sábado, 3 de novembro de 2012

Reportagem Homicídios conjugais aumentam por causa da crise

Quando o amor faz morrer. Número de homicídios conjugais está a aumentar
Especialistas defendem que a crise e o desemprego poderão explicar subida
ROSA RAMOS
Carla e Leonor nunca chegaram, provavelmente, a cruzar-se em vida E tão pouco devem ter imaginado que um dia viriam a partilhar a mesma frase inscrita no final das suas biografias. Morreram com nove dias de diferença, assassinadas a tiro pelos companheiros. Carla tinha 38 anos e o filho ao colo. Foi alvejada pelo namorado no dia 7 de Outubro, em Setúbal, a meio de uma discussão. Leonor, 76 anos, sofria de Alzheimer e foi morta pelo marido às 10 da manhã do dia 16 na pequena vivenda de pedra que partilharam durante décadas nos arredores de Melgaço.
Nos dois casos, os homicidas acabaram por se suicidar logo depois.
Os nomes de Carla e Leonor são os últimos a figurar na base de dados do Observatório de Mulheres Assassinadas – projecto coordenado pela organização não governamental Associação de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) – que, nos últimos anos, se tem dedicado a compilar e estudar as histórias de mulheres assassinadas em contexto conjugal com base em recortes de imprensa.
Este ano, segundo os dados recolhidos pelo observatório, já foram registados, até ao início de Outubro, pelo menos 33 homicídios e 31 tentativas de homicídio.
Ao longo de todo ano passado, ocorreram 27 mortes e 44 tentativas. “As estatísticas parecem mostrar que, de facto, os homicídios conjugais são os que mais têm aumentado”, confirma o antigo inspector da Polícia Judiciária (PJ) António Teixeira, ressalvando, no entanto, que se poderá tratar de um aumento “meramente sazonal”. Cristina Soeiro, a psicóloga da PJ que trabalha com casos de abusos sexuais e homicídios, prefere ser mais cautelosa e avisa que para se poder falar num aumento de um fenómeno em termos de criminalidade é preciso estudá-lo “durante pelo menos dez anos”. Mesmo assim, a especialista admite que este ano se verifica uma subida no número dos homicídios ocorridos em contexto conjugal.
Uma das razões que poderão explicar o aumento tem a ver, acredita António Teixeira, com a subida do desemprego e a própria crise económica. “Os casais passam mais tempo em casa e se já existir, na relação, um historial de violência e de conflito, a proximidade pode agudizar os problemas”, explica o antigo investigador. A questão da proximidade é, aliás, a explicação mais referida para o facto de as estatísticas revelarem que a maioria dos homicídios em contexto conjugal ocorre entre Maio e Novembro, com maior predominância nos meses de Verão – altura em que os casais tiram férias.
UM TERÇO DAS MORTES SÃO ENTRE CASAIS
A psicóloga íris Almeida, que participou num estudo envolvendo uma amostra de 125 casos de homicídios conjugais investigados pela PJ entre 2000 e 2010, também admite que a crise poderá estar relacionada com o aumento destes crimes. Nos últimos 11 anos foram assassinadas 278 mulheres – a maioria nos distritos de Lisboa, Porto e Setúbal. “Os números anuais têm-se mantido mais ou menos estáveis, embora 2008 tenha sido o ano em que se registaram mais casos. Em 2009 e 2010 houve um declínio, mas existe a percepção de que no ano passado e este ano se tem verificado um aumento significativo”, diz.
A psicóloga, responsável pelo estudo “Morrer no feminino”, recusa no entanto que a crise seja a causa directa que conduz a mais homicídios – apesar de admitir que possa ter influência “As relações que apresentam maiores riscos de violência são as mais precárias e aquelas em que quer a vítima quer o homicida estão desempregados”, explica. “O desemprego leva a uma maior convivência entre o casal e se já existir uma história de violência e de ameaças, as discussões poderão culminar mais facilmente no cenário de morte”, acrescenta a investigadora Além disso, conta fonte da PSP, estão a aumentar os casos de violência doméstica na sequência de discussões relacionadas com questões económicas. “A maioria das famílias atravessa problemas financeiros e há muitas situações de divórcio em que os cônjuges continuam a partilhar a mesma casa por falta de alternativas.”
Independentemente das motivações, as estatísticas mostram que um terço dos homicídios registados anualmente ocorrem entre marido e mulher. Um número que o próprio director-nacional adjunto da PJ considera “muito significativo”. Pedro do Carmo defendeu recentemente no seminário “Morrer no feminino: da Prevenção à Intervenção”, promovido pela Escola da Judiciária, que são precisas estratégias preventivas para combater o fenómeno: “Se porventura estivéssemos mais atentos, se os sinais fossem mais rapidamente percebidos, se a actuação fosse mais célere e eficaz talvez estas mortes pudessem ser evitada.” Pedro do Carmo alertou ainda para o facto de existir uma mudança no perfil dos homicidas. “Tenho a percepção de que estes crimes ocorrem em casais com idades cada vez mais jovens. Não é raro termos notícias de homicídios em namoros”, adiantou.
Mesmo assim, no ano passado o grupo etário entre o 36 e os 50 anos foi o que registou mais homicídios. Mais de metade (52%) das mortes foram provocadas com o recurso arma branca, 33% com arma de fogo, 7% com outros objectos comopás e machados -, enquanto que 8% das mulheres foram assassinadas por asfixia e estrangulamento. As estatísticas demonstram, por outro lado, que a residência continua a ser o espaço onde ocorre a maioria dos homicídios (93%).
HOMENS MATAM MAIS 
Quase sempre, os homicídios em contexto conjugal são praticados por homens. Um estudo desenvolvido no Instituto de Medicina Legal do Porto, feito a partir de autópsias, permitiu concluir que a violência conjugal é o crime que mais frequentemente (61%) vitima mulheres, traçando um retrato brutal de destruição que atinge toda a família As investigadoras Ana Rita Pereira e Teresa Magalhães concluíram que em 21% dos crimes havia crianças ou adolescentes a assistir à morte.
De qualquer forma, o psicólogo criminal Carlos Poiares acredita que, nos últimos anos, têm aparecido mais casos de mulheres agressoras e homicidas. “E também se nota que elas usam cada vez mais armas, enquanto que há uns anos, até por uma questão de terem menos força física, optavam por métodos mais suaves”, acrescenta o ex-inspector da Judiciária António Teixeira. “Normalmente, as mulheres usam meios mais insidiosos, vão matando aos bocadinhos. Neste aspecto são mais frias, mais calculistas e são até mais difíceis de interrogar”, garante um outro inspector da Judiciária já reformado. Cristina Soeiro acrescenta que a criminalidade violenta “é sempre mais expressiva nos homens”.
O que se explica não só pela força física, mas também por questões orgânicas e bioquímicas. “Os homens têm, por exemplo, maior probabilidade de desenvolver psicopatias”, explica a psicóloga da PJ.
Elizabete Brasil, directora executiva para a área da violência da UMAR, prefere atribuir a maior prevalência de crimes desta natureza contra mulheres às questões culturais. “Ainda vivemos numa sociedade patriarcal, em que as mulheres são entendidas como sendo o elo mais fraco e como um objecto de posse”, diz.
Por isso, a UMAR defende ser preciso apostar mais em estratégias de prevenção primária para que, a médio-longo prazo, os homicídios conjugais possam diminuir. “Há que educar os jovens e as crianças para que percebam que o estereotipo da mulher enquanto propriedade do homem não é aceitável”, defende a responsável.
As estatísticas revelam que quando matam, as mulheres fazem-no mais frequentemente em casa (57,7% dos casos) que os homens – que optam muitas vezes pelos locais públicos. No entanto, segundo o estudo “Homicídio e doença mental” apresentado na Universidade de Ciências Médicas de Lisboa pelos psicólogos Margarida Oliveira e Rui Abrunhosa Gonçalves, quando eles cometem o crime dentro de portas, escolhem quase sempre a casa da vítima (34,1%).
PERFIL 
A investigação levada a cabo pela psicóloga Íris Almeida permitiu concluir que as vítimas têm, por norma, entre os 17 e os 80 anos e os agressores entre os 20 e os 80. A maioria dos 125 casais estudados (52,8%) tinham uma relação conjugal, 15,2% viviam em união de facto, 10,4 eram ex-companheiros, 6,4% amantes, 5,6% ex-cônjuges, 5,6% ex-namorados e 4% namorados. Quase metade (48,8%) estavam em processo de separação e 16% tinham filhos de relacionamentos anteriores. “Genericamente, podemos falar em quatro perfis distintos de homicidas”, explica a investigadora.
No primeiro grupo enquadram-se os homicidas que se suicidam após cometerem o crime. Muitas vezes, além de matarem a companheira, estes homicidas assassinam também outros membros da família, geralmente os filhos. “É comum que exista um histórico de depressão, consumo de álcool ou medicamentos”, conta íris Almeida Neste perfil encaixam-se os agressores mais velhos, normalmente movidos por perturbações do foro psicológico.
António Teixeira recorda-se de um caso que obrigou os inspectores da PJ dar voltas à cabeça. Num vivenda, foram encontrados três cadáveres deitados no chão: um casal e o filho de ambos. A casa estava remexida e tudo apontava para que se tratasse de um assalto. Mas um pequeno frasco, completamente vazio e sem rótulo, chamou a atenção dos investigadores. Mais tarde, os exames toxicológicos vieram a revelar a presença de um pesticida no corpo do homem. Afinal não se tratava de um triplo homicídio, mas de um duplo homicídio seguido de suicídio. O homem esfaqueou a mulher, sufocou o filho e depois cortou-se com a faca, antes de ingerir o pesticida.
O segundo perfil engloba os homicidas que agem em contexto de relações íntimas. “São indivíduos que já têm um histórico de violência na relação, muitos já têm registo criminal por violência doméstica”, explica a psicóloga. Também aqui se encontra frequentemente associado o consumo de álcool. Nestes casos, os homicídios acontecem muitas vezes no seguimento de discussões e com o recurso a armas brancas que estejam à mão.
Foi precisamente durante uma discussão que um engenheiro da Portucel matou a mulher, em 2002, depois de descobrir que andava a ser enganado.
Quando ela chegou a casa, confrontou-a com as suspeitas e ela não negou. Mais tarde, já no tribunal, o homem viria a confessar como a matou. “Disse-me que tinha estado com ele e eu senti-me… senti-me com inveja, enjoado, revoltado. (…) Disse-me que já tinham tido relações naquela cama. Eu… eu perdi o controlo… Senti o raciocínio perturbado… Nunca tinha ficado naquele estado… E… e… o meu impulso foi fazer… foi parar aquela tortura. Só. quando levantei os olhos e vi o quarto da minha filha através da porta percebi que ela tinha perdido a mãe e o pai naquele instante. Ela já não apresentava sinais de vida”, lê-se no processo a que o i teve acesso.
Neste caso não havia registo de agressões anteriores, mas Cristina Soeiro revela que a análise aos casos investigados pela PJ mostra que, no momento do homicídio, 17% dos agressores já tinham cadastro por violência doméstica e que em 32% das relações que acabaram em morte já havia historial de agressões.
No terceiro grupo-tipo surgem os homicidas movidos por questões relacionadas com separações. “São pessoas que não aceitam o fim de uma relação e que a vítima tente afastar-se”, sublinha íris Almeida É aqui que se encontram os criminosos mais jovens e, normalmente, com empregos precários. “São mortes associadas à noção de poder e de controle”, acrescenta Cristina Soeiro.
“Normalmente, o homicídio não acontece logo a seguir à ruptura, mas tempos depois, geralmente quando a vítima arranja um novo relacionamento. O sentimento de posse e a rejeição são, aliás, as principais motivações dos crimes em contexto conjugal. O amor torna-se num objecto de obsessão e o homicida acredita que se aquela pessoa não é para ele não poderá ser para mais ninguém”, diz António Teixeira. Neste perfil encaixa, por exemplo, a história de um casal de africanos muito jovem da zona de Coimbra, investigada pela PJ há uns anos. Depois da separação, ela saiu de casa. Voltou algum tempo depois, acompanhada por uma amiga, para ir buscar roupa. O ex-marido, convencido de que a tinha perdido para outro homem, baleou-as assim que entraram no apartamento.
Existe ainda um quarto grupo, que engloba os homicidas mais violentos. São homens que antes de cometerem o crime já tinham ameaçado fazê-lo várias vezes. Alguns têm, até, antecedentes por tentativa de homicídio. Apresentam normalmente problemas de transtorno da personalidade, como psicopatias. São os únicos que planeiam minuciosamente o homicídio, recorrendo, por norma, a armas de fogo.
NUNCA É POR amor 
Quaisquer que sejam as motivações dos homicidas, Cristina Soeiro, que lida com casos desde o início da década de 1990, refere que há factores de risco a ter em conta. “Como um historial de psicopatologias, quadros de instabilidade social. São indivíduos com um baixo controlo dos impulsos”, descreve. De qualquer forma, a psicóloga da Judiciária rejeita a ideia de que os homicídios em contexto conjugal sejam motivados por amor. “A razão nunca é o amor, mas sim sentimentos que se desenvolvem a partir do amor o ciúme patológico, a raiva, o sentimento de poder e de domínio em contextos de separação”, refere.
No estudo que desenvolveu, a psicóloga Íris Almeida concluiu que para 38,4% dos homicidas a motivação do crime foi exactamente o sentimento de poder ou controlo (“não és minha, não és de mais ninguém”). Depois, 33,6% mataram por ciúmes, que podiam ser reais ou imaginários, e 16% agrediram durante uma discussão.
Os dados recolhidos a partir de casos investigados pela Polícia Judiciária sugerem ainda que 9,6% dos agressores sofriam de problemas de dependências de substâncias ou problemas de saúde mental e 2,4% tinham outras motivações, como problemas económicos.
i3 Novembro 2012

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