quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Na Abertura do Ano Judicial


«A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.»
Artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa

Celebra-se hoje a Abertura do Ano Judicial, com a habitual cerimónia protocolar e o seu cortejo de discursos e declarações de circunstância. Os meios de comunicação social dar-lhe-ão a habitual cobertura noticiosa e os jornais de amanhã darão nota de um ou outro episódio e de alguma declaração feita para os títulos de primeira página. Em dois dias, porém, tudo será esquecido e a ditadura da «crise» voltará a monopolizar as atenções e as exauridas energias dos cidadãos.
Pensamos, contudo, que há bons motivos para assinalar esta data com o relevo e a atenção que ela merece. Como outros sectores do Estado, a Justiça encontra-se numa encruzilhada e todos os que a prezam como um dos valores mais elevados da vida em sociedade – não há sociedade livre sem Justiça, e seguramente também não há democracia sem ela –, começando pelos profissionais do sector e terminando nos cidadãos em geral, estão preocupados e não podem assistir inactivos ao avolumar dos riscos que os tempos que vivemos fazem pender sobre ela. E, por isso, rejeitam tanto os exercícios de auto-satisfação, como a crítica desbragada, tecidos ao sabor das conveniências e das circunstâncias, que, por vezes, nem assentam em diagnósticos correctos, nem se traduzem em projectos exequíveis para a melhoria da prestação de serviços de Justiça aos cidadãos.
Há bons motivos para assinalar esta data com atenção: há muitas coisas que funcionam com qualidade e celeridade no Sistema de Justiça, mas também há muitas razões para protesto e insatisfação.
De protesto, desde logo, quanto à via seguida pelo Governo para reequilibrar as contas públicas, que nunca procurou ser conforme à Constituição e seus princípios, nomeadamente o da igualdade, e que, como a do Governo anterior, propositadamente tem provocado cisões na nossa sociedade, incentivando e alimentando fracturas entre os sectores público e privado, entre jovens e reformados, entre empregadores e trabalhadores, entre empregados e desempregados, enfim, sempre colocando parte da sociedade contra outra parte.
De protesto, pois, pelo desrespeito despudorado pela Lei Fundamental do país, apresentada como causa da crise e obstáculo à sua superação, crise essa que tudo justifica, que tudo legitima, cuja verdadeira origem está no poder financeiro e económico desregulado que domina a Europa e os seus governantes, que subjuga e ignora os princípios e fundamentos do Estado de Direito e a intangibilidade da soberania de cada Estado e da dignidade de cada pessoa.
De protesto, também, por continuarmos a ter uma Justiça de difícil acesso, cada vez mais cara em termos de custas judiciais e muitas vezes ilegível e incompreensível para os cidadãos. Uma Justiça onde, por isso, tal como na sociedade em geral, se cavam com frequência condições de profunda desigualdade em razão do poder económico dos litigantes.
De protesto por uma Justiça onde continua a grassar a desorganização em muitos serviços, onde, ao longo de décadas, se têm sucedido reformas legislativas em cima de reformas legislativas, normalmente incompletas, sem cuidar devidamente da sua preparação e implementação, onde, por via disso, há legislação convenientemente obscura e contraditória, e onde afinal permanece em muitos sectores a carência de meios mínimos necessários para que os profissionais do sector – os magistrados, os advogados e os funcionários judiciais – desempenhem o serviço público que lhes está cometido com eficácia e dignidade.
De protesto porque, apesar das reformas em curso e de outras anunciadas, é preocupante amenorização a que o estatuto da Justiça tem vindo a sofrer quando confrontado com outras áreas governativas, podendo isso pôr em causa o papel que a Constituição lhe comete: o de ser uma instituição republicana fundamental de regulação social e prestadora de um serviço público democrático.
Razões de protesto, ainda, pelo adensar das nuvens que pairam sobre a própria ideia de Justiça enquanto Valor, acossada por «novas» ideias que a pretendem acantonar numa lógica de «racionalização» que mais não é do que a importação das teorias e práticas de gestão quantitativas e produtivistas da actividade económica e industrial para um sector que tem de ser encarado com outra sensibilidade e bom senso, tendo presente o fortíssimo envolvimento humano que é exigido a todos os que aí trabalham.
De protesto ainda pela degradação progressiva, mas substancial, do estatuto socioprofissional de todos os magistrados, numa ofensiva a direitos decorrentes do trabalho sem precedentes no Portugal democrático e que é susceptível de comprometer de forma grave o princípio da separação e equilíbrio dos poderes do Estado, e mesmo ameaçar a serenidade e a tranquilidade de ponderação dos responsáveis pelas decisões processuais.
De protesto também pela crescente tendência para subtrair ao domínio da actividade pública, nomeadamente aos tribunais, tarefas que só ela pode desempenhar de forma eficiente, transparente e com garantias de isenção.
Recusamos, também, o pessimismo derrotista da frase batida de que «a justiça não funciona…» que aliás frequentemente se refere mais à necessidade de Justiça Social do que à Justiça que se pratica nos tribunais. Há muitas coisas que funcionam com qualidade e celeridade no Sistema de Justiça em Portugal. 
Mas as sociedades mudam e com elas as suas instituições, e os valores que as colectividades prosseguem vão-se também aperfeiçoando com o tempo. O Portugal de hoje coloca novos problemas ao Sistema de Justiça – como aliás acontece um pouco por todo o mundo –, que têm de ser encarados com determinação, consciência da sua importância e utilização inteligente dos meios existentes para os resolver. Porque o Sistema de Justiça tem de aprofundar a sua matriz constitucional universalista, igualitária e estar ao serviço do interesse comum.
O Sistema de Justiça deve ser o primeiro esteio de afirmação dos direitos humanos, dos direitos de cidadania e das liberdades, e combater as suas violações, venham elas de onde vierem e independentemente da aparência mais ou menos «legal» que apresentem.
Neste dia, em que solenemente é anunciada a abertura do ano judicial a todos os cidadãos, destinatários e fundamento da legitimidade do poder judicial, queremos reafirmar o nosso compromisso de, nas diferentes áreas de intervenção do Ministério Público, em especial nas sociais, sempre buscarmos uma Justiça com maior qualidade e celeridade, assim dando efectividade prática aos direitos consagrados na Constituição e na Lei.
Mas também queremos dar corpo à voz de todos os magistrados que, de forma abnegada e apesar de todos os obstáculos e por vezes falta de reconhecimento público, continuam a acreditar que é possível uma justiça melhor e efectiva, que é imprescindível manter a dignidade de uma profissão que constitui alicerce fundamental de uma sociedade livre e protectora de todos os cidadãos, reequilibrando desigualdades, reajustando objectivos, reforçando direitos e reabilitando a confiança em si própria; queremos dar visibilidade a todos aqueles que, anualmente, nesta cerimónia, todos citam e muitos criticam, mas que poucos conhecem quanto ao modo esforçado e empenhado com que diariamente exercem as suas funções. Desta vez decidimos, de forma simbólica, exercer o direito inalienável à indignação, também nisso contribuindo de forma construtiva para a mudança!
Estamos e estaremos sempre envolvidos de corpo e alma na afirmação da Justiça e na sua realização. Porque, afinal, nos termos constantes do artigo 202.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa:
«Os tribunais são os órgãos de justiça com competência para administrar a justiça em nome do povo.» 

A Direcção do SMMP
30 de Janeiro de 2012

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