Parece que o Governo se prepara
para propor a nomeação para procurador-geral da República de uma pessoa que ame
o Ministério Público. Esse propósito revela, na sua aparente singeleza, todo um
mundo de ideias e desígnios que, embora já indiciados, ainda não tinham sido
desvendados. Assim, a melhor qualidade para poder aceder ao cargo é gostar
muito da corporação que ele representa. Não é necessário empenho e determinação
para com a defesa da dignidade humana, a boa administração da justiça e o
fortalecimento do regime democrático. É necessário amar o MP.
O PGR deverá, pois, ser uma
pessoa que não tenha dúvidas em colocar os interesses do MP acima de quaisquer
outros, incluindo os da justiça e os do próprio Estado de Direito. Amar o MP
significa nada fazer contra ele e ocultar tudo o que, uma vez feito, o possa
prejudicar. Significa combater os seus inimigos, sejam eles os criminosos tout
court, sejam também aqueles que os defendem (os advogados) ou não os punam como
o MP quer (os juízes) ou mesmo os polícias ciosos da sua autonomia
investigatória. Significa que o MP deverá ser entendido como um fim em si mesmo
e não um dos instrumentos de realização do estado de direito.
Amar o MP só pode significar
que se deve fazer tudo para que o MP se transforme num estado (corporativo)
dentro do Estado de Direito, que não tenha qualquer escrutínio democrático e
que se fortaleça e medre com as fraquezas e as contradições do próprio estado
de direito democrático. Só pode significar que o MP esteja para o Estado como
outrora a Inquisição estava para a Igreja Católica - um organismo acima de tudo
e de todos entregue apenas aos seus agentes.
Numa altura em que se politiza
a justiça através da cega transposição das valorações do mundo da política para
o mundo dos tribunais é necessário que na PGR esteja quem não olha a meios para
dar uma imagem pública de que se é forte e poderoso e, sobretudo, para fazer
crer que, por via disso, se persegue os fortes e os poderosos. Daí que as
prioridades da investigação criminal tenham de ser estabelecidas (só) pelo
próprio MP segundo critérios estritamente político-corporativos. Daí que, mais
do que investigar os crimes e perseguir os criminosos, tenha de se dar ao povo
a ideia de que se investiga os crimes e se persegue os criminosos. Daí a demagogia
e o populismo que se instaurou no mundo da justiça, nomeadamente na
investigação criminal. Daí que a investigação se faça em simbiose perversa com
os órgãos de informação que logo condenam, perante a opinião pública e sem
qualquer contraditório, os suspeitos que lhes são indicados pelas habituais
fontes policiais e/ou judiciais. Daí que, para conseguir vantagens
político-mediáticos não se hesite em espezinhar essas minudências que são os
direitos fundamentais da pessoa humana. Daí que, quando não se consegue provas
para condenar no processo os que já foram condenados na opinião pública não se
hesite em invadir os escritórios dos seus advogados à procura de tudo o que
possa servir de prova contra os seus clientes. Daí que a investigação criminal
se faça, hoje, em Portugal, como outrora se perseguiam a bruxaria e as
heresias: fanatizando a sociedade para que as turbas exultem com as condenações
e com o apedrejamento moral dos condenados.
É sempre por amor a uma causa
que se odeiam os seus inimigos. E mais: é por amor a uma causa que se
transformam os adversários dessa causa em arqui-inimigos. É a recuperação em
plenitude dos velhos arquétipos amigo-inimigo de Carl Schmitt. Quando se ama
uma causa ou uma instituição, nada há de mais gratificante do que derrotar os
seus inimigos mesmo que essas vitórias nada tragam de vantajoso.
As mesmas categorias mentais
levaram os próceres da antiga ditadura militar brasileira a lançar o slogan
"Brasil - ame-o ou deixe-o". Era o Brasil do poder pelo poder, da
força bruta, da tortura e dos desaparecimentos de pessoas. Era o Brasil que
punha bombas na sede da Ordem dos Advogados. Era, em suma, o Brasil que os
brasileiros odiavam.
Por mim, só conheço, hoje, em
Portugal, uma pessoa que ama suficientemente o MP para poder ser PGR: a atual
ministra da Justiça.
Marinho Pinto
Jornal de Noticias de 3-07-2012
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