quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Metade dos deputados acumula funções com o privado

Na abertura oficial de mais um ano Parlamentar, a crise política e económica dominará as atenções dos deputados, que têm resistido a olhar a fundo para o seu próprio estatuto e regime de incompatibilidades. Mais de metade dos deputados trabalhará também no privado. Podem fazê-lo. Mas será que devem?
Os 230 deputados voltam hoje a arregaçar as mangas, num País que continua agrilhoado ao programa de assistência financeira e mergulhado numa crise política e social. O momento de emergência nacional tem afastado do debate político a questão das incompatibilidade dos deputados, mas é também em alturas de crise que as provas de transparência mais se impõem por parte dos órgãos de soberania, em quem a população confere legitimidade democrática.
Mendes Bota, deputado socialdemocrata que preside à Comissão de Ética, está entre os que assumem a urgência de se aumentar o grau de exigência nas incompatibilidades e impedimentos dos deputados mas duvida "que haja força política para o fazer. Argumenta-se que nunca é oportuno este debate. A crise dá boa desculpa. Há outras prioridades. Discordo". O tema está lançado.
Exclusividade, sim ou não?
Em Portugal os deputados podem acumular funções de soberania com trabalho no sector privado, havendo mesmo quem consiga ser deputado e trabalhador a tempo inteiro noutros sectores. Mendes Bota precisa que são 117 os deputados nesta situação, o que significa que sensivelmente mais de metade tem pelo menos duas profissões. Na contagem feita pelo Negócios, a maioria está envolvida na advocacia e ligada ao meio empresarial. Metade dos 66 deputados com formação jurídica exerce advocacia, um grupo ao qual se vêm juntar 84 deputados com interesses patrimoniais ou laborais em empresas privadas, quer seja através de participações financeiras, quer seja no exercício de funções de administradores ou de quadros.
Trata-se de um retrato muito diferente do que vigora em Espanha, onde a incompatibilidade é total. Segundo os estatutos do Senado espanhol consultados pelo Negócios, os deputados e senadores exercem em "regime de dedicação absoluta", sendo a função "incompatível com o desempenho de qualquer outro posto, profissão ou actividade, públicos ou privados, por conta própria ou por conta de outrem, retribuídos (...) de qualquer forma". É também um retrato muito diferente do que vigora no Parlamento Europeu onde, segundo garante o eurodeputado Correia de Campos, "há regras muito restritivas sobre exclusividade" e onde as incompatibilidades são muito escrutinadas.
Para José Luís Ferreira, do PEV (Os Verdes), um dos deputados que optou por sê-lo a tempo inteiro, não é possível conceber a função de outra forma "Um mandato parlamentar deve ser a actividade principal dos que são eleitos", até pela disponibilidade de tempo que exige.
Também Eduardo Teixeira, do PSD, suspendeu as funções de director bancário para ser deputado a tempo inteiro. Dizendo não se tratar de qualquer incompatibilidade - aliás também José Luís Ferreira diz que a função de advocacia não é incompatível -, Eduardo Teixeira pediu exclusividade "pelo facto de desempenhar funções públicas intensas". Ao Negócios, o deputado, residente em Viana do Castelo, assume que não seria possível coordenar as duas actividades, ainda para mais estando a tantos quilómetros da residência.
Há vários casos de deputados que suspenderam as suas actividades privadas quando foram eleitos. Na análise que o Negócios fez a todos os registos de interesse encontram-se casos desses em áreas de actividade tão diversas como a gestão bancária, a advocacia ou o ensino. A actividade de deputado determina a existência de trabalhos parlamentares entre terça e quinta-feiras, deixando-se para as segundas e sextas o contacto com o eleitorado.
Incompatibilidade até onde?
Os deputados têm acumulações proibidas. Não podem, por exemplo, juntar com a Presidência da República, com a governação (nacional ou regional), nem com o Parlamento Europeu. Também não podem acumular com a magistratura ou com o cargo de embaixador. Outras tantas incompatibilidades, como não pertencerem à Comissão Nacional de Eleições ou com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, estão definidas. No poder local, não podem ser presidente, vice-presidente vereador a tempo inteiro ou a meio tempo nas câmaras. No entanto, verifica-se que muitos deputados exercem funções nas assembleias municipais ou nas Juntas de Freguesia, o que já é legal. Quanto às incompatibilidades na carreira de gestão inclui-se o de ser membro do conselho de gestão de empresa pública, de empresa de capitais públicos ou maioritariamente participada pelo Estado e de instituto público autónomo.
Para José Luís Ferreira, as incompatibilidades deviam ser alargadas às empresas onde o Estado detenha capital, qualquer que seja a percentagem. "Ganharia a transparência e haveria um reforço de separação do poder político".
Mendes Bota é um dos apologistas da extensão das incompatibilidades, "no mínimo" abrangendo a consultoria, assessoria e patrocínio ao Estado, Regiões Autónomas, autarquias e demais pessoas colectivas, sociedades com capitais públicos, concessionários de serviços públicos, empresas concorrentes a concursos públicos. Se esta extensão fosse feita, muitos deputados teriam de abdicar. Há deputados que trabalham, por exemplo, no Banco Espírito Santos, assessor do Estado em alguns privatizações. Ou em sociedades de advogados, como a Morais Leitão, Galvão Teles e Associados.
O caso dos advogados suscita uma discussão particular. Marinho e Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, não tem dúvidas: "Quem exerce funções de soberania na área legislativa não pode estar a exercer uma actividade privada e remunerada por pessoas com interesses nessas leis. Além de imoral, é uma subversão completa das leis da concorrência entre escritórios de advogados".
Também Paulo Morais, da plataforma Transparência, que fala em incompatibilidades reais, aparentes ou potenciais, aponta o dedo às sociedades de advogados que diz ser "dos instrumentos mais perniciosos na actividade parlamentar", e por isso põe o carimbo: "Absolutamente incompatível". Paulo Morais tem denunciado vários casos, como o exemplo de sociedades de advogados que trabalham em escritórios que assessoram o Estado português na EDP.
Paulo Morais defende, por isso, que qualquer actividade com interconexão entre o Estado e interesses privados deveria ser proibida. E não está só. Marinho e Pinto, da Ordem dos Advogados, acompanha-o, considerando que "é preciso dignificar as funções de soberania". Correia de Campos também admite que preferia que "o erário público fosse sacrificado" para que a independência dos deputados ficasse garantida, porque uma coisa é certa: embora por cá a lei o permita, "é completamente impossível ser-se economista ou advogado de um grupo e deputado".
O regime de incompatibilidades no momento em que abandonam o Parlamento precisa também de ser afinado. Paulo Morais defende que o chamado "período de nojo" que os titulares de cargos públicos devem cumprir depois de deixarem essas funções deveria ser alargado dos actuais três anos para cinco, uma proposta em que é acompanhado por José Luís Ferreira.
Registo pouco pormenorizado
O registo de interesse dos deputados é público e está disponível no "site" do Parlamento. Contudo, para se avaliar os verdadeiros interesses dos deputados há que confrontar o registo no Parlamento com as declarações apresentadas no Tribunal Constitucional, obrigatória para todos os titulares de cargos públicos. Mas aqui o acesso formal não é de fácil acesso ao comum dos cidadãos.
Paulo Morais fala, pois, de informação "aparentemente pública". A falta de transparência é ainda reforçada pelo facto de muitos deputados referirem apenas ser gestores de empresas ou advogados, sem especificar onde. É por isso que Paulo Morais defende maior informação por parte dos deputados e, até, audições na Comissão de Ética, que deveria ter mais poderes, para confrontar com os eventuais conflitos de interesse. Ainda assim, este responsável deixa a reflexão. "O problema está na origem. Por que se nomeia quem tem conflitos nessa área?"
REGISTO DE INTERESSE
Os deputados são obrigados a entregar no início do mandato a declaração de interesses. Deve ser actualizada sempre que ocorram alterações. Mas da consulta aos registos, que são públicos e estão disponíveis na página da Internet do Parlamento, percebe-se que a informação prestada pode ser mais ou menos pormenorizada. Por isso, nem sempre é fácil perceber em que actividades estão os deputados envolvidos fora do Parlamento. O Estatuto dos Deputados obriga à inscrição num documento de todos os activos e actividades "susceptíveis de gerar impedimentos". Veja o que tem de constar do registo:
Últimos três anos
Cargos, funções e actividades, públicas e privadas, exercidas nos últimos três anos;
Função actuais
Cargos, funções e actividades, públicas e privadas, a exercer cumulativamente com o mandato parlamentar;
Interesses financeiros
Identificação dos actos que geram pagamentos de
a) Pessoas colectivas públicas ou privadas a quem foram prestados os serviços;
b) Participação em conselhos consultivos, comissões de fiscalização ou outros organismos colegiais ou no exercício de fiscalização ou controlo de dinheiros públicos;
c) Sociedades em cujo capital participe por si ou pelo cônjuge e bens;
d) Subsídios ou apoios financeiros, por si, pelo cônjuge e bens ou por sociedade em cujo capital participem;
e) Realização de conferências, palestras, acções de formação de curta duração e outras actividades de idêntica natureza.
f) Participação remunerada em comissões ou grupos de trabalho; Participação em associações cívicas beneficiárias de recursos públicos; Participação em associações profissionais ou representativas de interesses.
Deputados limitam mandatos, mas não os seus
Os presidentes das Câmaras Municipais e das Juntas de Freguesia não se podem recandidatar após três mandatos consecutivos. Uma regra imposta pelo poder legislativo, ou seja, pelos deputados, mas apenas para o poder local. Deveriam os deputados ter, também, esse limite? Correia de Campos, eurodeputado, considera que "a especialização parlamentar é muito importante".
Olhando para a sua experiência, acrescenta ter andado "aos papéis" no primeiro ano no Parlamento Europeu. "Sou favorável à continuidade parlamentar", de pelo menos 10 anos. Também Mendes Bota, presidente da Comissão de Ética, diz que a limitação não se deve aplicar a mandatos deliberativos, mas sim a cargos executivos que "mexem com muita gente, com muitos interesses e gerem a tesouraria por onde circula muito dinheiro". Paulo Morais, da plataforma Transparência, concorda com a limitação de mandatos para que haja substituição da classe política. Os Verdes, que votaram contra a limitação no poder local, consideram a medida uma ingerência na direcção partidária.
Em média, os actuais deputados estão a exercer o seu terceiro mandato, e este número só não é maior devido à grande mudança de rostos na bancada do PSD, onde a direcção do partido mudou também de orientação, com a entrada de Passos Coelho. Também no CDS/PP há alguns deputados estreantes.
Entre os históricos, Mota Amaral, ex-presidente do governo regional açoriano, ex-presidente do Parlamento, concorreu e foi eleito em todas as eleições legislativas: são 12 mandatos. Outro histórico são Miranda Calha do PS, e Arménio Santos, do PSD, no Parlamento desde 1976.
Alexandra Machado e Elisabete Miranda
Jornal de Negócios de 19-09-2012

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