JOÃO CARLOS ESPADA
Público - 29/04/2013 - 00:00
Alexis Tsipras, o líder do partido
da extrema-esquerda grega, decidiu vir a Portugal "comemorar o 25 de
Abril". O facto, só por si, não mereceria mais do que um bocejo de tédio,
mas a comunicação social achou que o assunto era muito importante. Em entrevistas
várias, o senhor apelou a uma "Primavera mediterrânica" - talvez um
bom anúncio turístico, se fosse proferido por outra fonte. De caminho,
apresentou um diagnóstico catastrófico sobre as intenções dos governos do Norte
da Europa, sempre liderados pela "terrível Alemanha", de
transformarem os países do Sul em "novas colónias". A profundidade da
análise fala por si, e também não mereceria atenção especial. Acontece,
todavia, que este género de discurso catastrofista começa a alastrar,
contaminando pessoas e instituições respeitáveis.
Em França, fala-se hoje com
naturalidade do "fim do regime". Dois dos maiores semanários do
país, Le Point e Le Nouvel Observateur, fazem
títulos de primeira página de teor semelhante. "Estamos em 1789?",
dizia o primeiro. "Os anos 30 estão de volta?", titulava o segundo. A
imprensa em geral fala da crise de confiança no regime, nos recordes de
impopularidade do Presidente Hollande (cerca de 75% dos franceses dizem-se
descontentes com o Presidente), de um fim de regime iminente.
Estas ideias de "fim de
regime" vão também fazendo o seu caminho entre nós. À esquerda e à
direita, fala-se fluentemente dos "bloqueios do regime" - um conceito
suficientemente indefinido para poder agradar a gregos e troianos.
A esquerda foi tristemente mais
longe, ao comparar a situação presente com a dos últimos anos da monarquia
constitucional, em que ocorreu o vil assassínio do rei e depois a revolução
republicana de 1910. À direita, o tema preferido é o de que este
"regime" não permite as reformas modernizadoras necessárias - as
quais, curiosamente, nunca são definidas com rigor, para além de uma sempre
vaga revisão da Constituição.
Estes discursos, vindo de
quadrantes opostos, na verdade convergem e alimentam mutuamente um caldo de
cultura antiparlamentar e terceiro-mundista. Em primeiro lugar, não dizem onde
e porquê está bloqueado este "regime". Existem opiniões que estão a
ser perseguidas? Há partidos proibidos ou impedidos de concorrer a eleições e
de apresentar as suas propostas? Há propostas que são excluídas do debate
público? Há irregularidades eleitorais? Existe, basicamente, algum movimento de
opinião que não consegue exprimir-se ou que não tem oportunidades leais de
concorrer com os partidos existentes?É óbvio que nada disto acontece
hoje em Portugal.
É óbvio que as opiniões são livres, que as eleições são
leais, e que não há nenhum candidato a novo partido político que seja impedido
de se constituir. Em que consiste então o bloqueio do que insistem em chamar
"regime" actual?
Resta, desta vez à direita, o tema
da Constituição. É sabido que a nossa Constituição foi marcada pelo clima
revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril e que podia ser com vantagem
expurgada de carga ideológica desnecessária. Mas, sejamos rigorosos: existe
alguma proposta de reforma estrutural que não tenha sido possível devido à
Constituição? Se existe, ela devia estar neste momento a ser tema de fortíssima
campanha política por parte dos seus defensores.
Onde estão, todavia, essas
propostas? Alguém propôs introduzir o cheque-educação no ensino público e
privado, como foi feito na Suécia e está a ser implementado em Inglaterra?
Alguém propôs introduzir um cheque-saúde no sistema de saúde público e privado,
como também está a ser feito naqueles países? Alguém propôs uma drástica
redução dos impostos para relançar a oferta? Há seguramente algumas nobres
vozes solitárias, como o Fórum para a Liberdade de Educação, que defendem o cheque-educação.
Mas a culpa de essas vozes serem solitárias não está certamente na
Constituição, uma vez que a Constituição não proíbe que essas vozes existam.
Por outras palavras, não existe
qualquer bloqueio no chamado "regime" político português, como aliás
não existe no francês, no grego ou no italiano. Trata-se de democracias
políticas e parlamentares, à semelhança da inglesa, da alemã ou da sueca, que
são igualmente abertas a novas propostas - desde que elas existam.
A diferença está no seguinte:
enquanto em Inglaterra, na Alemanha ou na Suécia, se discutem as propostas
políticas de reforma, nos países onde não há propostas políticas de reforma
discute-se o "regime".
Trata-se de uma diferença de
monta. Nos países em que se discutem reformas, as energias são canalizadas para
estudar problemas e testar soluções. Nos países em que se discute o
"regime", não há realmente propostas políticas em confronto mútuo. Há
basicamente acusações mútuas, teorias conspirativas sobre
"bloqueios", apelos míticos a "regimes" alternativos
imaginários.
Simultaneamente, em termos de
reformas estruturais, tudo continua como dantes. O mais grave, contudo, é que,
no entretanto, cresce impune o discurso catastrofista sobre os alegados
bloqueios do "regime".
Professor universitário,
IEP-UCP e Colégio da Europa, Varsóvia. Escreve à segunda-feira
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