por OSCAR MASCARENHAS
Estava o mundo em plena Guerra Fria e os norte-americanos pretendiam infiltrar um espião na União Soviética. Prepararam-no com todos os cuidados, treinando-lhe até o sotaque específico da aldeia siberiana para onde iria ser lançado, identificando-o com todos os pormenores da vida dos aldeões.
Certa noite, foi lançado de paraquedas para junto da aldeia e, depois de envergar roupas tradicionais da região, entrou na única taberna do povoado.
"Olá, Boris", disse para o taberneiro. "A tua filha Irina já teve o bebé?"
"Já, sim, correu tudo bem", respondeu Boris. "Mas o senhor é espião americano, não é?"
Perplexo, o espião tentou desviar a conversa. "Olá, Ivan, como vai a vaca que estava doente?"
"Já está boa, felizmente", disse Ivan. "Mas o senhor é espião americano, não é?"
Desesperado, o espião desistiu. Confessou, descreveu os treinos que tivera e perguntou: "Como é que descobriram?"
"É que nunca tínhamos visto um negro aqui na aldeia", explicaram todos, em uníssono.
Comecei com esta anedota disparatada para recorrer ao método de redução ao absurdo na abordagem de uma questão para a qual não tenho nem nunca tive resposta segura - e receio bem que nunca chegarei a ela: é ou não correto fazer referências étnicas aos protagonistas de um episódio noticiado?
A anedota elucida o nonsense a que se pode chegar quando se cumpre aquilo a que está muito em voga chamar-se o "politicamente correto". Não é nada politicamente correto, é apenas disparate, tolice, tonteira, absurdo, asneira, despropósito - tudo menos politicamente correto. Eu, pelo menos, sou defensor do que é politicamente correto: a alternativa seria o politicamente incorreto? Politicamente correta é a atitude que respeita valores e princípios que se pensam serem os mais adequados para a saudável convivência dos cidadãos, com respeito pela liberdade e dignidade das pessoas. O curioso é que o termo "politicamente correto" é brandido como arma ideológica pelos sectores mais conservadores, pelas pessoas que passam a vida a obedecer cegamente ao "sempre assim foi, sempre assim será", sem perderem um segundo a pensar no assunto e fazendo chiu! a quem queira refletir em voz alta. O "politicamente correto" passou a ser o cartaz de rebeldia dos conservadores, para não dizer reacionários. (Se Durão Barroso veio - com pedido de desculpas logo a seguir, é claro - reintroduzir o termo "reacionário" no discurso político, então a palavra corre sérios riscos de ser politicamente... incorreta!)
Voltando à questão da aceitabilidade ou não das referências étnicas, a primeira prevenção que surge está no risco de se desencadearem generalizações apressadas. A tendência natural - mas errónea - é identificar pessoas, nos seus caracteres e comportamentos, pela semelhança que têm em relação a outras. A verdade é que todas as generalizações nos desviam da verdade. Sabe o leitor qual é a única frase correta que se pode construir a partir de "os portugueses são..."? É esta: "Os portugueses são - cidadãos de Portugal." Mais nenhuma frase é cem por cento válida. Isto é, não há mais nada que identifique todos os portugueses.
As generalizações nem sempre são depreciativas, mas continuam enganadoras: veja-se a inveja que temos dos quenianos e etíopes papa-maratonas, mas não creio que quando soubemos que o troicano Abebe Aemro Selassie é etíope, a nenhum de nós tenha ocorrido a imagem de uma incansável gazela...
A verdade é que as pessoas fazem naturalmente generalizações. Por alguma razão se diz que gato escaldado de água fria tem medo. A questão aqui não é saber se alguém se escaldou: basta que tenha sabido de alguém que sabe de outro alguém que ouviu dizer que um longínquo alguém se escaldou. E as notícias nos jornais são, digamos, notícias de escaldadelas. Daí o cuidado a ter.
Estive recentemente na Bélgica e na Holanda e colhi a impressão de que muita gente se sente desconfortável com a presença de "marroquinos". Da direita à esquerda, é indiferente, a linha de demarcação não é política, no sentido tradicional: é escaldadela ou temor de escaldadela. E esses temores são inelutáveis se forem instilados pelo discurso político. Na verdade, não é muito preocupante que os cidadãos resmoneiem entre dentes "os africanos são isto", "os romenos são aquilo" e por aí fora. Mas se um político for à televisão, mesmo com muitas cautelas no vocabulário, exprimir alguma coisa que aquelas pessoas queriam ouvir e acham que ouviram, bem pode o político ter a certeza de que chegou chama à mecha.
A verdade é que a culpa não é exclusiva de oradores da maioria, numa determinada sociedade. O bom princípio de "em Roma sê romano", que foi sempre um lema de boa integração da grande maioria dos emigrantes portugueses em toda a parte, está caído em desuso no seio de diversas comunidades minoritárias, em especial aquelas que mantêm vínculos a uma liderança que as acompanhou e que continua, no país de acolhimento, a impor a sua dominação ideológica e na moral coletiva, abrindo guetos onde podem perpetuar o seu mando.
Não chega fazer um esforço para corrigir os sentimentos quase instintivos que se têm em relação a "eles", as minorias. Do lado de algumas comunidades minoritárias, a comunidade hospedeira também é vista como "eles". E "eles" com "eles" dá a faísca que o "nós" evitaria.
Que podem, então, os jornalistas fazer? Não desfigurar a realidade, pelo exagero, pela difusão de temores através do que fica dito mesmo sem ser dito. Mas também não é aceitável desfigurar a realidade pela omissão daquilo que é importante para o entendimento.
Tivemos, recentemente, no DN, três exemplos de referências étnicas ou nacionais: há uns dias, as forças policiais capturaram, numa operação quase militar, uma quadrilha que se dedicava ao furto e ao roubo de cobre e chumbo das cablagens elétricas. A primeira notícia no online do DN foi desastrosa: falava em "gangue brasileiro" no título e, curiosamente, nada era dito no texto sobre a nacionalidade dos capturados. Protestou um leitor, reencaminhei a queixa e, numa operação fulminante - os jornalistas também conseguem, não são só as polícias... - o título foi corrigido.
No dia seguinte, a notícia descrevia em pormenor a operação, sem referências à nacionalidade no título, informando que os 11 elementos detidos são cidadãos brasileiros. É apenas um facto, mas ainda continuo com dúvidas sobre se era ou não relevante indicar a origem nacional dos capturados, porque a notícia não me dava elementos. São 11 brasileiros que já se conheciam no Brasil e que vieram com quadrilha formada? São brasileiros que se organizaram em Portugal, depois de se terem conhecido por razões de vizinhança ou parentesco? Ou foi apenas coincidência serem todos brasileiros? Na resposta a estas perguntas poderá estar a chave sobre se se devia ou não dizer que são cidadãos brasileiros.
Numa outra notícia, relatava-se o assassínio de alguém pelo seu primo, à porta de um centro comercial. A notícia foi escrita com cautela mas soaria a completamente disparatada se não houvesse a referência que tudo se passara no seio de uma comunidade cigana: uma foto, mostrando numerosas mulheres à porta de um hospital, todas elas envergando as roupas tradicionais dos ciganos, tornava ridículo que não se fizesse a identificação comunitária. E a autora da notícia recorreu a um expediente inteligente para dar o facto e o seu enquadramento: a vítima era muito respeitada na comunidade cigana. Ora aí está uma solução acertada e elegante.
Certas referências étnicas ou comunitárias podem ser essenciais numa notícia: um tiroteio às claras entre duas famílias pode ser raro, mas não é invulgar em comunidades ciganas e albanesas - onde a moral coletiva dominante chega a mobilizar clãs para lutas fratricidas tendo a "honra" como pretexto ou pano de fundo. É verdade que nem todos os ciganos ou albaneses se andam a matar em campo aberto por questões de "honra", será mesmo uma ínfima minoria. Mas não é menos verdade que, se houver um tiroteio desses, a probabilidade de ser um confronto entre famílias ciganas ou albanesas é a maior: o tiroteio entre duas famílias burguesas da Avenida de Roma dava tema para romance e telenovela!
Nesta última quinta-feira, o DN noticiava o início de um julgamento de um duplo filicídio sórdido: uma mãe, confessadamente com desejo de vingança do marido e da sogra, terá ensaiado e depois matado os seus dois filhos bebés, provocando um incêndio no quarto das crianças que as intoxicou mortalmente.
Por diversas vezes - nomeadamente no pós-título da notícia - a arguida é identificada como "mãe brasileira". Numa pequena nota ao lado da notícia principal, é referido que terá alegado que havia seis anos que não via a família no Brasil e que o marido não autorizava que ela fosse ao seu país natal com os filhos, que tinham dois anos e meio e onze meses em dezembro, altura em que foram mortos. Mas a própria nota relativizava aquela suposta saudade familiar, referindo que a mãe da arguida tinha vindo a Portugal no ano passado.
Tudo isso, no entanto, não justifica a identificação da pessoa como "mãe brasileira": não consta que no código genético dos brasileiros, nos seus costumes ou nas suas crenças haja alguma coisa que diga que quando uma mãe é contrariada porque não pode voltar à sua terra, zás!, mata os filhos. O DN pode ter entendido que havia algum acréscimo de informação com a referência à origem nacional da visada na notícia. Mas decerto a relevância não era tanta que justificasse a sua inserção no pós-título, que pertence à área do título.
Não sou capaz de formular qualquer regra sobre esta matéria que vá mais longe do que isto: é preciso analisar caso a caso e é necessário que a referência étnica seja, de facto, relevante para o entendimento da notícia. A prudência deve ser redobrada se se pensar em colocar tal referência na área do título. Nunca devemos esquecer que um título é uma notícia gritada num megafone - e o ruído é tal que nos pode atrapalhar o juízo.
Diário de Notícias, 22 de Junho de 2013
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