quinta-feira, 4 de novembro de 2004

Artur Maurício

Por EDUARDO PRADO COELHO, no Público de hoje:

Vejo no jornal uma fotografia da tomada de posse do presidente do Tribunal Constitucional. Já sabia, mas estas coisas nunca deixam de nos surpreender: é o Artur Maurício. O Artur, meu colega do Camões, o Artur, meu amigo dos Verões de São Martinho.
No Liceu Camões, formávamos um trio com o José Manuel Anes, que estudava em conjunto, namorava em conjunto, fazia desporto em conjunto. Ainda tenho uma fotografia de nós os três, sentados nas rochas, diante do mar, naquele jeito de quem olha para a História e aguarda a celebridade. Pois agora o Artur Maurício é o presidente do Tribunal Constitucional. O Zé Manel, navegando entre a química e a alquimia, procurando uma abordagem racional do hermetismo, acabou como gão-mestre da Maçonaria. Eu, eu cá faço crónicas. Todos sobre as rochas, salpicados pela espuma, olhando o fim da tarde e o mar. E esperando o declinar do sol no horizonte.
No Liceu Camões, unia-nos a atitude de antifascistas, numa turma onde a divisão entre salazaristas e anti-salazaristas (muito determinada pela atitude dos pais) era um conflito permanente. Uns liam Marx, outros Primo de Rivera. Uns Sartre, outros Mauras.
Quando em São Martinho acompanhava o Artur Maurício no seu estudo das sebentas de Direito, agradecia aos deuses o momento de inspiração que me tinha levado a, contrariando o meu pai, trocar Direito por Letras. Aquilo era um pesadelo, com artigos sobre artigos, que Artur sublinhava afincadamente, procurando convencer-me que tais matérias tinham uma inteligência e um encanto próprios.
Passávamos as manhãs na rua dos cafés. Eu a ler "As Palavras e as Coisas" de Michel Foucault, ele a meter na cabeça o Código do Processo Penal. Depois, por volta do meio-dia, lido o jornal e debatida a situação política, partíamos para a praia apanhar sol, tomar banho (em São Martinho não havia ondas), esperar a mulher dos bolos com os seus tabuleiros de pastéis de nata, passear nas dunas, jogar ao prego, exercitar os músculos em torneios de ringue.
Fomos arranjando amigos mais velhos (o Fernando Luso Soares, que morreu há pouco tempo), trocando de namoradas, fazendo passeios em Salir, andando de barco, nadando até à prancha, montando burros nas ruas da Dagorda, indo devorar pão-de-ló a Alfeizerão, percorrendo discotecas na Nazaré ou nas Caldas, comendo gelados. Era o Verão. A praia ia ficando deserta por altura das marés vivas. Inventávamos balizas com montes de areia e jogávamos horas seguidas. Agora o Artur é presidente do Tribunal Constitucional.
Olho para o Mário, o meu neto, vejo-o com um boneco na mãos, pergunto de que virá a ele a ser presidente. As crianças que correm à nossa frente serão reitores, dirigentes de empresas, treinadores de futebol. Mas ainda não sabem. Nem eu. O que as torna felizes.

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