quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O Governo dúplice e a oposição inexistente


Tudo isto está a ter seriíssimas consequências no estado da nossa democracia, que urge defender com prioridade
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) disse que o ataque aos direitos fundamentais dos cidadãos, sobretudo aos direitos sociais, que são os que mais têm estado debaixo de fogo, podia também redundar numa erosão do Estado de direito, em ataques à propriedade, em ocupações, etc. Mas afinal de que falamos quando falamos de direitos fundamentais? E é, ou não, possível comprimi-los sem pôr em causa a ordem constitucional democrática? Se sim, como e em que circunstâncias?
Os direitos cidadãos estão no âmago do constitucionalismo (liberal e democrático) moderno desde as revoluções americana (1776) e francesa (1789). Um dos seus pontos distintivos é a afirmação desses direitos como direitos fundamentais da pessoa humana. Portanto, são considerados não alienáveis por qualquer poder político em funções. Se a separação de poderes permite obviar à tirania, a subordinação do poder estatal ao “primado da lei” e à afirmação dos direitos fundamentais permite obviar à arbitrariedade do poder. Além disso, é um pilar do Estado de direito: não basta ter um Estado que segue escrupulosamente as leis que ele próprio estipula, é também condição sine qua non que essas leis estejam de acordo com o património universal dos direitos do homem. A afirmação destes direitos foi feita gradualmente e com alguns refluxos, tal como a democratização à escala mundial. Numa primeira fase afirmaram-se os “direitos civis” que garantem não só o “primado da lei” e as “garantias judiciais”, mas também a liberdade dos cidadãos e a sua autonomia face ao Estado (liberdade de pensamento e de expressão, liberdade de culto, propriedade, inviolabilidade da correspondência, etc.). Uma segunda geração diz respeito aos “direitos políticos” (direito de eleger, de ser eleito, de reunião e de associação, de petição, etc.). Finalmente, vieram os direitos sociais: garantem as condições materiais para o usufruto das liberdades formais (direito à instrução, à habitação, à protecção social, etc.) e pressupõem alguma igualização das oportunidades e condições de vida. Estão todos na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
Na linha de vários alertas lançados por vozes cidadãs, e do próprio Presidente/PR, um conjunto de deputados do PS e do BE apresentou no Tribunal Constitucional (TC) um pedido de fiscalização da Lei do Orçamento 2012 para que este se pronuncie sobre a constitucionalidade das normas sobre os cortes de salários e de subsídios, apenas a funcionários públicos e pensionistas. Consideram que a lei fere princípios e direitos fundamentais como a igualdade de direitos e deveres, a proporcionalidade dos sacrifícios e o direito à segurança social. Estou convencido de que os portugueses poderiam admitir, perante situações excepcionais, alguma compressão de remunerações/de direitos fundamentais, desde que a percebessem como justa (porque atingindo todos os cidadãos sem excepção, apenas tendo em conta a situação económica e social de cada um) e transitória. Nada disto se passa com as medidas do Governo (que isentou os rendimentos de capital, os trabalhadores do sector privado, etc., destes sacrifícios). Além disso, o Governo é laxista (e reviu partes mais exigentes do memorandum) em matéria de combate à evasão fiscal, em matéria de cortes para as autarquias locais, etc. E nunca mexeu nos contratos (altamente lesivos para o Estado) das parcerias público-privadas, que tanto criticava ao PS. Por tudo isso, muitas aquelas medidas são encaradas não só como inconstitucionais, mas também como ilegítimas e injustas. Tudo isto mina a confiança dos cidadãos na ordem constitucional democrática.
Claro que, desejavelmente, a oposição a esta actuação do Governo devia ser, fundamentalmente, feita no terreno político. Mas a liderança do PS abdicou de fazer oposição, escondendo-se atrás da troika. A justificação não colhe: o PS disse aos eleitores, na campanha eleitoral, que não acompanharia derivas da direita para além datroika. Não se tem feito outra coisa, o Governo indo muito além da troika, o PS legitimando tudo (e traindo os seus eleitores). Depois vemos Seguro (e Assis) queixar-se do PR porque, com as suas críticas ao Governo, estaria “a obscurecer a oposição do PS”. Não é verdade: o PR actua assim, e tem tanto eco, porque o PS não faz oposição ao Governo. Para cúmulo, ainda tentou demover os seus deputados de pedirem ao TC para fiscalizar se a Lei do Orçamento fere, ou não, a Constituição e os direitos fundamentais dos cidadãos.
Tudo isto está a ter seriíssimas consequências no estado da nossa democracia. Por um lado, porque os cidadãos concebem os direitos sociais como o pilar mais fundamental da democracia, como o recente barómetro do ICS veio mais uma vez revelar. Segundo, porque as pessoas sentem que estão a ser ludibriadas: disseram-lhes uma coisa e fazem outra, diametralmente oposta. Terceiro, porque sentem que a excepcionalidade da situação não é para todos, logo percebem as medidas como injustas e ilegítimas. E como a oposição moderada de nada lhes vale… tudo isto redunda numa erosão do apoio à democracia: já só cerca de 53 por cento consideram que a democracia é o melhor regime; e só cerca de 10 por cento se sentem representados por partidos e sindicatos. Urge por isso defender a democracia, e era essa que devia ser a prioridade (absoluta) não só para as esquerdas mas também para todos os democratas genuínos.
Opinião de André Freire, Politólogo, professor no ISCTE-IUL
Público de 08-02-2012

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