terça-feira, 3 de julho de 2012

MP uber alles

Parece que o Governo se prepara para propor a nomeação para procurador-geral da República de uma pessoa que ame o Ministério Público. Esse propósito revela, na sua aparente singeleza, todo um mundo de ideias e desígnios que, embora já indiciados, ainda não tinham sido desvendados. Assim, a melhor qualidade para poder aceder ao cargo é gostar muito da corporação que ele representa. Não é necessário empenho e determinação para com a defesa da dignidade humana, a boa administração da justiça e o fortalecimento do regime democrático. É necessário amar o MP.
O PGR deverá, pois, ser uma pessoa que não tenha dúvidas em colocar os interesses do MP acima de quaisquer outros, incluindo os da justiça e os do próprio Estado de Direito. Amar o MP significa nada fazer contra ele e ocultar tudo o que, uma vez feito, o possa prejudicar. Significa combater os seus inimigos, sejam eles os criminosos tout court, sejam também aqueles que os defendem (os advogados) ou não os punam como o MP quer (os juízes) ou mesmo os polícias ciosos da sua autonomia investigatória. Significa que o MP deverá ser entendido como um fim em si mesmo e não um dos instrumentos de realização do estado de direito.
Amar o MP só pode significar que se deve fazer tudo para que o MP se transforme num estado (corporativo) dentro do Estado de Direito, que não tenha qualquer escrutínio democrático e que se fortaleça e medre com as fraquezas e as contradições do próprio estado de direito democrático. Só pode significar que o MP esteja para o Estado como outrora a Inquisição estava para a Igreja Católica - um organismo acima de tudo e de todos entregue apenas aos seus agentes.
Numa altura em que se politiza a justiça através da cega transposição das valorações do mundo da política para o mundo dos tribunais é necessário que na PGR esteja quem não olha a meios para dar uma imagem pública de que se é forte e poderoso e, sobretudo, para fazer crer que, por via disso, se persegue os fortes e os poderosos. Daí que as prioridades da investigação criminal tenham de ser estabelecidas (só) pelo próprio MP segundo critérios estritamente político-corporativos. Daí que, mais do que investigar os crimes e perseguir os criminosos, tenha de se dar ao povo a ideia de que se investiga os crimes e se persegue os criminosos. Daí a demagogia e o populismo que se instaurou no mundo da justiça, nomeadamente na investigação criminal. Daí que a investigação se faça em simbiose perversa com os órgãos de informação que logo condenam, perante a opinião pública e sem qualquer contraditório, os suspeitos que lhes são indicados pelas habituais fontes policiais e/ou judiciais. Daí que, para conseguir vantagens político-mediáticos não se hesite em espezinhar essas minudências que são os direitos fundamentais da pessoa humana. Daí que, quando não se consegue provas para condenar no processo os que já foram condenados na opinião pública não se hesite em invadir os escritórios dos seus advogados à procura de tudo o que possa servir de prova contra os seus clientes. Daí que a investigação criminal se faça, hoje, em Portugal, como outrora se perseguiam a bruxaria e as heresias: fanatizando a sociedade para que as turbas exultem com as condenações e com o apedrejamento moral dos condenados.
É sempre por amor a uma causa que se odeiam os seus inimigos. E mais: é por amor a uma causa que se transformam os adversários dessa causa em arqui-inimigos. É a recuperação em plenitude dos velhos arquétipos amigo-inimigo de Carl Schmitt. Quando se ama uma causa ou uma instituição, nada há de mais gratificante do que derrotar os seus inimigos mesmo que essas vitórias nada tragam de vantajoso.
As mesmas categorias mentais levaram os próceres da antiga ditadura militar brasileira a lançar o slogan "Brasil - ame-o ou deixe-o". Era o Brasil do poder pelo poder, da força bruta, da tortura e dos desaparecimentos de pessoas. Era o Brasil que punha bombas na sede da Ordem dos Advogados. Era, em suma, o Brasil que os brasileiros odiavam.
Por mim, só conheço, hoje, em Portugal, uma pessoa que ama suficientemente o MP para poder ser PGR: a atual ministra da Justiça.
Marinho Pinto
Jornal de Noticias de 3-07-2012

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