A velha era já bem conhecida dos funcionários do tribunal. E levava muito chegada a si uma pequena cesta de vime, de cujo interior surdiam ruídos leves, uma espécie de arranhadelas espaçadas. Calçava tamancos pretos e vestia uma blusa com notinhas amarelas.
O oficial Pereira perguntou-lhe: – «O que traz aí?» Ela sorriu, sem responder, enristando contra ele o único dente amarelecido. O funcionário, ainda: – «Que quer vossemecê?». Ela sorriu outra vez e disse, com certo orgulho: – «Queria falar com ele. Só com ele.» O Pereira retorquiu-lhe: – «Julga que é assim tão fácil ser recebida por um senhor magistrado» Ela adiantou, então, uma justificação: – «Eles agora são meus amigos; é por isso que queria falar só com ele.»
Aproximou-se outro funcionário e ela cumprimentou-o familiarmente: – «Olá». Ele bateu-lhe no ombro e disse: – «É uma boa cliente; e hoje vem muito catita; se fosse mais nova... Ouça lá, como vai isso, agora?» E ela, prontamente: – «Agora tratam-me bem. É por isso que queria falar com sua excelência – «Com o senhor juiz – perguntou ele, justificando-se de imediato: – «Olhe que não sei; como vossemecê é uma cliente antiga, pode ser; mas não serei eu que vou anunciá-la». Ela: – «Queria falar com ele. Só os dois, mais ninguém». Ele, ainda: – «O que tem vossemecê ai no cabaz?» Ela, gozosa e sorrindo abertamente: – «Nada, meu senhor, nada; línguas de perguntador».
Esperou, sentada num dos bancos da sala de audiências, para onde a mandaram, cochichando a intervalos com um homem pouco mais novo, que estava à espera da sua vez para ser julgado. Disse-lhe então, ao ouvido: – «Não tenha medo; este juiz é muito justiceiro. Eu tive aqui uma questão e sei que ele é muito justiceiro». Olhou em redor e acrescentou, daí a pouco: – «Vossemecê não ouviu falar? Olhe que veio nos jornais». O homem disse: – «Esteja caladinha». Ela certificou-se de que o juiz e o oficial estavam absorvidos pelo julgamento e acrescentou: – «Este juiz é um santo». O homem fitou-a, espiou o juiz e segredou-lhe pelo canto da boca: – «Vossemecê está zaruca. Esteja caladinha».
No final, o Pereira, justificando-se, disse ao juiz que a mulher tinha permanecido na sala de audiências toda a tarde. – «O que é que ela quer?» – perguntou o Prado, a despir a beca. O oficial respondeu: – «Não consegui arrancar-lhe uma palavra». Voltou o Prado: – «Estou a ver que tenho de os castigar exemplarmente. Está bem; que entre».
O Pereira saiu do gabinete e foi dizer à mulher que o «senhor juiz» a recebia. Ela sorriu. – «Mas não pode levar a cesta», – condicionou o oficial, tentando tirar-lha. Ela recuou, chegando-a mais a si. – «Vossemecê levava a cesta para a igreja, diga lá? Não se podem levar essas coisas para certos lugares». Ela volveu-lhe: – «Tenha muita paciência», – e avançou para a porta do gabinete. – «Espere aí, santinha» – voltou o oficial –, «se não deixa a cesta, não pode entrar». Ela respondeu-lhe: – «Pois então, nada feito». O oficial mandou-a esperar, avançou para a porta do gabinete e hesitou. Depois disse: – «Vossemecê é teimosa. Deixe ficar a cesta, que ninguém lha rouba». Ela voltou com a mesma segurança: – «A cestinha vai comigo».
A maioria dos funcionários já tinha saído. O oficial de diligências aguardou na varanda do claustro, como sempre que alguém era por si introduzido no gabinete do juiz. A visita foi rápida. Quando a viu sair do gabinete, perguntou: – «Então» A mulher respondeu: – «Muito agradecida; vou-me daqui, que são horas». – «Correu tudo vem? – insistiu o Pereira. E ela, esquivando-se: – «Vou andando, que se faz tarde». O oficial colocou-se na frente dela: – «Mas diga lá, correu bem ou não?» Ela, sempre a caminhar: – «Nem bem nem mal; foi mais ou menos».
O Prado continuava no gabinete. O oficial remoeu a dúvida por alguns momentos, decidiu-se e reentrou: – «V. Ex.a não precisa de mais nada?» O juiz olhou-o rapidamente e disse: – «Não, nada; até amanhã». O Pereira estranhou e saiu logo com a intenção de alcançar a mulher, que descia a ruela para a banda do rio. Tocou-lhe no ombro, por trás: – «Então vossemecê foi aborrecer o senhor juiz?». Ela voltou-se um pouco, até ficarem de cara: – «Uma desfeita assim! Com a idade que tenho nunca recebi uma destas». Ele: – «Vossemecê disse-lhe alguma que o ofendeu». Ela, impávida: – «Eu nunca ofendi ninguém». O oficial não desarmou: – «Andei à volta dele para isto». Ela deu mais um passo: – «Foi uma grande desfeita. Vou indo, meu senhor». O oficial retrocedeu. Ao atingir de novo a portaria do convento, o Prado, que vinha a sair, chamou-o. Abeirou-se rapidamente tomando-lhe das mãos a pasta e o guarda-chuva. O porteiro curvou-se para o cumprimento habitual. O Pereira sentiu vontade de falar, mas entendeu que não o devia fazer, nem sequer insinuar. Pareceu-lhe, aliás, que o juiz o chamou para lhe «dar um raspanete», mas limitou-se a recomendar-lhe que acendesse sempre o aquecimento, logo de manhã, para encontrar o gabinete aquecido, quando lá entrasse.
Atrás do Prado surgiu entretanto o automóvel do Pedras. Entrou nele, sem falar. O carro esforçou-se, roncou nos sítios mais íngremes, afrouxando nas curvas mais acentuadas e nos pontos mais estreitos. – «Que tens tu, hoje?» – inquiriu o colega, já perto do Jardim da Cordoaria. Respondeu-lhe: – «Estes funcionários são uns azelhas; não sabem livrar-nos destas encrencas. Vais com pressa?» – «Não», disse o Pedras; queres que te leve a algum lado?» – «Não; encosta aí».
O Pedras apagou a luz, bateu-lhe uma palmada na coxa e disse:
– Desembucha lá.
O Prado remexeu-se no assento e abriu assim:
– A nossa carreira tem por vezes os seus lances teatrais. Agora mesmo, antes de sair, me aconteceu uma coisa um tanto rocambolesca. Há uma velhota que pôs dois processos seguidos contra a filha e o genro, acusando-os de a maltratarem. Acusava-os de pretenderem ver-se livres dela, depois que lhes fez doação de uma casita, onde viviam os três, e que era a única coisa que tinha neste mundo. Coitada, não tinha advogado, nem nada, as testemunhas começaram a gaguejar e eu absolvi-os, mas fiquei com a impressão de que a mulher tinha apanhado. O certo é que as testemunhas, na verdade, não deviam ter assistido e, sem provas, nada feito. Absolvi-os.
Aquilo passou. Correu algum tempo. Voltaram segunda vez e aí eu acreditei que os bandalhos espancavam a mulher. Mas continuava sem provas. A velhota não podia pagar a um advogado. As testemunhas não deviam ter assistido. Diziam que a ouviram chamar «aqui d'el rei contra a filha e o genro», mas, de resto, nada, porque a coisa era feita debaixo das telhas. Pensei então comigo: «Estes patifes são capazes de dar cabo da velha e nada se consegue provar contra eles.» Então resolvi intimidá-los: «Seus desalmados, vocês espancam a pobre da criatura sem sequer pensar que ela vos deu tudo o que possuía?» e, voltando-me para a ré, disse-lhe as últimas: «Porque você é uma filha desnaturada, um ser repugnante, etc., etc. Se voltam aqui pelo mesmo motivo, eu mando-vos para o chilindró, como dois e dois serem quatro». E absolvi-os outra vez.
Decorreram vários meses, talvez mais de um ano. E hoje aparece-me a velhota outra vez. Eu não gosto de receber ninguém, mas estava com uma certa curiosidade. Mandei-a entrar. Tinha esperado por mim toda a tarde, sentada na sala de audiências. Entrou a sorrir e pousou a giga que levava, na minha secretária. – «Então, – perguntei – eles deixaram de lhe chegar?» Ela respondeu: – «Sim, meu senhor; agora são meus amigos; até me deram esta blusa que trago». – «Ainda bem – disse eu; – Você agora já pode morrer descansada. Mas, se houver qualquer coisa, venha cá». – «Não, meu senhor; não há mais nada. A minha filha pediu-me perdão e eu perdoei-lhe, porque é minha filha. A culpa não é dela, não». Depois desta conversa, eu disse-lhe: – «Pronto, foi bom assim. Vá com Deus». Nessa altura, ela soltou uma espécie de gargalhadinha, abriu a tampa do gigo e que vejo eu? Calcula, uma franga, uma franga no meu gabinete com a cabeça de fora, a cacarejar. Fiquei parvo e ela disse então: – «Trago-lhe aqui esta pitinha. Foi criada por mim, desde que saiu do ovo. É muito limpinha; não tem qualquer doença. Fui eu que a criei».
– Essa é inédita, – exclamou o Pedras. – Já estou a ver: correste com ela.
– Que havia de fazer? Já pensaste numa situação destas? O que podia eu fazer? Levar o frango para casa, debaixo do sobretudo?
– Ofendeste a mulher e dessa gente não é que vem o perigo. Devemos guardar-nos é dos de cima.
– Mas então diz lá, o que ia eu fazer da «pitinha», como ela dizia?
– Atirava-la ao rio, pá, quando a velha saísse.
– Rai's parta esta vida! – lamentou-se o Prado.
– A coisa é realmente original.
– Sabes o que mais me custou? Foi ouvi-la dizer e a lamentar-se: «porque eu sou pobre, porque o senhor não aceita a pitinha porque... é por ser pouquinho, não é?». Foi uma autêntica batalha. A franga soltou-se, esvoaçou, cagou-me nos processos. E a mulher a teimar comigo. Não compreendia que eu não aceitasse. Aí irritei-me: – «Ponha-se já fora da porta!»
– Fizeste mal. Essa foi a menor ofensa que ela te pôde fazer. Não compreendeu verdadeiramente o motivo da tua recusa. Se ela tivesse entendido, talvez tivesse dó de ti.
– Que estás para aí a dizer?
– Olha, menino, – voltou o Pedras, e tremeu-lhe o lábio inferior; – o que tu recusaste não foi a pitinha da velhota. Agiste por medo.
– Medo de quê?
– Do que pudessem pensar de ti. Ao mesmo tempo satisfizeste uma necessidade que todos sentimos, continuamente: mostrar a nós próprios e aos outros o que não somos na realidade.
– Lá estás tu com as tuas subtilezas.
– O nosso povo sabe muito bem que os poderosos se aplacam com ofertas. Para eles, tudo o que é bom acontece por milagre.
– É necessário educá-los.
– Vivemos aterrados com o peso do nosso poder, que aliás não tem justificação.
– Enganas-te. Vivo tranquilo; perfeitamente tranquilo com a minha consciência.
– Nesse caso, és um anormal, a pedir exame psiquiátrico.
– Tu é que andas a exigi-lo, há muito, – rematou o Prado, enfurecido. – Deixas-me em casa?
O Pedras accionou o motor e ligou a luz.
– Claro que te deixo em casa, menino. Vamos lá. – E arrancou.
– Queria ver-te na minha situação, – voltou o Prado, já depois de percorrida uma boa distância, em silêncio.
– Mas tu não andaste bem.
– Que querias que eu fizesse? Diz lá, raio!
– Ofendeste a velha.
– E então?
– Foste longe de mais.
– Se não tinha outra saída...
– Podias ter-lhe explicado.
– Tu próprio disseste que o povo não compreende.
– Não devias irritar-te. Mas acabou-se. Cá estás. Cumprimentos em casa.
Sem comentários:
Enviar um comentário