A
expressão deste “pensamento” não resulta já da reflexão sobre a complexidade do
sistemajurídico e da sua relação com a vida político-económica, que o cria,
condiciona e modifica
A discussão sobre o valor que a Constituição encerra para a vida e
para os destinos dos portugueses e do país tem revelado o grau de “colonização”
dos nossos intelectuais – neles se incluindo alguns juristas – por um estilo de
pensamento e expressão efémeros, mais próprios da opinião desenvolvida nas
redes mediáticas instantâneas, que tanto cultivam.
O seu nível é, por conseguinte,
confrangedoramente simplista, tanto do ponto de vista da elaboração da análise
política, como, inclusive, jurídica, não conseguindo sequer autonomizar--se
visivelmente do simples comentário radiofónico e televisivo ou de um post na
net.
A expressão deste “pensamento” não
resulta já da reflexão sobre a complexidade do sistema jurídico e da sua
relação com a vida político-económica, que o cria, condiciona e modifica.
Apenas é capaz de exprimir a justificação casuística das medidas fragmentárias
com que a “política” actual sustenta um modelo económico e social que, não se
sabendo já como e para onde se move, sobreviveu, se renovou e se impõe de novo
com toda a sua força bruta.
Alheados já de qualquer narrativa
política coerente, desinteressados até dos fins de uma economia – antes
política, mas agora só gestionária –, tais “pensadores”, que apenas podem assim
ser chamados em virtude das obras que anteriormente produziram na busca de um
sentido para a justiça, o direito, a lei e o uso transformador que deles
queriam fazer num quadro democrático e que a vontade de um povo (soberano no
seu país) exigia; tais “pensadores”, dizia, pretendem relativizar e enquadrar
agora a Constituição na esquadria maleável de um “direito” global, espontâneo e
não sistémico, que os mercados, ou algumas instituições internacionais (por
eles) produzem, rapidamente volatilizam e ininterruptamente reconstroem.
Tais comentários sobre o “valor” da
Constituição face à “crise” e às medidas que supostamente a hão-de combater,
poderão, parodicamente, inspirar-se, assim, na expressão crítica de Gunther
Teubner (2010): “Tomando em consideração a pluralidade descoordenada de órgãos
de decisão jurídica organizados descentralizadamente, a pergunta sobre qual a
norma aplicável só pode ser respondida, agora de maneira inequívoca, quando se
tenha decidido o caso concreto.”
Bloqueados num vazio de princípios e
objectivos vitais, entendem por isso hoje que a Constituição não se destina
afinal a orientar a acção política corrente e a contê-la nos trilhos desejados
pela comunidade que a celebrou como pacto social essencial, antes servirá para
a “justificar” perante ela.
Segundo o mesmo autor, acontece que
assim “O limite entre o legal e o ilegal fixa-se (necessariamente) ‘de forma
arbitrária’, sem uma adequada fundamentação científica. Ao mesmo tempo, os
aspectos políticos, morais e económicos adquirem um enorme peso.”
Não admira, pois, que “inovações
jurídicas”, moldadas em conceitos mediático-políticos, como é o caso recente do
chamado “estado de emergência económica”, possam ser consideradas “realidades
jurídico-constitucionais” válidas no debate “jurídico-científico” actual,
assumindo-se mesmo como justificativas ilimitadas das soluções concretas
determinadas pelos mercados e por aqueles que, nacional ou internacionalmente,
agem “politicamente” no seu interesse.
Só que esta relativização da
Constituição e da lei conduzirá, mais cedo do que tarde, à irrelevância da
própria ordem jurídica, com todos os problemas sociais – e também económicos –
que daí inevitavelmente decorrerão.
Jurista e presidente da MEDEL
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