sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Estado da justiça


"(...) Esta peculiar inserção do poder judicial entre os órgãos de soberania tem uma consequência "paradoxal" porque se por um lado exclui como abusiva qualquer tentação de interferência política na sua autonomia decisória, por outro, não atribui aos tribunais nenhum dos instrumentos necessários para a sua própria reforma que permanece, portanto, nas mãos do Governo e da Assembleia da República".
Na passada terça-feira como é de tradição, teve lugar a abertura solene do novo ano judicial, marcada por um indisfarçável mal-estar aflorado, em registos diversos, pela generalidade dos palestrantes, consoante as respetivas preocupações e indisfarçáveis ressentimentos. A caraterização do poder judicial como um órgão de soberania é uma metáfora constitucional que visa equiparar a autoridade dos tribunais à autoridade dos poderes políticos democráticos - o legislativo, o executivo e o presidencial - como forma de reconhecimento da sua independência funcional e como título de legitimação da competência decisória suprema de que está incumbido - "as decisões dos tribunais são obrigatórias (...) e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades" (nº 2 do artigo 205.º, da Constituição da República Portuguesa). Esta peculiar inserção do poder judicial entre os órgãos de soberania tem uma consequência "paradoxal" porque se por um lado exclui como abusiva qualquer tentação de interferência política na sua autonomia decisória, por outro, não atribui aos tribunais nenhum dos instrumentos necessários para a sua própria reforma que permanece, portanto, nas mãos do Governo e da Assembleia da República Nestes termos, os tribunais assumem por inteiro a responsabilidade das suas próprias decisões mas são impotentes para alterar os seus próprios métodos e procedimentos ou para adaptar o seu enquadramento organizativo de acordo com as suas perceções e conveniências.  
Deste "paradoxo" testemunharam as dissonâncias entre os discursos que ouvimos na sessão solene. Enquanto a "moderação" presidencial recomendava contenção aos descontentes e a responsável parlamentar se distanciava dos problemas correntes, já o bastonário da Ordem dos Advogados, o procurador-geral, o presidente do Supremo e a ministra da Justiça não se coibiam de desfiar agravos, lavrar diagnósticos, registar severas advertências, mostrar serviço e anunciar mudanças. Caberia ao conselheiro Noronha do Nascimento marcar o momento mais alto da cerimónia. Lamentavelmente, a consciência bem enraizada na sociedade portuguesa da gravidade da situação financeira que o país enfrenta vem alimentando a crescente leviandade e ousadia de medidas governamentais de grande violência que fazem tábua rasa dos direitos e legítimos interesses dos cidadãos comuns, na perigosa expectativa da sua infinita complacência Espera-se que a advertência do presidente do Supremo encontre também eco no Tribunal Constitucional, que foi recentemente chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de certas medidas inscritas no Orçamento Geral do Estado. O problema não se resume a averiguar se circunstâncias extraordinárias justificam sacrifícios extraordinários, o que, evidentemente, só pode ter uma resposta afirmativa A questão séria que carece de resposta - à qual este tribunal superior não se poderá eximir - é determinar até que ponto os sacrifícios impostos são efetivamente necessários, adequados e proporcionais à excecionalidade das circunstâncias invocadas.  
Se os encargos são distribuídos com equidade e se subsistem apenas enquanto forem indispensáveis e na justa medida da sua necessidade. Que a ausência de horizontes temporais precisos para a aplicação das medidas restritivas não possa redundar na dispensa de uma justificação pertinente, sem prazos nem limites, que corrompe as regras da governação democrática e esvazia os consensos que suportam a paz social e a convivência civilizada.  
A intervenção ministerial, por fim, foi dececionante. A obsessão cartesiana com as novas geografias judiciais veio agora desenterrar os distritos que pensávamos em vias de extinção e levantar pesadas dúvidas sobre a real premência destas reformas. Porque todos os operadores forenses sabem muito bem que os estrangulamentos da justiça, a impunidade e a morosidade judicial residem nas leis do processo, na multiplicação dos recursos e desdobramentos das instâncias, matérias complexas e urgentes, estas sim, bem necessitadas da ousadia e do firme empenhamento governamental.
Pedro Bacelar de Vasconcelos (Professor Direito Universidade Minho)
Jornal de Notícias de 03-02-2012

Sem comentários: