sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Luta renhida para saber quem gasta o quê



Segundo ouvi dizer, quando há mudança de Governo, desaparece uma parte substancial da "memória administrativa", sendo apagada dos computadores toda a informação aí existente e volatilizando-se inúmeras pastas e arquivos...
A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), em Dezembro de 2010, ainda nos tempos em que reinava José Sócrates, apresentou 17 acções no Tribunal Administrativo de Lisboa, para que todos os ministros do Governo de então fossem obrigados a revelar quanto gastavam os respectivos gabinetes em despesas de representação. Ainda estávamos longe dos actuais tempos de austeridade e de ceifa dos direitos sociais, mas o Governo de então já retirara 20% no subsídio de renda de casa dos magistrados para além de anunciar cortes nos salários da função pública.  
Invocando a lei que consagra o direito de acesso aos documentos administrativos e argumentando que necessitava de dados concretos para usar na negociação colectiva com o Ministério da Justiça, para além da vontade de fiscalizar os gastos governamentais, a ASJP recorreu aos tribunais pedindo cópias das resoluções do Conselho de Ministros relativas à utilização de cartões de crédito e uso de telefone, móvel ou fixo, por parte de membros do Governo, cópias dos despachos pelos quais tenham sido autorizadas essas despesas, de forma a saber-se quem foram as pessoas assim autorizadas, e cópias dos documentos de processamento e pagamento das despesas de representação e dos subsídios de residências aos membros do Governo.  
Passado um ano e pouco, no passado dia 24 de Janeiro, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu definitivamente a questão, condenando o Governo a fornecer parte substancial dos elementos pretendidos pela ASJP. Verdade seja dita que a luta foi renhida: para o Governo, nenhuma razão assistia à ASJP, já que a maior parte da documentação pretendida constava de documentos oficiais que eram públicos, a negociação colectiva já estava finda, pelo que já não se justificava o pedido, e, relativamente à fiscalização das despesas governamentais, já existia o Tribunal de Contas para o efeito.  
Além de que seria uma enorme quantidade de documentação que teria de ser fotocopiada e parte dela constituía documentação nominativa, isto é, com dados pessoais privados que a lei não permitia que fosse fornecida a terceiros, pelo que a pretensão da ASJP era abusiva e desproporcionada e não devia ter êxito.  
Embora os tribunais que se debruçaram sobre o pedido da ASJP fossem variando nas suas decisões, restringindo ou alargando o âmbito da documentação que devia ser fornecida pelo Governo, resultou, contudo, inequívoca a reafirmação de alguns princípios essenciais da nossa vida em democracia no âmbito do acesso aos documentos administrativos.  
Em primeiro lugar, que a lei não faz depender o acesso aos arquivos ou documentos administrativos da invocação de qualquer motivo ou interesse concreto, bastando que o pedido seja feito por escrito, que dele constem os elementos essenciais para se saber quais são os documentos pretendidos e a identificação de quem pretende ter o acesso. Assim, era absolutamente irrelevante já terem ou não acabado as negociações colectivas.  
Em segundo lugar, o STA reafirmou que documentos concretos como os respeitantes ao pagamento de despesas de representação e subsídio de residência de pessoas que desempenham cargos de membros do Governo não são documentos nominativos, podendo e devendo ser fornecidos a quem os solicitar. Em primeiro lugar, porque tais documentos não contêm quaisquer apreciações ou juízos de valor, positivas ou negativas, sobre as pessoas a que respeitam; em segundo lugar, porque tais documentos não versam sobre a intimidade da vida privada dos cidadãos a que respeitam. Citando o Tribunal de Justiça da União Europeia, o STA lembrou que, "numa sociedade democrática, os contribuintes e a opinião pública em geral têm o direito a ser informados sobre o uso das receitas públicas, em especial no que respeita às despesas de pessoal".  
Por outro lado, e quanto ao facto de alguns dos dados solicitados serem públicos segundo o Governo, o STA lembrou que "ainda que estejam publicados em Diário da República, atenta a dificuldade em identificar os actos em causa, a Administração está obrigada a prestar a informação sobre a sua existência e conteúdo, sob pena de denegar o acesso aos documentos administrativos, violando o princípio da colaboração" previsto na lei. E, por último, quanto ao facto de existir um Tribunal de Contas para apurar da legalidade das despesas governamentais, o STA sublinhou que a ASJP, com o seu pedido, visava só assegurar o seu direito constitucional à informação e não exercer qualquer censura legal sobre as referidas despesas.  
Com excepção das resoluções do Conselho de Ministros, que o STA considerou que os ministérios demandados não tinham o dever de entregar, já que deviam ter sido pedidas ao Conselho de Ministros, onde se encontram os originais, ficou o Governo obrigado a, no prazo de dez dias úteis, entregar a documentação solicitada.  
Pessoalmente, receio que a informação que venha a ser fornecida seja muito pouco esclarecedora para ficarmos a saber quanto e quem gastou o quê. As despesas já devem ter sido todas agregadas, tornando-se impossível destrinçar as despesas individuais. Para além da documentação que já não deve existir... 
Segundo ouvi dizer, quando há mudança de Governo, desaparece uma parte substancial da "memória administrativa", sendo apagada dos computadores toda a informação aí existente e volatilizando-se inúmeras pastas e arquivos...
Francisco Teixeira da Mota (Advogado)
Público de 03-02-2012

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