domingo, 30 de outubro de 2011

Construtores da bio(in)segurança na base de dados de perfis de ADN


 1 A gestão social de informação genética é hoje objeto de amplo debate, envolvendo políticos, juristas, cientistas e cidadãos. A reflexão académica e discussão pública em torno dos efeitos sociais, económicos, éticos e políticos da utilização de novas tecnologias de identificação de indivíduos por perfis de ADN e do mapeamento e sequenciação dos genes terá atingido o seu ponto alto por via das consequências do desenvolvimento de projetos de ­investigação genómica com amplas repercussões científicas, políticas e económicas, a nível global (Pálsson 2007).
2 A Lei n.º 5/2008 aprova a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação (...)
Além da aplicação da genómica na medicina e nos cuidados de saúde, outro campo de potenciação de promessas reside na investigação criminal, prevenção e dissuasão do crime. A utilidade prometida dos usos desse tipo de tecnologia, associada a uma esperada aceitação dos seus benefícios por parte de diversos grupos sociais (Gamero et al. 2004), justifica, em grande medida, a crescente expansão e ampliação de bases de dados de perfis de ADN, um pouco por todo o mundo, tendo Portugal aprovado em 2008 legislação nessa matéria.
3 O Projeto do Genoma Humano (PGH) tem por objetivo o mapeamento e sequenciação do genoma humano e f (...)
3 Não deixa de ser ilustrativo da importância da crescente imbricação entre a ciência genómica e a política o facto de, no momento da apresentação dos primeiros resultados do projeto do genoma humano,3 a 26 de junho de 2000, o então presidente dos Estados Unidos Bill Clinton ter alegado estarmos a viver um momento histórico pelo qual iríamos, doravante, aprender “a linguagem de Deus, criadora da vida” (Gárcia-Sancho 2006: 16). Alguns anos mais tarde, no dia 1 de junho de 2007, o ministro da Justiça português Alberto Costa apresentou, nas instalações da Delegação do Sul do Instituto Nacional de Medicina Legal, em Lisboa, a proposta de lei de criação de uma base de dados de perfis de ADN com finalidades de investigação criminal e identificação civil. Referiu-se a esta medida como o mais eficaz instrumento “para a descoberta dos verdadeiros autores dos crimes e para a dedução de uma acusação bem sucedida”, acrescentando: “Não menos importante, contribuirá para inocentar quem tenha sido injustamente acusado” (Costa 2007).
4Embora distanciados temporal e geograficamente, e não obstante os distintos contextos sociopolíticos que separam as palavras de Bill Clinton e Alberto Costa, não será demasiado afirmar que um dispositivo retórico os une: a sustentação da crença de que os genes nos podem revelar algo que até há pouco transcendia a compreensão humana (Williams e Johnson 2004a), seja a verdade da essência humana (quem somos, quem seremos) ou a verdade da conduta humana (no caso em análise, quem é culpado e quem é inocente).
5A mística associada ao gene (Nelkin e Lindee 1996) realça alguns aspetos culturais e políticos subjacentes a um projeto técnico-genético e biopolítico que converge com princípios mais amplos de controlo, avaliação e monitorização dos indivíduos. Essa inspeção dos cidadãos assenta na retórica do “avanço ­civilizacional”, ancorada na credibilidade conferida à ciência – neste caso, a genética forense – e no poder simbólico da justiça, a par com configurações atuais de cidadania que projetam modos de categorização e hierarquização dos cidadãos, dos criminosos aos cidadãos cumpridores. Pode então falar-se de uma cidadania genética enquanto conceito que descreve os processos ­múltiplos e complexos pelos quais indivíduos e grupos se envolvem e reconstroem as suas identidades pelos encontros com a biotecnologia (Rose e Novas 2005), e formando um conjunto de direitos e deveres associados a formas de vigilância e de controlo social baseadas no conhecimento científico e tecnológico dos genes.
6No âmbito deste texto, proponho-me analisar alguns discursos produzidos a propósito da criação de uma base forense de dados de perfis de ADN em ­Portugal, com o intuito de explorar alguns patamares de construção da biossegurança. Entendo aqui biossegurança como forma de vigilância e de controlo social baseada no conhecimento científico e tecnológico da individualidade biológica do corpo humano (Ploeg 2002; Williams e Johnson 2004b), representando a criação e alargamento de bases de dados de perfis de ADN um elemento integrante e visível de um projeto técnico-genético e biopolítico crescentemente global e imbricado em imaginários coletivos assentes no medo do crime e do criminoso. Esta consciência do crime, em boa medida alimentada pela comunicação social e pela cultura popular (Owen 2007), é convocada sob a égide da busca do bem coletivo, pela promessa de segurança e tranquilidade e pela obtenção da “verdade” que permitirá identificar criminosos e ilibar inocentes. Interessa, pois, analisar os processos sociais de construção da verdade, mapear as motivações e interesses dos coconstrutores da mesma e também – porque não? – discutir outras verdades possíveis.
7 Assistimos a um aparato de governância genómica (Gottweis 2005) que convoca, em simultâneo, diversos atores e sistemas de saberes e fazeres heterogéneos, e que assenta mais nas promessas de utilidade imaginada e de eficácia na identificação de criminosos do que na invocação dos riscos e das incertezas (Lentzos 2006). A sobrevalorização das promessas tecnológicas e a suavização dos riscos produzem determinados efeitos sociais, culturais e éticos que convergem para dispositivos retóricos destinados a apoiar mecanismos de construção da confiança pública.
8 A legitimação democrática torna-se um aspeto ideológico essencial para o sucesso dos projetos de bases de dados genéticos e na formação do discurso político “pelo qual os governos traduzem a sua visão política em programas e ações para produzir as mudanças desejadas no mundo real” (Cabinet Office 1999: 2.1.).
9 Partindo do ponto de vista dos atores sociais dominantes – políticos e peritos –, analisarei de que modo estes perspetivam o que consideram ser a verdade social, isto é, os fundamentos principais do projeto de construção de uma base de dados de perfis de ADN. Uma das assunções teóricas que guiarão esta reflexão parte do princípio de que estamos perante uma modalidade de ­interseção entre a justiça e a ciência que universaliza o ponto de vista dos dominantes com base em dois elementos principais que se entrecruzam para formar o que aqui designo por “dispositivo da universalidade”: um primeiro fator diz respeito à afirmação da autonomia e da neutralidade, tanto do sistema científico como do sistema jurídico; um segundo fator refere-se à afirmação do distanciamento do conhecimento e ação dos peritos relativamente a agentes periciais dotados de menos recursos no campo da investigação criminal – nomeadamente polícias – e a leigos ou cidadãos comuns.
10 O dispositivo da universalidade alimenta-se tanto da verdade científica, aqui apoiada na crença no perfil de ADN como método de identificação individual inequívoco e universalmente estabelecido (Aas 2006) que pode revelar à justiça aquilo que, de outro modo, permaneceria oculto (Jasanoff 2006), como das funções esperadas da justiça, pelo cumprimento e aplicação da lei (igual para todos). A crença na universalidade está aliás amplamente difundida pelo senso comum, e como tal constitui “fator por excelência da eficácia simbólica” (Bourdieu 1989: 245).
Artigo da Doutora Helena Machado a ler aqui.

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