Tribuna
Políticos e justiça
Paulo
de Sá e Cunha*
A
profunda crise em que o país está mergulhado, com o agudizar de
tensões e da conflitualidade social, tem vindo a acentuar a
animosidade contra os políticos em geral. A descrença na classe
política passa também pela ideia de que os seus agentes gozam de
uma quase irrestrita impunidade, aliada ao exacerbamento das mais
diversas suspeições. Nas actuais circunstâncias históricas, este
estado de coisas constitui um perigosíssimo catalisador de agitação
social, a que urge pôr cobro. A generalizada convicção da
impunidade dos políticos corresponde, em larga medida, a uma
percepção mediatizada, seja pela comunicação social, seja pelo
fenómeno das redes sociais. Estará certamente associada à escassez
de casos definitivamente decididos e a um número diminuto de
condenações, que denotam a letargia em que muitos processos caem
após a fase de inquérito, cujas diligências se revestem, não
raro, de enorme exposição pública, mas que, afinal, acabam por
soçobrar. Na verdade, são vários os exemplos de perseguição
penal de políticos e de titulares de cargos públicos em que tal se
tem vindo a verificar, com nefastas consequências quer para a
reputação dos visados, quer para a credibilidade da justiça.
Outros factores que concorrem para a persistência desta situação
serão a sistemática (e sempre impune) violação do segredo de
justiça e a crónica inabilidade comunicacional dos agentes do
sistema. Bastará atentar no desnorte revelado em recentes
intervenções públicas de alguns dos seus protagonistas, entre as
quais se contam, por ordem meramente cronológica, as afirmações da
directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal
(DCIAP) na Universidade de Verão da JSD, as declarações da
ministra da Justiça por ocasião da notícia de buscas a membros do
anterior Governo e a entrevista do procurador-geral da República
cessante logo após o termo das suas funções.
Neste
cenário, pouco animador, o início de funções de uma nova
procuradorageral da República deverá ser encarado com expectativa
quanto a mudanças de orientação no Ministério Público (MP), que
todos reconhecem desejáveis. Como garante da legalidade democrática
do Estado e titular da acção penal, cabe ao MP um relevantíssimo
papel, que é imperioso seja reconduzido ao eficaz exercício das
atribuições que constitucionalmente lhe incumbe prosseguir. Não se
advoga nada de semelhante a uma indesejável e perigosa
judicialização da política. Mas não pode olvidar-se que políticos
e titulares de cargos públicos e equiparados estão, no exercício
das suas funções, vinculados a um acervo de deveres cuja violação
é susceptível de os fazer incorrer em responsabilidade penal. No
actual momento, em que os cidadãos são chamados a suportar pesados
sacrifícios, razões acrescidas de moralização da vida pública e
de coesão social impõem que o escrutínio desta espécie de
responsabilidade se exerça efectiva e rigorosamente. Não seria
despiciendo repensar o apuramento de responsabilidades de quem
conduziu o país à bancarrota, questão que só tenuemente tem sido
aflorada entre nós. Por outro lado, impor-se-á dedicar especial
atenção a todos os níveis de gestão de dinheiros e de bens
públicos. Para prosseguir este desiderato, seria recomendável
definir claramente como prioritária a investigação dos crimes
socialmente assimilados à noção de corrupção (recebimento
indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica
em negócio, tráfico de influência, abuso de poder, etc.) e de
outros que com estes estão habitualmente conexos, como o
branqueamento e o financiamento ilícito de partidos políticos. Esta
opção implicaria reorientar a actividade do DCIAP (que, recorde-se,
está na directa dependência da Procuradoria- Geral da República)
para a investigação deste tipo de criminalidade, altamente
complexa, procedendo-se à optimização dos recursos humanos e
técnicos disponíveis. No actual quadro legal seria ainda desejável
incrementar o recurso a averiguações preventivas, dotando-as de uma
maior eficácia dissuasora. Nada disto implicará, supõe-se,
alterações legislativas ou uma maior afectação de recursos (que a
alguns sempre parecerão insuficientes), mas apenas direcção,
coordenação de meios e, sobretudo, uma elevada dose de determinação
pessoal. O actual momento exige acção, e o juízo da História,
nesta como noutras matérias, não será condescendente com
fracassos.
P.S.:
Já após a conclusão deste artigo foram publicadas notícias acerca
de escutas telefónicas em que intervém o primeiroministro. É um
déjà vu pouco auspicioso…
*Advogado
e sócio da Cuatrecasas, Gonçalves Pereira. Presidente do Fórum
Penal (O teor do artigo reflecte exclusivamente a opinião do autor)
Público,
25
Outubro 2012
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