao escrutínio público invocando a sua inquestionável independência, tão irrefutável, afinal, quanto a premente necessidade de compensar essa autonomia pela criação de efetivos controlos externos do Poder Judicial.
Opinião de PEDRO BACELAR DE VASCONCELOS
Jornal de Notícias de 27-01-2012

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