JOSÉ LEBRE DE FREITAS
25/11/2012
- 00:00
Entre
as reformas apregoadas pelo Ministério da Justiça (MJ) para consolo da troika
está a do Código do Processo Civil (CPC). Os tribunais não funcionam, os
atrasos aumentam, as execuções terminam sem resultado, os credores
exasperam-se. Embora outras sejam as causas (juízes em roda livre, depósitos
bancários inatingíveis, legislação do IVA incongruente), o MJ prefere dizer que
o mal é da lei processual, das suas garantias, dos prazos e abusos das partes.
No texto de novo posto à discussão pública - o aprovado em 22/11 como proposta
de lei não é ainda conhecido - são pela enésima vez feitas alterações que
deixarão tudo substancialmente na mesma. Com um preço grave a pagar: o da
reaprendizagem da ordenação do código.
O CPC
de 1961 teve em 1995-1996 uma revisão que, embora apressada por timings eleitorais, foi profunda: foram
simplificados os atos do procedimento e respeitadas as exigências do processo
equitativo, tal como definidas pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem e
pela nossa Constituição. Mudou-se a filosofia da lei processual e adaptou-se o
sistema, confiando na renovação da mentalidade dos operadores judiciários; mas
preferiu-se incluir no velho código as novas normas a elaborar um código
formalmente novo, por se entender que a perturbação a tal inerente só se
justifica quando, como em França, um sistema radicalmente novo emerja dum longo
trabalho de elaboração, não sujeito à duração efémera de curtos governos.
Seguiram-se
a reforma da ação executiva (2003) e dos recursos (2007), áreas cuja revisão
tinha ficado incompleta, e também remendos vários ao sabor de cada MJ, as mais
das vezes irrefletidos, quando não disparatados. Nova reforma apenas se
justificava para, sem a promessa demagógica de um novo paradigma, reintroduzir
no código coerência e rigor, aproveitando para agilizar algumas soluções.
O
anteprojeto da comissão escolhida, posto à discussão pública no início deste
ano, correspondia a esse escopo, ainda que em desarmonia com a exposição de
motivos, que apontava as partes como a causa principal da lentidão dos
processos e enfaticamente anunciava o fim de vícios e atrasos. De entre as suas
melhores soluções são de realçar a admissão da inversão do contencioso após o
procedimento cautelar prévio, a substituição da base instrutória pelo enunciado
dos temas da prova, a admissão das declarações da parte a seu pedido (embora
sem o cuidado elementar de expressamente assegurar o princípio da igualdade), o
acentuar do poder judicial de flexibilização do processo, a revitalização da
proibição da decisão-surpresa e a supressão de algumas das extravagâncias
introduzidas na acção executiva em 2008, nomeadamente no que respeita aos
poderes do agente de execução e à sua sujeição ao exequente, em perigosa rutura
de imparcialidade. Surpreendentemente, optou-se por uma forma única de processo
declarativo, mais simples do que a ordinária, mas mais complexa do que a forma
atual das ações de menor valor. É um modo indireto de obrigar o juiz,
solenemente incumbido do dever de gestão processual, a adequar a forma do
processo ao caso concreto. Ver-se-á se a necessidade desta intervenção não
resultará em mais atrasos do que a direta estatuição, pela lei, duma forma
simples para os casos simples, que são a maioria; e se a insegurança quanto à
forma do processo não irá violar garantias fundamentais.
Colhidas
sugestões, de novo se alterou a proposta. Foram, por exemplo, resolvidas
algumas ambiguidades sobre os factos objeto da alegação e da prova, admitiu-se
que o juiz, em casos justificados, permita mais de dez testemunhas por cada
parte e restringiu-se a possibilidade de fundar as decisões em simples adesão
aos fundamentos alegados pelas partes; mas manteve-se, entre outras propostas
criticáveis, a de reduzir a competência internacional dos tribunais portugueses
e a de vedar o recurso das decisões sobre adequação formal e gestão processual,
recuou-se no regime de substituição do agente de execução, suprimiu-se
processos especiais que fazem falta, piorou-se a redação de vários artigos,
suscitando dúvidas interpretativas, deslocou-se a sede de algumas matérias (a
mais incompreensível a da instrução do processo, destacada para a parte geral)
e renumerou-se os artigos do código, de tal modo que poucos conservam o número
anterior.
Esta
última opção só pode ter por fim fazer crer que vamos ter um código novo, o que
é requintada mentira. A sistematização das matérias pouco foi alterada e,
mantendo-se intacta a maioria das normas, a sua passagem para outros artigos é
perturbadora: perder-se-á tempo a localizá-las; terá de se fazer a
correspondência entre artigos, ao ler uma monografia, um estudo ou uma sentença
anterior à mudança; os autores de lições e manuais ocupar-se-ão a alterar as
citações da lei; bases de dados organizadas por artigos terão de ser adaptadas.
Não parece que esta seja a melhor maneira de dar trabalho aos cidadãos. Não se
tratará antes de profunda indiferença (ou desprezo) do legislador pelo trabalho
alheio?
O
texto vai ser sujeito à Assembleia da República, que talvez tenha o bom senso
de reparar, a tempo, o erro da proposta do Governo.
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