sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Conflitos inconciliáveis no arrendamento


A nova proposta do governo sobre a alteração à lei do arrendamento urbano é marcada por um cunho excessivamente liberal e tem uma carga ideológica em que as pessoas não são importantes, mas sim o mercado. O mercado resolve tudo. Mas não pode ser assim.
A Troika, que nem sequer sabia que o direito à habitação goza de protecção constitucional, manda e o governo obedece de forma cega. A Troika não conhece os portugueses, as suas carências e necessidades nem o mercado de arrendamento. E não conhece que o Estado foi e é o principal responsável pelas condições de degradação e de injustiças a que chegou o mercado de arrendamento. Não protegeu o direito constitucional à habitação, congelou de forma idiota as rendas, criando injustiças gritantes, não fomentou nem protegeu o arrendamento social. Não teve arte nem engenho para arbitrar um direito de conciliação quase impossível, com interesses antagónicos do ponto de vista económico.
A democracia bebeu o que vinha do Estado Novo e pouco fez para resolver uma das matérias mais importantes e conflituantes da ordem jurídica e social. A componente humana da habitação sempre foi esquecida. Nunca agradou nem a gregos nem a troianos. Amarrou o contrato de arrendamento a um carácter excessivamente vinculístico que asfixiou a liberdade contratual das partes. Esta política teve como resultado a completa degradação da reabilitação urbana e a ausência de uma política adequada de requalificação e de revitalização das cidades. E não permitiu a mobilidade das pessoas, factor essencial para a promoção do emprego.
E esta proposta do governo que foi liderada, estranhamente, pelo Ministério da Agricultura tem muitas imprecisões jurídicas, é facilitista e não resolve nenhum dos problemas acima apontados, designadamente, a dinamização do mercado de arrendamento, colocando a habitação a preço acessível e ajustado às diferentes necessidades dos portugueses. Nem contribui para a redução do endividamento das famílias e para a promoção da poupança. A varinha mágica do mercado não vai transformar senhorios e inquilinos em verdadeiros diplomatas na arte da negociação, como pretende a proposta.
Em vez de ser uma lei reguladora do mercado de arrendamento é uma lei que vai facilitar o despejo. E que esquece que a renda não é o único problema do contrato de arrendamento. Este contrato tem deveres e obrigações para senhorios e inquilinos. Nem uma palavra na proposta de lei para a obrigação do senhorio de assegurar ao locado plenas condições de gozo. Nada vai agilizar nem facilitar nos mecanismos do arrendamento.
E quanto ao funcionamento do Centro Nacional de Despejo faz-me lembrar um jogo de um puzzle infantil.
Rui Rangel, Juiz Desembargador
Correio da Manhã,  05-01-2012

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