quinta-feira, 5 de agosto de 2004

Fernando Luso Soares

A notícia do seu falecimento, em 27-7-2004: aqui.

Em sua memória, fica transcrito este texto de António Valdemar.



A repressão dos tribunais plenários

É um dos aspectos mais esquecidos do fascismo. Tão esquecido que até os juízes transitaram, tranquilos, para a democracia

António Valdemar

Os tribunais plenários, juntamente com a PIDE, as forças Armadas, a censura, a banca, a esmagadora maioria do episcopado português e outros elementos da hierarquia da Igreja Católica foram os principais sustentáculos da ditadura que se prolongou de 28 de Maio de 1926 a 24 de Abril de 1974.

Data de 1945 a criação dos tribunais plenários de Lisboa e do Porto. Destinavam-se a julgar acusações e delações contra a segurança do Estado e, ainda, processos de liberdade de imprensa, não apenas circunscritos a matéria editada em jornais e revistas mas também em livros e outras publicações.

Logo que foi implantada a ditadura militar de 28 de Maio de 1926, restringiram-se as liberdades constitucionais, estabeleceu-se a censura, preparou-se uma polícia política. Sob a alçada do foro militar ficaram os processos políticos. Quando Salazar ascendeu, a 5 de Julho de 1932, a chefe do Governo, também são criados em Lisboa e Porto, em Dezembro de 1932, os tribunais militares especiais para os crimes políticos.

Surgia, em 1933, a PVDE, nome mais tarde tristemente célebre pela designação PIDE. Também lhe competia a elaboração do processo que decorria sem qualquer assistência jurídica. Os autos de declarações, obtidos, muitas vezes, através de espancamentos, violações, chantagens e outras torturas físicas e psicológicas, faziam fé em julgamento.

O pós-guerra levou Salazar a procurar um novo rosto político para o Estado. Fez uma operação de cosmética jurídica. Em 20 de Outubro de 1945 acabaram os tribunais militares especiais. Deram lugar aos tribunais plenários de Lisboa e do Porto. Dois dias depois da institucionalização, outro decreto-lei atribuía à PIDE a exclusiva competência para a instrução dos processos. Continuava a recorrer aos mesmos métodos e a aperfeiçoá-los para extorquir e forjar confissões. O cérebro da PIDE era então o subdirector, José Catela, mas o director, o capitão Agostinho Lourenço, posara numa foto ao lado de Kramer, um dos instaladores dos campos de concentração nazis. Na mesma altura em que Salazar tinha no gabinete de trabalho a fotografia de Mussolini (PIDE/DGS - Um Estado dentro do Estado, por Fernando Luso Soares; Deus, Pátria e Autoridade, por Rui Paulo da Cruz, Rui Simões e José Brandão).

Para completar a aliança da justiça com a polícia política, haviam sido, igualmente, decretadas medidas de segurança, que a PIDE (por sua iniciativa ou através do Ministério do Interior) propunha, os tribunais plenários deferiam, a PIDE, a seguir, executava e prorrogava arbitrariamente. Milhares de presos políticos em Caxias, no Aljube, em Peniche, no Porto, no Tarafal, no Forte de S. João Baptista (Angra do Heroísmo, nos Açores), no campo de S. Nicolau (Angola), na Machava (Moçambique), depois de cumpridas as penas, voltavam a ficar presos por tempo indeterminado.

Mais de 90 por cento das testemunhas nos processos são pides. Para a defesa dos arguidos, os advogados também indicavam como testemunhas de defesa os inspectores, chefes de brigada e agentes da PIDE que haviam feito a investigação. Todavia, nunca compareciam no julgamento, sob a alegação de estarem ausentes em serviço urgente.

As audiências eram, praticamente, vedadas ao público. Antes de começar o julgamento, nos lugares da sala do plenário sentavam-se elementos da PIDE. A pretexto da lotação estar esgotada, a PSP, à porta, impedia o acesso a familiares, amigos e jornalistas.

Centenas de advogados se insurgiram contra o funcionamento dos tribunais plenários e a actuação da PIDE. Entre outras publicações, destacamos as de Duarte Vidal e Salgado Zenha Justiça e Política (1969), apresentada ao congresso de Aveiro e logo apreendida pela PIDE; de Salgado Zenha Notas sobre a Instrução Criminal (Braga 1968), também apreendida pela PIDE, mas recentemente reproduzida em Textos Escolhidos de Francisco Salgado Zenha, seleccionados por Xencora Camotim e António Cândido Oliveira (edição Universidade do Minho, Braga 1998).

A comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista foi extinta, em Conselho de Ministros de 22 de Novembro de 1990. Daí a interrupção da divulgação de documentos indispensáveis para conhecer a repressão exercida pelos tribunais plenários em colaboração directa com a PIDE. "Quando Almeida Santos era ministro da Justiça, incumbiu-me de fazer um livro acerca da história e funcionamento dos plenários", declarou ao DN o advogado Manuel João Palma Carlos, no local onde reside, em Cascais, durante uma conversa de mais de duas horas, repleta de memórias pessoais, profissionais e políticas. E acrescentou: "Não está em causa o empenhamento de Almeida Santos, mas houve um sistemático adiamento, subterfúgios grosseiros ou, então, a recusa do envio de elementos fundamentais que eu solicitava aos arquivos, desde os dos juízos dos tribunais de Lisboa e do Porto até à Comissão de Extinção da PIDE/DGS."

Manuel João Palma Carlos observou: "Não pude, portanto, concretizar o projecto. Deixei de estar na Procuradoria-Geral da República, mandaram-me para embaixador em Cuba e fiquei a milhas de distância dos julgamentos dos pides. Apesar disto, não está destruída a documentação do meu escritório, a cargo do meu filho, o advogado João Norberto da Palma Carlos." Disse-nos ainda: "Os mais diversos saneamentos que se registaram em todo o País, no pós-25 de Abril, muitos deles inaceitáveis, não abrangeram os juízes dos tribunais plenários de Lisboa e do Porto. Não foram responsabilizados nem pelo MFA, nem pela Junta de Salvação Nacional, nem pelo Ministério da Justiça, cujo titular, em sucessivos governos dos primeiros anos da Revolução foi Salgado Zenha.

"Muito mais grave ainda", concluiu Manuel João Palma Carlos, "com o 25 de Abril, membros activos dos plenários ascenderam ao Supremo Tribunal de Justiça ou continuaram ali em funções."


Juiz continuava a despachar a 6 de Maio

Em 1974, a extinção de PIDE/DGS e dos tribunais plenários eram medidas concretas a aplicar, de imediato e de acordo com o Programa do Movimento das Forças Armadas. Apesar disto, o Tribunal Plenário de Lisboa, na segunda semana de Maio, ainda funcionava.

O processo dos implicados no caso da ARA (Acção Revolucionária Armada), o último a ser julgado, no Tribunal da Boa Hora, com mais uma audiência para as 9 e 30 horas, do próprio 25 de Abril e que não se efectuou, por motivos óbvios, ainda deu lugar a um despacho, com data de 6 de Maio de 1974. Está assinado pelo juiz Fernando Lopes de Melo.

Com os acusados em liberdade, aquele corregedor do 2.º Juízo Criminal de Lisboa e já invocando decretos-leis do MFA e da Junta de Salvação Nacional considerava os autos concluídos e o processo encerrado. Escreveu com o seu próprio punho: "Julgo extinto pela amnistia o procedimento criminal contra os réus."

Fernando Luso Soares, advogado de um dos réus, Carlos Coutinho, em requerimento que deu entrada no plenário da Boa Hora, no dia 30 de Abril de 1974, exigia ao tribunal que fosse restituído um automóvel apreendido pela PIDE e que pertencia ao seu constituinte.

No requerimento dirigido ao juiz Fernando Lopes de Melo advertia que, como advogado, "vai desde já instaurar acção cível de indemnização contra todos os indivíduos (altíssimos, altos, médios, baixos ou baixíssimos dirigentes, dirigidos e executantes) que se mostrem conectivamente responsáveis pelo passadio moral e psíquico a que, no seu caso, foi sujeito Carlos Alberto da Silva Coutinho. Deste modo, accionará evidentemente aqueles que neste momento se passeiam em atlântico trottoir indecoroso, que são os mais altos responsáveis morais (co-autores) do torcionarismo".

Salientava ainda a Lopes de Melo: "É hoje facto indiscutivelmente notório o daquela miséria torcionária em que, infelizmente, o ex-tribunal plenário persistia em não acreditar, não obstante os brados dos réus (vítimas) e dos advogados (tolhidos na defesa séria dos seus patrocinados mercê de pseudo leis de excepção imoralíssima e inconstitucional)."

Mas só a 6 de Maio de 1974, Fernando Lopes de Melo, do 2.º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, decidiu, notificando: "A apreensão dos veículos é levantada, devendo os mesmos serem restituídos aos seus proprietários."


Os últimos arguidos de Lisboa

O processo da ARA, o último julgado pelo Plenário de Lisboa, tinha como réus: Manuel Policarpo Guerreiro, de 29 anos, pintor da construção civil, de Odemira; Carlos Coutinho, jornalista destacado na biblioteca de O Século; Amado de Jesus Ventura da Silva, de 28 anos, estudante de Agronomia, de Lisboa; Manuel dos Santos Guerreiro, de 30 anos, motorista, de Grândola; Mário Wren Abrantes da Silva, de 22 anos, estudante de Agronomia, de Lisboa; José Augusto de Jesus Brandão, de 25 anos, fresador do Serviço de Formação Profissional do Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra, de Algés; e Ramiro Rodrigues Morgado, de 33 anos, lapidador de diamantes, da Azambuja. Os acusados tinham como defensores os advogados Fernando Luso Soares, Manuel João da Palma Carlos e Francisco Salgado Zenha.


Aquilino denunciou mecanismo tenebroso

Está ainda por escrever e publicar a história pormenorizada dos tribunais plenários, um dos mais tenebrosos mecanismos repressivos do salazarismo. Durante quase três décadas, elevado número de juízes e agentes do Ministério Público e quadros da PIDE mantiveram uma colaboração recíproca. Essa cumplicidade de magistrados com a polícia política ficou denunciada em páginas vigorosas de Aquilino Ribeiro, em Quando os Lobos Uivam, apreendido pela PIDE e objecto de processo instaurado ao escritor.

"É uma peça memorável, que honra a advocacia portuguesa", escreveu Mário Soares, a propósito da notável defesa de Aquilino feita pelo advogado Heliodoro Caldeira, ao desmontar o processo iniciado na Polícia Judiciária por Pedro Geraldes Cardoso; instruído por Fernando Lopes de Melo, como Ministério Público e que passou aos juízes António Teixeira de Andrade e Luís Filipe Teles Correia Barreto (Alfredo Caldeira/Diana Andringa Em Defesa de Aquilino Ribeiro, edições Terramar).

Também na sua dupla qualidade de preso político e de advogado, Mário Soares, no Portugal Amordaçado e no primeiro volume da biografia dialogada com Maria João Avilez Soares: Ditadura e Revolução, ocupa-se do funcionamento dos plenários.

Outros advogados também deixaram testemunhos impressionantes acerca daqueles tribunais e da conduta de magistrados que os integravam. Além de vários livros de Sebastião Ribeiro (Seis Casos e Confusão, entre outros) destacam-se as memórias de Alexandre Babo, recentemente publicadas.

"No Plenário de Lisboa", escreveu Alexandre Babo, "muitas vezes os réus foram espancados pelos agentes da PIDE durante os julgamentos e arrancados dali à força, quando exigiam apresentar as suas razões. E isto com a aquiescência dos juízes que constituíam o tribunal." Assinala ainda Alexandre Babo que o Plenário de Lisboa "atingiu um grau de corrupção e de falta de vergonha com actuações claramente pidescas" (Recordações de Um Caminheiro, editorial Escritor).

Presentemente, Alexandre Babo e Manuel João da Palma Carlos são dois sobreviventes dos muitos advogados que intervieram, primeiro, nos tribunais militares especiais e depois nos plenários de Lisboa e Porto, desde o seu início, em 1945, até 1974.


Juízes processos e penas

Os tribunais plenários tinham a seguinte constituição: um juiz da Relação, que presidia, e, como vogais, dois presidentes dos juízos criminais das respectivas comarcas.

(...)

Segundo elementos que divulgou o Livro Negro sobre o Regime Fascista verifica-se, numa estatística muito incompleta, que, dos 4792 indivíduos que, entre 1932 a 1960, foram julgados pelo Tribunal Militar Especial e pelos tribunais plenários, 3562 foram condenados em penas de prisão geralmente inferiores a cinco anos (44,1 por cento até um ano, 48,5 por cento entre um e cinco anos e os restantes com penas superiores).


Bibliografia

Da bibliografia existente sobre os Tribunais Plenários podemos citar Em Defesa de Aquilino Ribeiro, Processo de Quando os Lobos Uivam, edições Terramar, de Alfredo Caldeira e Diana Andringa; Recordações de um Caminheiro, de Alexandre Babo, editorial Escritor; Criminalização Política e Defesa do Estado, de José António Barreiros; O Partido e o Estado no Salazarismo, de Manuel Braga da Cruz; Salazar e o Salazarismo, de Fernando Rosas; Dicionário de História do Estado Novo, de Fernando Rosas e Brandão de Brito.

© 1999 Diário de Notícias


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