sexta-feira, 15 de junho de 2012

Da justiça tardia aos julgamentos “a quente”

Por Francisco Teixeira da Mota
Aqui há uns anos, um advogado amigo disse-me que deixara de tratar de questões de arrendamento porque as leis já tinham mudado tantas vezes desde que começara a advogar, e sempre sem qualquer eficácia, que já não estava disposto a estudá-las.
É certo que na hipercomplexa sociedade em que vivemos a produção legislativa não pode ter um fim, nem mesmo uma pausa, mas também é verdade que, muitas vezes, duvidamos da necessidade de certa legislação. E mesmo quando nos convencemos da sua necessidade, ficamos com dúvidas quanto ao seu acerto.
Veja-se o caso da reorganização do mapa judiciário. Parece evidente que não faz sentido manter tribunais com um reduzido número de processos mas, por outro lado, quais os custos acrescidos que vão resultar para os cidadãos que residem nessas futuras ex-comarcas? Será que se está a ter em conta todos os aspectos relevantes e a minimizar os prejuízos e, sobretudo, será que se está a garantir o serviço da Justiça que é um bem público inestimável? Dúvidas que pairam no ar.
Quando o então ministro da Saúde Correia de Campos procurou reduzir o número de estabelecimentos de saúde públicos, logo apareceram na comunicação social exemplos de partos em ambulâncias comprovando a necessidade de manter todos os estabelecimentos existentes. E quando o anterior Governo tentou criar um mínimo de avaliação dos professores caiu o Carmo e a Trindade, bem como a ministra e o ministro.
Mas, neste momento em que vivemos de constantes cortes, salariais ou outros, de constantes perdas, de direitos ou outras, os ministros não caem, as ambulâncias “não dão à luz” e os sindicatos dos professores não enchem as ruas. Estarão a delinear-se acertadas políticas que merecem a concordância geral?
No campo da Justiça, preocupa-me que as políticas não sejam devidamente discutidas e receio que se esteja a ceder ao populismo ou ao economicismo como únicos ou principais critérios para a adopção das reformas ou alterações que se anunciam.
Quando lemos nos jornais que os casos de homicídio, quando haja flagrante delito, poderão ser levados a julgamento em 48 horas, sendo esta uma das principais alterações do Código de Processo Penal, não nos podemos deixar de perguntar se estão a brincar com coisas sérias ou se já não há pudor.
É por demais evidente que por mais simples que seja a descoberta da verdade material num caso de homicídio, nunca num período tão curto de tempo será possível apresentar em tribunal tudo quanto seja relevante para uma correcta aplicação da Justiça. Em nenhuma parte do mundo, creio eu.
É verdade que uma justiça tardia já não é justiça, sendo muitas vezes uma injustiça, porque a pessoa que é julgada anos depois do crime já não é a mesma pessoa que o praticou e a sua condenação não terá nenhum efeito regenerador antes pelo contrário, pode até ter um efeito de marginalização. Mas também é verdade que o julgamento quase imediato de um caso com a gravidade, a seriedade e as implicações de um homicídio não pode ser julgado “a quente” sob pena de a verdade poder ser falseada pela paixão ou emoção e não se terem em conta todas as questões relevantes.
Podemos, é claro, admitir que esta ideia dos julgamentos fast food é para inglês ver e que, na prática, tudo ficará na mesma, já que a própria lei prevê suficientes excepções para evitar a concretização do seu objectivo. É possível que seja assim, mas não devia ser.
Não se devia legislar nem para oito nem para 80. Não se devia legislar só para encher a arena pública e satisfazer consciências, eleitorados ou clientelas. Quando estão em causa prazos, devia-se estabelecer prazos razoáveis e esses deviam ser para cumprir. Porque quando os prazos são irrealistas caem em desuso e não há sanção para o seu incumprimento, antes se gerando uma aceitação tácita da sua ineficácia ou inutilidade.
Curiosamente, esta medida de fast food judicial que se anuncia vem a par e passo com o anúncio de uma medida, com um sinal absolutamente oposto, de verdadeiro empanturramento judicial, ao prever dilatadíssimos prazos de prescrição criminal, gerando uma total irresponsabilidade dos tribunais superiores quanto ao andamento dos processos, ao prever que, na prática, a prescrição deixa de correr proferida a decisão da 1.ª instância.
É certo que internacionalmente já nos tinha sido chamada a atenção para o facto de, por exemplo, o combate à corrupção ser muitas vezes frustrado pelas prescrições decorrentes da lentidão dos tribunais, mas a verdade é que tal frustração pode decorrer de outros comportamentos dos tribunais que não a lentidão e que a melhor forma de assegurar a boa marcha dos tribunais não é, seguramente, a quase extinção do instituto da prescrição. Porque o objectivo, parece-me, não devia ser acabar com as prescrições criminais, mas sim acabar com a lentidão e o mau funcionamento dos tribunais.
Público 2012-06-15

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