terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Justiça territorial, já

PAULO RANGEL 
Público - 29/01/2013 - 00:00
A experiência mostra que um dos efeitos mais comuns da austeridade é o reforço inusitado do centralismo
1. A Região Norte é a região mais pobre de Portugal e uma das mais pobres da Europa. Vou escrever isto outra vez: a Região Norte é a região mais pobre de Portugal e uma das mais pobres da Europa. Vou escrever isto uma terceira vez: a Região Norte é a região mais pobre de Portugal e uma das mais pobres da Europa.
2. Há muitas e boas razões para defender a equidade territorial. Há razões de justiça, de justiça para com os portugueses, não os dividindo em cidadãos de primeira e de segunda, num mirífico Portugal a várias velocidades. Razões de justiça, portanto. Há também razões de estratégia e geopolítica. Um território desequilibrado e desguarnecido, acantonado num "mega-centro" urbano, está mais exposto e é francamente vulnerável, não resistindo às ameaças perenes. Razões políticas, por conseguinte. Há ainda razões económicas e ecológicas. Um espaço de grandes diferenças e grossas assimetrias gera tensões sociais, fomenta distorções de recursos, promove desregulações agrícolas, florestais e ambientais. Subsistem razões económicas e razões ecológicas, com efeito. Há razões de qualidade de vida. A concentração excessiva faz do quotidiano do centro um inferno nada palpitante e deixa o dia-a-dia das periferias numa rotina rasteira e entediante. Há puras razões de qualidade de vida, afinal. Há razões de credibilidade europeia e internacional. Não se pode ser o arauto da coesão e da solidariedade em Bruxelas, usando para tanto as estatísticas das regiões nacionais mais deprimidas, e coetaneamente fomentar uma descarada concentração de recursos, que alimenta a divergência no seio do todo nacional. Há razões de ética e credibilidade, enfim.
3. Há, na verdade, razões da mais variada índole para defender e pôr em prática um desígnio e um programa de justiça territorial. Mas a crise, a profunda crise que vivemos, é hoje o argumento - o argumento principal, o argumento de tomo - para propor, pedir, reivindicar e exigir justiça territorial.
O actual Governo tem, com grande incompreensão e com atendível insatisfação, executado um duríssimo programa de austeridade e sacrifício. Tem, muitas vezes acossado com o labéu de professar uma ideologia "assistencialista" e "caritativa", tentado poupar o mais possível as camadas mais fragilizadas da população. Na realidade, compelido a distribuir e dispersar os enormes sacrifícios até aos umbrais da mais baixa das classes médias, o Governo tem sistematicamente procurado não tocar os estratos mais pobres, que são, como todos sabemos, verdadeiramente pobres.
Este princípio de acção, válido para a esfera atomística da justiça familiar e individual, não pode deixar de prevalecer também na dimensão mais estrutural do território. Um Governo que pretende salvaguardar as franjas mais desprotegidas da população não pode, pura e simplesmente, ignorar a sua inserção espacial ou territorial. Uma política de distribuição da austeridade que faça tábua rasa da dimensão territorial acaba por atingir duplamente os mais pobres, os mais carenciados. Não pode haver uma justa distribuição dos sacrifícios que ignore ou despreze a prevalência regional da pobreza.
4. A experiência - aí incluída a experiência portuguesa - mostra que um dos efeitos mais comuns dos programas de austeridade é o reforço inusitado do centralismo. Por um lado, porque os centros de poder avocam a si as mais ínfimas e irrelevantes decisões, na ânsia de tudo frenar e controlar. Por outro lado, porque, desconhecendo as realidades locais e regionais, tudo o que por ali mexa lhes parece despiciendo e dispensável. Em muitas situações, as decisões de paralisia e corte revelam-se contraproducentes, pois o acréscimo de burocracia central e a desvitalização das economias locais são amiúde fonte de mais despesa, lá onde centralmente se supunha residir uma choruda bolsa de poupança.
Acresce a esse efeito "automático", nem sempre voluntário, que não falta quem aproveite a conjuntura de escassez e de rigor para, com esse preciso pretexto, legitimar a visão centralista e unipolar que sempre teve. A invocação da contingência de austeridade e contenção orçamental serve, pois, de justificação exemplar para levar a efeito o enfraquecimento e o desmantelamento dos mais diversos pólos de afirmação regional e local.
5. É por causa deste pano de fundo que, em matéria de equidade territorial não podemos baixar os braços. É preciso pedir e exigir justiça territorial.
Primeiro, porque a falta de critérios territoriais de distribuição dos sacrifícios origina um duplo gravame para os cidadãos das regiões mais pobres. Não é a mesma coisa cortar 10% numa região cujos índices, em termos de PIB, apontam para 100% da média europeia ou numa região cujos índices pouco excedem os 60%. Não está em jogo, como é óbvio, tratar diferentemente cidadãos em circunstâncias idênticas, só por causa da sua proveniência regional. Trata-se, isso sim, de não tratar as regiões - no que aos factores estruturais de desenvolvimento e atracção diz respeito - por igual, quando elas apresentam enormes disparidades em sede de progresso económico e social. Eis o que explica bem o caso das portagens, da RTP, do porto e aeroporto, da Casa da Música, a norte do país.
Segundo, porque a alteração estrutural da despesa que agora se prepara, com base nos relatórios pedidos ao FMI e à OCDE, não pode deixar de incorporar uma visão quanto ao desenvolvimento regional e à coesão territorial. Eis uma oportunidade única para fazer política em ordem à justiça territorial.
Talvez a maioria dos decisores ainda não se tenha dado conta. Mas quem vive e respira fora do centro já percebeu. Chegou o tempo da justiça territorial. Agora. Já.
Eurodeputado (PSD). Escreve à terça-feira paulo.rangel@europarl.europa.eu

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