quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A meritíssima classificação

Público - quinta-feira, 09 Agosto 2012
Debate - Magistratura
Rui Machado (advogado)
Conta-se que Jesus convidou para cear doze juízes. No dia seguinte, um colega perguntou a um dos 12 eleitos que tal tinha corrido a ceia. Só génios, éramos doze, disse ele com simplicidade.
De acordo com o Relatório Anual do Conselho Superior da Magistratura, noticiado pelo PÚBLICO, em 2011 foram atribuídas 389 classificações, havendo 110 “Muito Bom”, 135 “Bom com Distinção”, 77 “Bom”, 14 “Suficiente” e 2 “Medíocre”. O presidente da Associação Sindical dos Juízes considera que a percentagem de juízes com as duas classificações máximas (63%) representa “um bom sinal”. Mas não é.
Uma classificação é sempre relativa.
Primeiro, em função do que é e de quem é avaliado. Depois, em função das diferenças de desempenho que importa distinguir.
No fundo, a validade de uma classificação depende da sua capacidade de distinguir através de um número maior ou menor de graduações (1 a 20, muito bom, bom, suficiente, medíocre e mau, etc.) o que merece ser premiado (o desempenho excelente e superior à média, apenas alcançado pelos melhores) e o que merece ser penalizado (o fraco desempenho, inferior à média, alcançado pelos piores).
Entre o melhor e o pior fica a mediania, o desempenho positivo, mas que não merece ser premiado.
As classificações atribuídas pelo CSM não satisfazem este critério de validade. Por isso não são verdadeiras. Faltando à verdade, são injustas em todos os escalões.
A começar pelo primeiro. Só por ignorância ou má-fé se pode negar que há excelentes desempenhos nas fileiras dessa magistratura. Fruto de uma selecção exigente na admissão e de um investimento considerável na formação, a preparação jurídica dos juízes é, em média, claramente superior à dos advogados (penalizada pela degradação de licenciaturas em Direito e pela debilidade do estágio). Superior à dos advogados em geral, porque alguns deles, sobretudo desde que se tornou mais frequente a prática da advocacia por docentes das faculdades de Direito (não confundir com as impropriamente ditas faculdades de Direito), são causídicos notáveis.
Seja como for, quando à sólida preparação jurídica de um juiz se unem a dedicação, o sentido da equidade e o bom senso, temos magistrado. Com base no contacto que mantenho com juízes há três décadas, não me surpreende que no universo de 389 classificados haja uns 20 que não deixariam de merecer a nota máxima se o critério de classificação fosse válido e credível, se houvesse verdade na classificação. Mas não há, como atesta o facto de se igualar com a nota máxima 110 magistrados num universo de 389. Por outras palavras, no amplo universo de 110 “Muito Bom” (28% do total), haverá juízes francamente melhores do que muitos outros com igual classificação.
Uns tantos “Muito Bom” são, na verdade, mais “Muito Bom” que os outros. Mas a classificação não lhes reconhece nem engrandece o mérito de serem realmente os melhores entre os seus pares. Diminui-lhes esse mérito, vulgarizando uma classificação que devia atribuir apenas ao mais elevado valor profissional. É por isso uma classificação injusta para quantos verdadeiramente a merecem. E sem vantagem para os demais. Porque a vulgarização do “Muito Bom” desvaloriza a própria nota. O prémio de ter “Muito Bom” é diminuído pela banalidade da sua atribuição.
O fenómeno repete-se no segundo e no terceiro escalões, mas com maior perversidade. Houve 135 notas “Bom com Distinção” (35% do total) e 77 “Bom” 20% do total. Esta simples proporção entre a atribuição das duas notas sugere que “Bom” é “Bom sem Distinção”, isto é, que o “Bom” normal, para o CSM, é “com distinção”. O outro é uma espécie de “Bom menos”. No fundo, uma nota relativamente fraca, o que contraria o vocábulo bom.
Também aqui me parece que nas 389 avaliações feitas, se o critério fosse válido e credível, haveria lugar a três ou quatro dezenas de notas “Bom com Distinção”.
Sem me alongar mais, diria que a falha principal desta classificação, da qual decorre a injustiça, a escassa utilidade e a falta de credibilidade, é a perda do significado próprio das notas, a sua manifesta discrepância com a realidade avaliada.
O efeito que tem internamente não pode ser bom. A ausência de verdade e justiça nas avaliações dos juízes é a pior pedagogia possível dirigida a quem por dever de ofício não deve pactuar com a negação desses valores. Na perspectiva da prestação de contas à sociedade por parte do poder judicial, materializada no Relatório de Actividades entregue à Assembleia da República pelo CSM, o efeito é negativo, transmite uma ideia de complacência, auto-satisfação e falta de discernimento da magistratura. Ainda aqui, ideia muito injusta, que não corresponde à realidade de tantas e de tantos magistrados.

Sem comentários: