«A todos é assegurado o acesso ao direito e aos
tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não
podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.»
Artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
Artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
Celebra-se
hoje a Abertura do Ano Judicial, com a habitual cerimónia protocolar e o seu
cortejo de discursos e declarações de circunstância. Os meios de comunicação
social dar-lhe-ão a habitual cobertura noticiosa e os jornais de amanhã darão
nota de um ou outro episódio e de alguma declaração feita para os títulos de
primeira página. Em dois dias, porém, tudo será esquecido e a ditadura da
«crise» voltará a monopolizar as atenções e as exauridas energias dos cidadãos.
Pensamos,
contudo, que há bons motivos para assinalar esta data com o relevo e a atenção
que ela merece. Como outros sectores do Estado, a Justiça encontra-se numa
encruzilhada e todos os que a prezam como um dos valores mais elevados da vida
em sociedade – não há sociedade livre sem Justiça, e seguramente também não há
democracia sem ela –, começando pelos profissionais do sector e terminando nos
cidadãos em geral, estão preocupados e não podem assistir inactivos ao avolumar
dos riscos que os tempos que vivemos fazem pender sobre ela. E, por isso,
rejeitam tanto os exercícios de auto-satisfação, como a crítica desbragada,
tecidos ao sabor das conveniências e das circunstâncias, que, por vezes, nem
assentam em diagnósticos correctos, nem se traduzem em projectos exequíveis
para a melhoria da prestação de serviços de Justiça aos cidadãos.
Há
bons motivos para assinalar esta data com atenção: há muitas coisas que
funcionam com qualidade e celeridade no Sistema de Justiça, mas também há
muitas razões para protesto e insatisfação.
De protesto,
desde logo, quanto à via seguida pelo Governo para reequilibrar as
contas públicas, que nunca procurou ser conforme à Constituição e seus
princípios, nomeadamente o da igualdade, e que, como a do Governo anterior,
propositadamente tem provocado cisões na nossa sociedade, incentivando e
alimentando fracturas entre os sectores público e privado, entre jovens e
reformados, entre empregadores e trabalhadores, entre empregados e
desempregados, enfim, sempre colocando parte da sociedade contra outra parte.
De protesto,
pois, pelo desrespeito despudorado pela Lei Fundamental do
país, apresentada como causa da crise e obstáculo à sua superação, crise essa
que tudo justifica, que tudo legitima, cuja verdadeira origem está no poder
financeiro e económico desregulado que domina a Europa e os seus governantes,
que subjuga e ignora os princípios e fundamentos do Estado de Direito e a
intangibilidade da soberania de cada Estado e da dignidade de cada pessoa.
De protesto,
também, por continuarmos a ter uma Justiça de difícil acesso, cada
vez mais cara em termos de custas judiciais e muitas vezes ilegível e
incompreensível para os cidadãos. Uma Justiça onde, por isso, tal como na
sociedade em geral, se cavam com frequência condições de profunda desigualdade
em razão do poder económico dos litigantes.
De protesto por
uma Justiça onde continua a grassar a desorganização em muitos serviços,
onde, ao longo de décadas, se têm sucedido reformas legislativas em
cima de reformas legislativas, normalmente incompletas, sem cuidar
devidamente da sua preparação e implementação, onde, por via disso, há legislação
convenientemente obscura e contraditória, e onde afinal permanece em muitos
sectores a carência de meios mínimos necessários para que os
profissionais do sector – os magistrados, os advogados e os funcionários
judiciais – desempenhem o serviço público que lhes está cometido com eficácia e
dignidade.
De protesto porque,
apesar das reformas em curso e de outras anunciadas, é preocupante amenorização
a que o estatuto da Justiça tem vindo a sofrer quando confrontado com
outras áreas governativas, podendo isso pôr em causa o papel que a Constituição
lhe comete: o de ser uma instituição republicana fundamental de regulação
social e prestadora de um serviço público democrático.
Razões
de protesto, ainda, pelo adensar das nuvens que pairam
sobre a própria ideia de Justiça enquanto Valor, acossada por «novas»
ideias que a pretendem acantonar numa lógica de «racionalização» que mais não é
do que a importação das teorias e práticas de gestão quantitativas e
produtivistas da actividade económica e industrial para um sector que tem de
ser encarado com outra sensibilidade e bom senso, tendo presente o fortíssimo
envolvimento humano que é exigido a todos os que aí trabalham.
De protesto ainda
pela degradação progressiva, mas substancial, do estatuto
socioprofissional de todos os magistrados, numa ofensiva a direitos
decorrentes do trabalho sem precedentes no Portugal democrático e que é
susceptível de comprometer de forma grave o princípio da separação e equilíbrio
dos poderes do Estado, e mesmo ameaçar a serenidade e a tranquilidade de
ponderação dos responsáveis pelas decisões processuais.
De protesto também
pela crescente tendência para subtrair ao domínio da actividade pública,
nomeadamente aos tribunais, tarefas que só ela pode desempenhar de forma
eficiente, transparente e com garantias de isenção.
Recusamos,
também, o pessimismo derrotista da frase batida de que «a justiça não
funciona…» que aliás frequentemente se refere mais à necessidade de Justiça Social
do que à Justiça que se pratica nos tribunais. Há muitas coisas que
funcionam com qualidade e celeridade no Sistema de Justiça em Portugal.
Mas
as sociedades mudam e com elas as suas instituições, e os valores que as
colectividades prosseguem vão-se também aperfeiçoando com o tempo. O Portugal
de hoje coloca novos problemas ao Sistema de Justiça – como aliás acontece um
pouco por todo o mundo –, que têm de ser encarados com determinação,
consciência da sua importância e utilização inteligente dos meios existentes
para os resolver. Porque o Sistema de Justiça tem de aprofundar a sua matriz
constitucional universalista, igualitária e estar ao serviço do interesse
comum.
O
Sistema de Justiça deve ser o primeiro esteio de afirmação dos direitos
humanos, dos direitos de cidadania e das liberdades, e combater as suas
violações, venham elas de onde vierem e independentemente da aparência mais ou
menos «legal» que apresentem.
Neste
dia, em que solenemente é anunciada a abertura do ano judicial a todos os cidadãos,
destinatários e fundamento da legitimidade do poder judicial, queremos
reafirmar o nosso compromisso de, nas diferentes áreas de intervenção do
Ministério Público, em especial nas sociais, sempre buscarmos uma Justiça com
maior qualidade e celeridade, assim dando efectividade prática aos direitos
consagrados na Constituição e na Lei.
Mas
também queremos dar corpo à voz de todos os magistrados que, de forma abnegada
e apesar de todos os obstáculos e por vezes falta de reconhecimento público,
continuam a acreditar que é possível uma justiça melhor e efectiva, que é
imprescindível manter a dignidade de uma profissão que constitui alicerce
fundamental de uma sociedade livre e protectora de todos os cidadãos,
reequilibrando desigualdades, reajustando objectivos, reforçando direitos e
reabilitando a confiança em si própria; queremos dar visibilidade a todos
aqueles que, anualmente, nesta cerimónia, todos citam e muitos criticam, mas
que poucos conhecem quanto ao modo esforçado e empenhado com que diariamente
exercem as suas funções. Desta vez decidimos, de forma simbólica,
exercer o direito inalienável à indignação, também nisso contribuindo de forma
construtiva para a mudança!
Estamos e estaremos sempre envolvidos de corpo e alma
na afirmação da Justiça e na sua realização. Porque, afinal, nos termos constantes do artigo
202.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa:
«Os tribunais são os órgãos de justiça com
competência para administrar a justiça em nome do povo.»
A Direcção do SMMP
30 de Janeiro de 2012
30 de Janeiro de 2012
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