quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Acção penal em tempo de crise


Tribuna Políticos e justiça
Paulo de Sá e Cunha*
A profunda crise em que o país está mergulhado, com o agudizar de tensões e da conflitualidade social, tem vindo a acentuar a animosidade contra os políticos em geral. A descrença na classe política passa também pela ideia de que os seus agentes gozam de uma quase irrestrita impunidade, aliada ao exacerbamento das mais diversas suspeições. Nas actuais circunstâncias históricas, este estado de coisas constitui um perigosíssimo catalisador de agitação social, a que urge pôr cobro. A generalizada convicção da impunidade dos políticos corresponde, em larga medida, a uma percepção mediatizada, seja pela comunicação social, seja pelo fenómeno das redes sociais. Estará certamente associada à escassez de casos definitivamente decididos e a um número diminuto de condenações, que denotam a letargia em que muitos processos caem após a fase de inquérito, cujas diligências se revestem, não raro, de enorme exposição pública, mas que, afinal, acabam por soçobrar. Na verdade, são vários os exemplos de perseguição penal de políticos e de titulares de cargos públicos em que tal se tem vindo a verificar, com nefastas consequências quer para a reputação dos visados, quer para a credibilidade da justiça. Outros factores que concorrem para a persistência desta situação serão a sistemática (e sempre impune) violação do segredo de justiça e a crónica inabilidade comunicacional dos agentes do sistema. Bastará atentar no desnorte revelado em recentes intervenções públicas de alguns dos seus protagonistas, entre as quais se contam, por ordem meramente cronológica, as afirmações da directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) na Universidade de Verão da JSD, as declarações da ministra da Justiça por ocasião da notícia de buscas a membros do anterior Governo e a entrevista do procurador-geral da República cessante logo após o termo das suas funções.
Neste cenário, pouco animador, o início de funções de uma nova procuradorageral da República deverá ser encarado com expectativa quanto a mudanças de orientação no Ministério Público (MP), que todos reconhecem desejáveis. Como garante da legalidade democrática do Estado e titular da acção penal, cabe ao MP um relevantíssimo papel, que é imperioso seja reconduzido ao eficaz exercício das atribuições que constitucionalmente lhe incumbe prosseguir. Não se advoga nada de semelhante a uma indesejável e perigosa judicialização da política. Mas não pode olvidar-se que políticos e titulares de cargos públicos e equiparados estão, no exercício das suas funções, vinculados a um acervo de deveres cuja violação é susceptível de os fazer incorrer em responsabilidade penal. No actual momento, em que os cidadãos são chamados a suportar pesados sacrifícios, razões acrescidas de moralização da vida pública e de coesão social impõem que o escrutínio desta espécie de responsabilidade se exerça efectiva e rigorosamente. Não seria despiciendo repensar o apuramento de responsabilidades de quem conduziu o país à bancarrota, questão que só tenuemente tem sido aflorada entre nós. Por outro lado, impor-se-á dedicar especial atenção a todos os níveis de gestão de dinheiros e de bens públicos. Para prosseguir este desiderato, seria recomendável definir claramente como prioritária a investigação dos crimes socialmente assimilados à noção de corrupção (recebimento indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, tráfico de influência, abuso de poder, etc.) e de outros que com estes estão habitualmente conexos, como o branqueamento e o financiamento ilícito de partidos políticos. Esta opção implicaria reorientar a actividade do DCIAP (que, recorde-se, está na directa dependência da Procuradoria- Geral da República) para a investigação deste tipo de criminalidade, altamente complexa, procedendo-se à optimização dos recursos humanos e técnicos disponíveis. No actual quadro legal seria ainda desejável incrementar o recurso a averiguações preventivas, dotando-as de uma maior eficácia dissuasora. Nada disto implicará, supõe-se, alterações legislativas ou uma maior afectação de recursos (que a alguns sempre parecerão insuficientes), mas apenas direcção, coordenação de meios e, sobretudo, uma elevada dose de determinação pessoal. O actual momento exige acção, e o juízo da História, nesta como noutras matérias, não será condescendente com fracassos.
P.S.: Já após a conclusão deste artigo foram publicadas notícias acerca de escutas telefónicas em que intervém o primeiroministro. É um déjà vu pouco auspicioso…
*Advogado e sócio da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira. Presidente do Fórum Penal (O teor do artigo reflecte exclusivamente a opinião do autor)
Público, 25 Outubro 2012

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