sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Casa da Supplicação


O Supremo Tribunal de Justiça proferiu um acórdão, cujo sumário se segue, e que pode ser lido na integra aqui, sobre um falado caso de corrupção em Lisboa

Prescrição do procedimento criminal - 
interrupção da prescrição - suspensão da prescrição - métodos proibidos de prova - caso julgado - corrupção - corrupção activa - titulares de cargos políticos - pena - fins das penas - escolha da pena - pena de prisão - pena de multa - medida concreta da pena - pena suspensa - condição da suspensão da execução da pena
I - O crime de corrupção ativa para ato lícito a titulares de cargos políticos, p. e p. pelo art.º 18.º, n.º 2, da Lei 34/87 de 16/7, na redação da Lei 108/2001 de 28/11, vigente ao tempo dos factos, é punível com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 60 dias.
II - O procedimento criminal por crime punível com pena inferior a um ano de prisão extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido dois anos (art.º 118.º, n.º 1, al. d, do CPP).
III - Nos termos do art.º 119.º, n.ºs 1 e 2, o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado, sendo que o prazo de prescrição só corre, nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação.
IV - Porém, de acordo com o art.º 121.º, a prescrição do procedimento criminal interrompe-se, nos casos que ora nos interessam, com a constituição de arguido e com a notificação da acusação. Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição. A prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
V - O arguido nestes autos foi constituído como tal em 17/02/2006 (fls. 159, 1º. volume) e foi notificado da acusação por via postal simples remetida em 10/01/2007, o distribuidor do serviço postal depositou a carta no dia imediato e, portanto, a notificação considera-se efetuada em 16/01/2007 (terça-feira) – cf. art.º 113.º, n.º 3, do CPP. Em qualquer dessa datas se interrompeu, portanto, a contagem do prazo da prescrição.
VI - Mas, a notificação da acusação, simultaneamente, suspendeu a contagem do prazo, pelo prazo máximo de 3 anos (art.º 120.º, n.ºs 1, al. b e 2, do CPP).
VII - Relativamente a este último prazo máximo de 3 anos de suspensão da contagem da prescrição, a lei não estabelece qual o seu termo, ao contrário do que sucede nos casos das outras alíneas do n.º 1 do art.º 120.º, cujo termo será o “dia em que cessar a causa da suspensão” (n.º 3), isto é, quando houver autorização legal, ou for proferida sentença no estrangeiro, ou findar a contumácia, etc.
VIII - Com efeito, a “notificação da acusação”, como causa de suspensão, esgota-se no próprio ato e, portanto, não se pode ficar à espera de “cessar a causa da suspensão”, nos termos do n.º 3. Por isso, o único entendimento possível é o de que a suspensão da contagem do prazo da prescrição do procedimento criminal, por força da notificação da acusação ao arguido, destina-se a permitir que, num prazo razoável, contado pelo máximo de 3 anos, se efetue o julgamento e se processem os recursos das decisões que entretanto venham a ser proferidas. Por isso, o prazo de suspensão, nesse caso, é de 3 anos e só será menor se transitar até lá a decisão final que decidir a causa. Na realidade, é o que a própria alínea b) do n.º 1 do art.º 120.º refere: «- A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que: (…) b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação…».
IX - Da conjugação de todas estas normas resulta que a prescrição do procedimento criminal só ocorre, no caso dos autos, no prazo de seis anos contados ou desde a consumação do crime, portanto em 27-01-2012 ou 30-01-2012 (consoante se considere que o crime é ou não de atividade), ou em 17-02-2012, seis anos depois da constituição de arguido, como é opinião de alguma Doutrina.
X - O arguido, aqui recorrido, invocou diversas ilegalidades suscetíveis de tornarem alguns meios de prova proibidos e, portanto, nulos. Todavia, como bem decidiu o acórdão recorrido, toda essa matéria foi objeto de decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida em 21-10-2008 e já transitada em julgado.
XI - Ora, se o Tribunal da Relação já decidiu essas questões por acórdão transitado em julgado, não podia o mesmo tribunal na decisão recorrida – como não pode agora o STJ neste recurso – voltar a discutir o mesmo assunto, sob pena de violação do caso julgado formal.
XII - Segundo o art.º 672.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo penal, as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
XIII - O caso julgado formal existe para impedir que no âmbito do mesmo processo recaiam uma ou mais decisões contraditórias com outra que, sendo suscetível de recurso, já tenha transitado em julgado.
XIV - O acórdão do TC referido pelo arguido - n.º 387/2008, de 22 de julho de 2008 – segundo o qual os juízos formulados no despacho de pronúncia são provisórios e devem ser reavaliados em julgamento, respeita a uma época em que certa jurisprudência interpretava a lei no sentido de considerar o despacho de pronúncia incindível e, portanto, irrecorrível na parte em que conhece das questões prévias e incidentais, nomeadamente, das nulidades, no caso de concluir pela pronúncia do arguido pelos factos constantes da acusação do M.º P.º.
XV - No caso dos autos, porém, não foi essa a orientação que veio a ser seguida, pois, entretanto, o STJ, pelo Acórdão de 19 de janeiro de 2000 ("Assento n.º 6/2000", no Diário da República, I Série-A, n.º 6, de 7 de março de 2000), havia fixado jurisprudência nos seguintes termos: "A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais” e por Acórdão n. ° 7/2004, de 21 de outubro de 2004 (Diário da República, I Série-A, n. ° 282, de 2 de dezembro de2004), fixou a seguinte jurisprudência: "Sobe imediatamente o recurso da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público."
XVI - A interpretação que aqui fazemos, de que o trânsito em julgado do acórdão da relação que julgou um recurso sobre questões incidentais do despacho de pronúncia, relativas à proibição de provas, impede um novo conhecimento das mesmas no processo, não padece de qualquer inconstitucionalidade, pois, como bem explicou o acórdão recorrido, o Tribunal Constitucional tem sempre afirmado a validade desta conceção do caso julgado formal (veja-se, entre todos, o Ac. do TC 86/2004, de 04/02/2004).
XVII - O assistente B é vereador da Câmara Municipal de Lisboa e, portanto, titular de cargo político (art.º 3.º, al. i) da Lei 34/87, de 16/07).
XVIII - É fora de dúvida que o arguido ofereceu ao assistente, por intermédio do irmão deste, uma vantagem patrimonial de € 200 000,00 para que praticasse determinados atos, a saber:
1º- Desistência da ação popular já movida pelo assistente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, contra o Município de Lisboa, a sociedade "D" e a "G", tendo em vista tal ação que o Tribunal declarasse a nulidade das deliberações que aprovaram o acordo e do contrato de permuta de terrenos do “D” pela “F”, bem como a nulidade da deliberação e das operações de loteamento do terreno onde se encontrava instalada a F.
2º- Afirmação pública do assistente perante a Câmara Municipal de Lisboa e perante jornalistas, na qual deveria declarar que, tendo consultado os processos camarários respetivos, as pessoas e as entidades que haviam negociado com a CML o contrato da F / D, isto é, o arguido e os demais acionistas da "C" e da "D", haviam estado de boa fé, tendo cumprido as exigências legais, pelo que não deveriam ser prejudicados, tanto mais que apenas haviam atuado na defesa dos interesses das suas empresas.
3º- O silêncio futuro do Assistente, em particular no que se pudesse referir ao direito de preferência reconhecido pela Câmara Municipal de Lisboa (facto a.40 da matéria de facto provada).
XIV - Os atos dos funcionários, para serem relevantes para o preenchimento dos tipos da corrupção, hão de caber dentro das suas específicas competências legais ou dos poderes de facto decorrentes do cargo que desempenham.»
XV - Ora, das três contrapartidas acima discriminadas, exigidas pelo arguido ao assistente a troco da gratificação que se lhe propunha dar, uma estava manifestamente fora das competências legais ou dos poderes de facto decorrentes do cargo político que o assistente exercia, pois que a ação popular tinha sido proposta pelo cidadão B antes de ocupar qualquer cargo político e, portanto, a apresentação de uma desistência dessa ação, ainda que uma contrapartida remuneratória, não passaria de uma vulgar transação processual, em que o autor, a troco de um benefício oferecido pelo réu, desiste do pedido.
XVI - Já a declaração pública que o arguido desejava que fosse feita pelo vereador B e o seu posterior silêncio quanto ao exercício do direito de preferência pela Câmara, a troco da gratificação prometida, tem de ser encarada de outro modo.
XVII - É que um vereador de uma Câmara não exerce apenas o cargo no que respeita ao pelouro ou aos pelouros que lhe são atribuídos. As suas funções estendem-se por outras áreas, pois, nomeadamente, tem funções políticas, de representação do partido ou do grupo de cidadãos que o elegeram e, para além disso, outras funções administrativas nos órgãos autárquicos, nomeadamente, as de fiscalização da legalidade, podendo e devendo suscitar perante a Assembleia Municipal as irregularidades ou nulidades dos atos camarários.
XVIII - Assim, ao pretender que a troco da vantagem económica prometida, o vereador B se vinculasse perante a Câmara e perante a opinião pública, em declaração formal, que os atos de permuta supra referidos eram, afinal, válidos e límpidos e ao comprometer-se a que, no futuro, se mantivesse silencioso em relação a tudo que a tal respeitasse, nomeadamente, quanto ao exercício do direito de opção por parte da Câmara, o arguido estava a condicionar o exercício do cargo que aquele vereador exercia, tanto na vertente política, como no próprio desempenho do seu cargo.
XIX - E os atos que o vereador em causa pudesse ou não praticar não estavam dependentes de uma sua “opinião”, mas de um poder/dever inerente ao seu cargo administrativo e político, de respeitar a legalidade e os compromissos, ao menos, com os cidadãos eleitores.
XX - Não faz qualquer sentido uma pretensa similitude entre atos hipoteticamente praticados por juízes e atos hipoteticamente praticados por um vereador, pois que a esfera de atuação de um juiz é limitada aos processos que lhe estão afetos no tribunal onde presta funções, enquanto um vereador é um político, pois como tal o define a lei e, portanto, as suas funções não se limitam apenas aos papéis e dossiers que lhe são colocados na secretária.
XXI - Não faz parte do objeto deste recurso averiguar se a corrupção ativa praticada pelo arguido foi para ato ilícito. Assim, estando-nos vedado caminhar nessa direção, não resta senão reconhecer que o arguido, por si, prometeu a titular de cargo político, ou a terceiro com conhecimento daquele, vantagem patrimonial que ao titular de cargo político não era devida, com o fim de que o mesmo praticasse atos que cabem na sua esfera de atuação desse cargo. Por outro lado, está provado que o arguido A atuou livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (ponto a.55).
XXII - Por isso, o arguido cometeu um crime de corrupção ativa para ato lícito, p. e p. pelo art.º 18.º, n.º 2, da Lei 34/87 de 16/7, na redação da Lei 108/2001 de 28/11.
XXIII - O crime praticado pelo arguido assume, no quadro da moldura penal respetiva, uma ilicitude muito alta, quase no seu máximo possível, pois a promessa de gratificação foi feita de um modo insistente e repetido, durante vários dias e através de três encontros pessoais.
XXIV - Por outro lado, ainda no quadro da ilicitude, há que referir que a quantia prometida pelo arguido como suborno era de valor consideravelmente elevado, o que, por si só, é elucidativo de que o arguido pretendia obter, ao comprar atos e omissões do assistente, elevadíssimos proventos com o negócio subjacente, em desrespeito pela coisa pública.
XXV - Como se sabe, os relatórios divulgados demonstram que em Portugal o fenómeno da corrupção tem minado o Erário Público e a confiança dos cidadãos nas instituições. Há, portanto, elevadas exigências de punição nos casos de corrupção que são detetados.
XXVI - O dolo do arguido foi elevadíssimo.
XXVII - Quanto à personalidade do arguido, há que ter em conta a sua idade (nascido em 17-09-1954), o seu percurso pessoal, cultural e empresarial, as suas estáveis condições familiares e a sua boa integração social, as suas elevadas condições económico-financeiras, a sua conduta social e comunitária e a sua escolaridade. Não tem antecedentes criminais.
XXVIII - Tudo ponderado, atenta a fortíssima exigência de prevenção geral já apontada, a pena de multa alternativa não poderá corresponder às expectativas comunitárias na validade da norma, pois não conduziria à tutela dos bens jurídicos que se exprime no caso concreto. Será, pois, de fixar a pena em 5 (cinco) meses de prisão.
XXIX - Contudo, a ausência de antecedentes criminais e a boa inserção social e familiar do arguido levam a que o tribunal, a par de uma estratégia intimidatória, não possa deixar de fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples ameaça da pena e a mera censura do facto irão afastar o arguido da criminalidade e não defraudarão as finalidades da pena neste caso concreto, tanto mais que já passaram quase seis anos e não chegou a haver entrega de dinheiro, nem o político em questão se deixou corromper.
XXX - Por isso, nos termos dos art.ºs 50.º e 51.º do CP, a pena será suspensa por um ano, mas com a condição de o arguido entregar, no prazo de dois meses, na Repartição de Finanças da área da sua residência quantia igual à que prometeu como suborno, isto é, € 200 000,00 (duzentos mil euros), que assim reverterá para o Erário Público.
XXXI - Não se diga que esta quantia é desproporcionada, pois se o MP o tivesse requerido, ou se fosse objeto deste recurso, tal quantia teria de ser declarada perdida para o Estado (cf. art.º 111.º, n.º 1, do CP: “Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado”).  
Ac. STJ de 20-01-2012, proc. n.º 263/06.8JFLSB.L1.S1, Relator: Conselheiro Santos Carvalho

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