sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Casa da Supplicação


Abuso sexual - abuso sexual de crianças - abuso sexual de menores dependentes
concurso de infrações – coação - violação
I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.
II - O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.
III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. 
IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.
V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).
VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.
VII - Tendo em atenção que os factos se devem agrupar em três crimes de trato sucessivo, como se explicou, vejamos como agrupá-los:
- Factos de 1999 a 2000: coito oral com a menor B, confiada ao arguido para educação e assistência, «sob ameaças que lhe batia caso contasse a alguém» e entre os 10 e os 11 anos de idade da vítima;
- Factos de 2003 a 2004 (entre os 13 e 14 anos da menor B), retomada a anterior prática em cerca de 20 ocasiões distintas, durante a noite, o arguido dirigiu-se ao quarto da enteada e, depois de a despir, tentou, sem o conseguir, introduzir-lhe o pénis na vagina, voltando a ameaçá-la que lhe batia caso contasse a alguém;
- Factos de 2009, tentativas de coito vaginal com a filha de 11 anos de idade, seguidas de coito oral; pelo menos por duas vezes, acabou por introduzir o pénis, por completo, na vagina da filha, onde, após friccionar, ejaculou, sendo que arguido a coagia, asseverando-lhe que, se contasse o sucedido a terceiros, a agrediria.
VIII - Ora, no caso dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave entretanto cometido, agravada, nos termos gerais, pela sobreposição dos demais.
IX - Caso se seguisse a lógica subjacente à decisão do acórdão recorrido, ter-se-ia de fazer uma decomposição de cada um dos crimes de trato sucessivo de que foi vítima a menor B em dois crimes agravados de abuso sexual de criança, acrescidos de dois crimes de coação, e, quanto à menor C, de um crime agravado de abuso sexual de criança e de outro de coação. Todavia, o Código Penal configura um tipo específico (o de violação) que tem como elemento típico a cópula vaginal ou oral forçada pelo agente através da coação grave, penalmente agravado, nos seus limites mínimo e máximo, quando a vítima seja menor de 16 ou de 14 anos de idade.
X - A questão que agora se põe é a de saber se a punição, em relação a cada um dos crimes de trato sucessivo em causa, se há-de fazer como a de um crime agravado de abuso sexual de crianças em concurso efetivo com um crime de coação ou como um crime agravado de violação, pois as molduras penais não são as mesmas, para além de que o tipo de crime de violação protege a liberdade sexual da vítima enquanto o tipo de crime de abuso sexual de crianças a sua autodeterminação sexual.
XI - Como se vê pelo “Comentário Conimbricense” (Tomo I, págs. 551 e 552), a questão tem sido muito controversa na doutrina e refletiu-se na elaboração do projeto do CP e depois na redação final, tendo o legislador optado pela punição pelo “crime sexual violento ou análogo, enquanto o crime contra a criança, qua tale, se transmuda em uma agravação daquele».   
XII - Atentas estas considerações e atendendo a que o crime de trato sucessivo é punido pelo facto mais grave, considera-se, em suma, que o arguido cometeu três crimes de violação agravada, de trato sucessivo, ps. ps. nos art.ºs 164.º, n.º 1, al. a) e 177.º, n.º 6, do CP (cujas redações atuais foram conferidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, anterior, portanto, aos factos em apreço), a cada um dos quais corresponde a pena abstrata de 4 anos e seis meses a 15 anos de prisão.
Ac. do STJ de 29-11-2012
Proc. 862/11.6TAPFR.S1
Relator: Conselheiro Santos Carvalho
Juiz Conselheiro Adjunto (vencido): Manuel Braz
Juiz Conselheiro Presidente da Secção (com voto de desempate): Carmona da Mota

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